10 Perguntas Que Sempre Quiseste Fazer a uma Comissária Europeia

Věra Jourová, comissária europeia para a justiça, consumidores e igualdade de género

“Lutar contra a discriminação, promover a igualdade de género e desenvolver negociações relativas à Directiva Anti-Discriminação, que pretende banir actos discriminatórios em todas as áreas em que União Europeia tem jurisdição”. “Assegurar a aplicação da reforma da lei de protecção de dados na União Europeia e simplificar as regras de compras online e digitais para os consumidores”. Estas são duas das muitas responsabilidades de Věra Jourová, Comissária Europeia para a Justiça, Consumidores e Igualdade de Género.

Nascida em 1964 na então Checoslováquia, esta política, empresária e advogada checa desempenha o cargo na Comissão Junker desde Outubro de 2014. As problemáticas que tem em mãos, estão hoje mais que nunca no topo das agendas mediáticas globais.

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Apesar disso, o trabalho dos comissários europeus, bem como as suas perspectivas pessoais sobre as pastas que têm em mãos nem sempre chegam sem filtros aos cidadãos de uma Europa que em 2018 enfrenta os maiores desafios de sempre à sua União. Aproveitámos a passagem de Věra Jourová pela Web Summit, em Lisboa, para lhe perguntarmos como vê a ascensão dos discursos extremistas no Velho Continente, como os podemos combater e em que ponto estamos no que diz respeito à implementação de políticas efectivas de Igualdade de Género.

VICE: Na Europa e no resto do Mundo, estamos a assistir a uma ascensão da extrema-direita e a um discurso político cada vez mais assente em racismo e ódio. Quais os novos desafios que enfrentas dentro das tuas responsabilidades na União Europeia enquanto Comissária para a Justiça, Consumidores e Igualdade de Género na Comissão Europeia?

Věra Jourová: Sou responsável por muitas coisas, mas não sou responsável pelo discurso dos políticos. Cabe aos cidadãos eleitores, considerarem se estas são as pessoas que deviam governar-lhes a vida. Acredito que, apesar de tudo, os cidadãos vão sempre pensar duas vezes antes de votar. Porque, se alguém usa discurso de ódio contra alguma parte da sociedade, amanhã pode usá-lo contra ti. Quanto a isso não há muito que eu possa fazer, só apelar a mais decência.

Como achas que se pode lutar contra esta tendência de discurso de ódio e qual o papel dos jovens nesta luta?

Penso que devíamos dizer, claramente, que há certas coisas que não são toleráveis de serem ditas. Quando começámos o código de conduta contra o discurso de ódio (temos um acordo com as grandes empresas tecnológicas em como elas têm que apagar das suas redes todo o discurso de ódio que seja proibido por lei), não queríamos insinuar que vão para além da lei, só que garantam que a lei também é respeitada online. Porque se desenhares uma cruz suástica no muro de alguém, a polícia pede ao dono do muro que a apague – e o risco de um muro ser visto por milhões de pessoa é muito, muito baixo – enquanto online as coisas se espalham a grande velocidade.

Esse código de conduta está a ser bem aceite por quem o tem de seguir e aplicar?

Fomos criticados por este código de conduta e eu fui criticada por, supostamente, introduzir um tipo de censura. Lembro-me muito bem de, antes da decisão final, ter hesitações, de pensar quão longe é que deveria ir, mas o meu mantra era fazer cumprir a lei, tanto online como offline. Essa era a minha motivação, a minha explicação mais básica.

Uma vez conheci uma jovem jornalista no Vietname, muito educada e muito simpática, que me perguntou: “Não é uma infração da liberdade de expressão? Pode não ser simpático escrever que alguém devia ser morto, preso ou posto numa câmara de gás, mas não devia ser protegido pela liberdade de expressão?”. Quase quis gritar “NÃO!”. Frases tão horríveis e apelos ao ódio deste tipo não se deviam poder esconder por detrás da conquista maravilhosa que é a liberdade de expressão, seria um erro fatal tolerar tal coisa.

Achas que há uma certa falta de memória por parte das gerações mais jovens em relação ao passado e ao que motivou, por exemplo, as guerras mundiais?

Claro que não me lembro das guerras mundiais, mas lembro-me da ocupação russa ao meu país em 68 e, claramente, ouvi mais coisas sobre a barbárie e sobre as coisas horríficas da Segunda Guerra Mundial do que aquela jovem. Depois da Guerra, toda a gente sabia o que era certo e errado, o que era bom e o que era mau. Agora, temos a tendência de relativizar o que costumava ser claro. Nesta era de relativização dos valores fundamentais, nesta era de desenvolvimento digital – em que a essa evolução digital veio dar um boost a muitas coisas más – é preciso tentar “domar” a situação.

