10 Perguntas Que Sempre Quiseste Fazer a um tatuador de “hand poked tattoos”

tatuagem em hand poke

Às vezes é preciso voltar às origens. Dar um passo atrás. Pensar sobre de onde vimos e de onde vêm todas as coisas. Afastarmo-nos do barulho metálico da tecnologia, da automatização de processos, do frenesim deste mundo de cimento.

Às vezes, é preciso sentir. Deixar que a Natureza trabalhe por si, sentir o peso nos ombros inato à condição de ser humano, sentir a dor de uma vida sem respostas certas nem livro de instruções. E, nessas vezes, nesse contacto com as raízes, nesse pisar descalço o solo húmido, nesse regressar à base, até a dor se sente diferente. Mais fácil. Mais fluída. Mais… natural.

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Estou, claro, a falar da técnica das tatuagens hand poked. Aquelas que, automaticamente, nos fazem lembrar um ritual de uma tribo remota pré-colonial, feitas com um instrumento que mais parece uma palhinha de madeira do que um utensílio para desenhar no nosso corpo para a vida toda.

Miguel Pipa, de 38 anos, escolheu tatuar nesta técnica livre de máquinas. Trabalha num estúdio privado nas Caxinas, Vila do Conde e também no Porto, “ali para os lado da Rua Santos Pousada”. O próximo passo do tatuador português é encontrar espaço em Lisboa. Falámos com ele para tentarmos descobrir as verdadeiras diferenças entre técnicas e o que torna o hand poke tão especial.

VICE: Como é que te interessaste pela técnica de hand poke?
Miguel Pipa: O meu interesse surgiu de forma natural e espontânea. Lembro- me de, em miúdo, as ver passar constantemente – as tatuagens, feitas à mão ou com máquina. Cresci nas Caxinas, a maior comunidade piscatória de Portugal, onde tatuagens de sereias, âncoras, datas de nascimento e o famoso ‘Amor de Mãe’ eram abundantes. A memória mais bonita que ainda tenho e guardarei para sempre, é o braço da minha prima, que de forma muito tosca e num tamanho engraçado, tatuou nela o seu próprio nome, OLIVIA. Foi a primeira rapariga tatuada que conheci, por volta de 1988, com uma tatuagem feita com alfinetes e sei lá que tinta, mas uma tatuagem que cumpriu a sua derradeira função: a liberdade de se fazer o que se quer com o próprio corpo.

O universo das tatuagens sempre me interessou – ser tatuado e tatuar. Mas, foi só em 2003 que ganhei coragem. Peguei em agulhas de acupunctura, um pedaço de linha e tinta da china (pelikan) e dei início ao labirinto que tenho no braço esquerdo. Fiz as primeiras linhas, comecei a praticar, depois passei para a coxa e, assim, fui aprendendo e melhorando a técnica em mim próprio. Com as melhorias foram surgindo amigos que disponibilizaram pele para o meu treino, aos quais estarei eternamente grato. Comecei a tatuar com máquina, mas uns anos depois percebi que hand poke é o meu caminho. Prefiro o processo desacelerado das coisas. A raça humana anda demasiado acelerada, precisamos de abrandar, de um descanso – e esse é o maior motivo pelo que faço tatuagens à mão.

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Foto cortesia Miguel Pipa.

Qual é a filosofia na base das hand poked tattoos? Ser mais natural?
Prezo muito o silêncio e as raízes das coisas. A tatuagem surge antes da máquina e isso só por si tem um significado muito natural. A filosofia desta técnica consiste em imprimir na pele algo que vamos carregar durante a viagem deste corpo físico até aos bichinhos nos comerem e, por isso, ser responsável pelas nossas escolhas, aceitar erros do passado e tornar o humano consciente de que a dor é sempre passageira.

Quando estou a tatuar, presto total atenção ao ser humano que está à minha frente – se precisa de conversar, de ouvir música, comer uma sopa ou beber chá ou café. O aparecimento das máquinas na vida humana acelerou o Mundo e, consequentemente, também a sua decadência. Nada contra as máquinas de tatuagem mas, no geral, é isto que a automatização dos processos significa. Deixamos de dar o devido valor, de saborear o trabalho manual e o tempo de crescimento. A natureza vive por si – nós vivemos com ela.

Qual das duas técnicas dá mais trabalho ao tatuador e requer mais treino?
Não quero comparar as técnicas pelo simples motivo de que prefiro evitar criar mal-entendidos. Ambas são minuciosas e dão trabalho. O ser humano tem falhado, ao longo da história, devido ao seu vício pela comparação. Estamos programados para o fazer e comparamos tudo. A técnica hand poke, na qual tenho mais experiência e sobre a qual consigo falar com mais clareza, é bastante lenta. Um ponto de cada vez até unificar a linha – bastante trabalhosa e delicada, requer uma paciência incrível tanto por parte do tatuador, como por parte de quem a está a receber. O tempo de treino de aperfeiçoamento é igualmente longo e exaustivo, em ambas as técnicas.

