Conheça João do Som, o arquiteto de aparelhagens do Pará

“Senhor, se essa casa é sua, me prove”, repetia João para si mesmo enquanto aguardava o pastor na Igreja Universal de Marituba, município a 11 km de Belém do Pará, iniciar a pregação. Era o final dos anos 1990 e a primeira vez que João Andrade Lopes, conhecido como João do Som no Pará, pisava em um templo religioso.

“Ontem muita gente foi para a festa, bebeu, pecou. Hoje tem um bocado no necrotério e no pronto-socorro.” A fala do pastor tocou o ponto fraco de João. Há anos ele era figura carimbada nos bailes de tecnobrega de Belém, uma celebridade exaltada por DJs e pelo público. “Eu comecei a chorar e tive certeza que Deus estava falando comigo”, diz o arquiteto de aparelhagens.

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Foi a partir deste dia que a construção de aparelhagens deixou de ser um estilo de vida para se tornar apenas uma profissão. João virou cristão, parou de beber e passou a frequentar a Igreja Universal. “Eu vou resumir para você como funcionava”, fala ele com a voz baixa, gesticulando devagar. “Eu vivi um reinado. Eu chegava no baile e era anunciado pelo DJ, tudo pago, camarote da diretoria”, relembra. “Se eu olhasse para uma mulher eles já me perguntavam ‘gostaste dela’?”

Detalhe da construção do “Gigante Crocodilo Prime”. Foto: Anderson Coelho/VICE.

Ainda que o estilo de vida proporcionasse certas regalias, a relação próxima com os donos das aparelhagens atrapalhava nos negócios. “Um serviço de R$ 10 mil eu fazia por R$ 8 mil e eles ainda pediam desconto e [eu] passava para R$ 7 mil. Eu começava e terminava no vermelho”. Hoje, ele diz à VICE que dá descontos para os clientes mais assíduos, mas não deixa de lucrar. “Eu não tenho dinheiro para esbanjar, mas consigo sustentar a minha família e estou reformando a minha casa”.

As primeiras aparelhagens, conhecidas como sonoros, surgiram no Pará na década de 1950, montadas com caixas de som e toca discos em simples estruturas de madeira. Com a popularização das festas de tecnobrega nos anos 1980, os grupos passaram a investir cada vez mais em tecnologia. Hoje em dia uma aparelhagem pode custar milhões de reais. A tradição também foi reconhecida oficialmente. Desde de 2013, a lei estadual 7.708/13 declara o ritmo essencial das aparelhagens, o tecnomelody, um patrimônio cultural e artístico do Pará.

João do Som, hoje com 62 anos, começou em uma pequena marcenaria de Belém há quarenta e dois. No início, seu serviço nada tinha a ver com música. Até que um dia o seu trabalho chamou a atenção de um dos clientes do local que era dono de uma aparelhagem. E ele não parou mais, trabalhou para os principais grupos da cidade a ponto de perder conta de quantas aparelhagens construiu. “Eu sou igual jogador de futebol, não fico escolhendo para quem eu vou trabalhar. Mas se eu entrar é pra fazer gol.”

Em julho deste ano, quando visitamos a marcenaria de João do Som, o “Gigante Crocodilo Prime”, ainda era apenas um crocodilo de madeira e aço estacionado e sem acabamento. As patas do réptil no canto aguardavam o revestimento em fórmica. “Vamos colocar um sistema hidráulico para o crocodilo se mover e chegar perto do público”, explicou João enquanto olhava para a sua mais nova obra de arte.

O lançamento da aparelhagem aconteceu no início de setembro e o Crocodilo entrou em uma turnê ainda sem data para terminar. Com milhares de luzes de led e pequenas telas de LCD pelo corpo, a estrutura se move em cima de uma multidão alucinada. De nada lembra a calma de quando era uma criação estática na casa de João. No Karibe Show, uma das casas mais famosas de Belém, três mil pessoas se aglomeraram para tirar uma selfie com a aparelhagem do momento.
“A aparelhagem é uma maneira que as pessoas têm aqui em Belém de se divertir. E não é mais só a classe baixa, hoje em dia a gente consegue alcançar todo mundo”, fala João exibindo orgulhoso um exemplar de uma revista francesa para onde deu entrevista. “Já veio TV aqui também, jornal, é que eu não assisto TV. O meu tempo livre eu dedico a Deus e a minha família.”