No geral, qual dura mais (até ter que ser retocada)?
A tatuagem mais antiga que tenho feita em hand poke tem 16 anos e está impecável, continua consistente. Também ainda não tive que retocar nenhuma das que fiz a outras pessoas, felizmente, mas talvez daqui a uns anos possa começar a acontecer. Há dias, vi nas costas de um amigo umas carpas que ele fez com máquina, com escamas laranja e amarelas – isto foi o que ele me disse, a verdade é que a cor já lá não estava. Penso que os próprios pigmentos são melhores hoje em dia, mas só a longo prazo teremos a certeza. Fico sempre com pena dos tatuadores quando isso acontece, porque acredito que, na esmagadora maioria, sejam feitas à mão ou com máquina, queremos dar o melhor à pessoa que estamos a tatuar.

Dentro das hand poked tattoos, que estilos gostas mais de fazer? Há algum tipo de desenhos ou estilo que aches que fica melhor se for hand poked?
Gosto de tatuar e de tatuagens no geral, quanto a estilos tudo é válido e respeito o gosto de cada um. A salganhada mental em que vivemos é o mais bonito que existe. Apenas me importa que a pessoa goste do desenho, da palavra ou do risco e que fique feliz com o resultado. Só tento que a pessoa repense quando saca da Internet uma imagem de uma tatuagem já feita e me diz “quero esta, no mesmo sítio”! Termos estilo é uma coisa, mas falta de originalidade é outra! Mas, já tatuei um pouco de tudo, símbolos, desenhos infantis, palavras, unicórnios e, brevemente, vou tatuar um chupa-chupa. Tenho uma série de desenhos feitos por mim sempre disponíveis e fico contente quando eles encontram uma pele para habitar.

Notas a diferença, à vista desarmada, entre uma tatuagem feita à máquina e uma hand poked?
Sim, consigo, se a observar com calma – à tatuagem e à pessoa -, mas não gostaria de ser desafiado a isso. Todavia, digo que consigo distinguir sem ponta de pretensão. O material é igual, agulhas e tinta, mas a essência é diferente e o processo também, por isso, como causa natural, o resultado também o será. Aproveito também para explicar que todo o material que utilizo é descartável, esterilizado, uso pigmento vegan tal como o stencil transfer, tenho um estúdio privado muito limpinho – só não utilizo a máquina.


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Consegues fazer a ti próprio? Costumas fazê-lo?
Consigo e amo fazê-lo, foi precisamente assim que comecei esta prática, provavelmente por ser a pele que estava mais à mão. Fiz um risco, depois outro e, quando dei por mim, tinha um labirinto criado do cotovelo até ao pulso. Aprendi bastante nesse processo. Experimento em todas as zonas do meu corpo às que consigo chegar, sabe-me bem e deixa-me feliz!

O que dirias a uma pessoa que estivesse indecisa entre as duas técnicas, para a convencer a fazer uma hand poked?
Nunca tentei convencer alguém a fazer o que quer que fosse, por isso nunca o faria quanto a uma tatuagem – não tenho, nem quero ter, perfil de vendedor. Mas, no caso de dúvida, explicaria melhor no que consiste o hand poke. O movimento está a crescer em Portugal. Só digo experimentem, viemos a este Mundo para isso! Para experimentar. Libertem-se dos preconceitos, das seitas religiosas ou espirituais, das classes, das fronteiras… Tirem um tempo, sintam e experimentem hand poke. Pode parecer imperfeito, mas não é!

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Foto cortesia Miguel Pipa.

Há muita diferença em relação ao tempo que demora a tatuar e a cicatrizar?
Sim, tatuagem com máquina é andar de mota e hand poke é andar a pé! Nesta área, não consigo trabalhar sobre pressão. Adoro quando, tanto eu como a pessoa que estou a tatuar, nos esquecemos da existência do relógio. Em termos práticos, diria que aquilo que com máquina demora 20 minutos a fazer, em hand poke será preciso uma hora. Já a cicatrização é bem mais rápida. Durante o processo quase não faz sangue, por isso não magoa tanto a pele e deixa a área que foi tatuada muito menos massacrada. Acontece-me várias vezes acabar uma tatuagem e a pessoa que tatuei comentar que nem sente que acabou de ser tatuada.

Aconselho a manter a área limpa durante os dias seguintes. Como não vendo produtos para cicatrização nem tenho patrocínios de alguma marca (nem tenciono ter), aconselho sempre óleo de coco biológico, que me parece ser suficiente e faz um bom trabalho. Sempre tive ideia de que, normalmente, uma má cicatrização deriva da falta de atenção e de cuidados depois de tatuar. Evitar exposição longa ao sol e roçar com tecidos sobre a tatuagem, evitar zonas sujas, piscinas ou limpar com produtos que contenham uma composição química esquisita, são conselhos básicos.

E a derradeira dúvida… Qual dói mais?
A dor é uma coisa muito relativa, cada vez mais aprendo isso. Já vi pessoas a adormecer enquanto estavam a ser tatuadas – sonharam e tudo! Por ser ponto a ponto, a dor não é tão intensa, eu tento sempre ser o mais delicado possível para que a pessoa tenha uma boa experiência e não um momento traumático. Até agora, na maioria dos casos, quem experimentou diz que dói menos; eu já experimentei ambas em mim e acho o hand poke muito mais suave. Pessoalmente, gosto da dor que a tatuagem cria, para mim só faz sentido assim. Nunca hei de usar qualquer tipo de anestesia e, lá está, a dor é sempre temporária.


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