Imagem da oficina do arquiteto do som. Foto: Anderson Coelho/VICE.

Cidinho Assis, um dos donos da A3 eventos, empresa detentora do “Gigante Crocodilo Prime” e de muitas outras aparelhagens de sucesso chama João do Som de “artesão”. “O João é muito antigo em fazer naves, como era chamado o comando da aparelhagem. Ficou anos fazendo Rubi, Príncipe Negro, Pop Som”, conta. “E agora acertou em cheio no nosso ‘Gigante Crocodilo Prime’ porque ele é um talento, um artista mesmo.” João é parceiro antigo de Assis, para quem projetou o “Ouro Negro”, um robô no estilo Transformers que até hoje se reveza com outras aparelhagens pelas festas paraenses.

“O cliente vem com a ideia: ‘João, quero fazer assim assado’, e meu trabalho é realizar do jeito que ele sonhou”, explica João do Som, que antigamente — sem a ajuda da tecnologia — fazia os projetos só no papel. “Já veio arquiteto aqui e eles me perguntam ‘e qual é a formação?’ e eu digo ‘eu não tenho formação, meu talento foi o Senhor que deu’.” João se orgulha de oferecer um serviço que ele descreve como artesanal: “Cada pedacinho dessa aparelhagem tem um grau diferente. Não é uma linha de montagem que você faz vários armários iguais, entende?”

Na marcenaria de João, a prioridade é o projeto arquitetônico e a estrutura da aparelhagem, normalmente feita em madeira, aço e fórmica. Luzes de led, TVs e toda a parte eletrônica são feitas em outras oficinas. A A3 eventos não abre valores do “Gigante Crocodilo Prime”, mas pelo tamanho da estrutura — 8 metros de ponta a ponta —, toda coberta com placas de LED de alta resolução, é evidente que estamos lidando com milhões de reais. “São três carretas só para o transporte do crocodilo”, conta Cidinho Assis.

Rosivan de Assis Lopes, 36 anos, filho de João. Foto: Anderson Coelho/VICE.

Hoje João está convencido de que seu dom para a produção das aparelhagens é um presente de Deus. Mas nem sempre foi assim. Após encontrar a Igreja, chegou a escrever uma carta para seus clientes anunciando sua saída do ramo. Foi convencido do contrário por um pastor. “Os grandes homens do passado trabalhavam para faraós, faziam imagens em ouro, mas eles não adoravam essas imagens”, disse o pastor ao artesão. João lutou para reconquistar a clientela e voltar ao topo. “Hoje meu trabalho é considerado o melhor. Então eu falo, Senhor, foi o Senhor que deu esse dom, então abençoa o meu trabalho.”

E se foi Deus que abençoou, o dom também foi concedido a outro membro da família. Sentado em frente ao computador, Rosivan de Assis Lopes, 36 anos, único filho de João, mexe com confiança no Corel Draw. “Eu aprendi vendo vídeo no youtube”, explica enquanto acerta detalhes da figura de um leão. Foi Rosivan que desenhou o Crocodilo e que, com a supervisão do pai, coordena a produção das aparelhagens com os ajudantes da marcenaria. “O nome dele é muito forte no mercado, né, e a gente trabalha muito bem junto”. O pai aprova, mesmo querendo algo melhor para o filho. “Essa profissão não é mais tão valorizada, mas se é o que ele gosta, a gente dá força”, fala João.

“A aparelhagem é que chama o público para o baile, então eles querem sempre algo diferente”, diz João que depois de cinco meses trabalhando no crocodilo já está pronto para o próximo desafio. As aparelhagens costumam rodar pelo Estado do Pará por cerca de dois anos até se tornarem obsoletas. “Aqui é assim, tem fila, termina uma e já vem outra.” E João está no centro do negócio mais popular da cultura paraense. “O meu trabalho é construir o coração do som. E esse é meu foco.”

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