Relativamente à igualdade de género, outra das tuas pastas, quais os países da U.E. que achas que estão mais atrasados?

Todos os países têm as suas medidas, o que eles consideram necessário e fazível. Claro que há estados-membro em que não se dá o enfâse devido a estas medidas políticas. Em todos temos que ir verificando, principalmente quanto aos nossos objectivos mais importantes, como é o caso da diferença de empregabilidade entre homens e mulheres, que está presente em todos os estados-membro e que não há razão para estar. Por outro lado, em todos e em cada um vemos estatísticas de violência de género, muita dela doméstica.

E quais são os países em que esses dados são pelo menos mais positivos?

Os campeões da igualdade de género são os países escandinavos, por isso servem de benchmark para todos os outros, que têm muito trabalho a fazer. Vários países desculpam-se com o facto de terem valores conservadores, de quererem promover uma família tradicional – eu própria assinarei sempre por baixo de que uma família tradicional deve ser promovida, mas isso não significa, de todo, que as mulheres devam ser tratadas como se estivéssemos de volta ao século XIX. Exactamente o mesmo ideal é aplicável aos direitos LGBTQ+.

Achas que caminhamos para um Mundo mais igualitário, ou estes últimos anos têm-nos mostrado que, talvez, estejamos a caminhar na direcção oposta, apesar do que vemos como avanços?

Bem, a UE está a promover muitos projectos de sociedade civil, incluindo instituições pro-igualdade e anti-discriminação em todos os estados-membro. Enviámos uma recomendação a todos para garantir que estas instituições têm espaço de manobra e condições para fazer o seu trabalho como deve ser e ajudar as vitimas de forma significativa, para que possam contestar e queixar-se em tribunal e outro tipo de coisas práticas. Também estamos a fazer muito no que toca a manter o debate vivo em todos os estados-membro, especialmente no Conselho Judicial. Adoptámos recentemente as conclusões a que se chegou no relatório de direitos fundamentais, que expôs quais os problemas a acontecerem de momento na Europa. A União Europeia está a pressionar muito.

Outra das tuas responsabilidades enquanto Comissária Europeia são os assuntos relativos à protecção de dados. O escândalo da Cambridge Analytica (CA) teve um grande impacto nesta problemática?

O escândalo da CA é um dos meus maiores pesadelos. As pessoas são organizadas por bolhas algorítmicas na esfera digital para serem alvo de publicidade, para lhes venderem um aspirador, sapatos ou um rádio. Isso percebe-se e é um modelo de negócio legal, porque as plataformas ganham dinheiro com a publicidade. Mas, quando as plataformas são usadas para publicidade política, há uma grande diferença. Abusar dos dados das pessoas, do conhecimento dos seus dados íntimos, do mais básico de quem são e usá-lo para publicidade política feita à medida sem que elas saibam, é lavagem cerebral encapotada. O que não só é ilegal como é muito perigoso. Vai directamente contra o princípio de liberdade de voto e de autonomia de decisão das pessoas. É por isso que estamos a alertar todos os estados-membro para que façam muito mais no que toca a proteger os dados pessoais das pessoas. Isto foi uma grande lição.

Quais as medidas mais importantes que estão a ser ou devem ser tomadas neste âmbito?

A base é que tens que dar consentimento sobre como é que os teus dados são usados. Se eu consinto que uma empresa online tenha os meus dados, é para que fiquem entre mim e essa empresa. A empresa não tem o direito de os dar a mais ninguém, muito menos alguém que esteja a usá-los para fins de publicidade política, que é proibida por lei. Sem consentimento, os dados não podem ser usados para mais nenhum propósito nem transferidos para mais ninguém. É por isto que acredito que a GDPR (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) nos vai ajudar a evitar estas situações e o abuso de informação pessoal.

Quais são os maiores desafios do cargo como Comissária Europeia?

Tenho uma agenda cheia de temas muito complicados, como independência judiciária, a luta contra a corrupção, a luta pela igualdade, a proteção de dados privados, que tem que ser levada mais a sério. Básicos, mas que, para mim, são trabalhos difíceis, porque chego a hesitar muitas vezes sobre o que está certo e errado. Mas, voltando à parte da conversa sobre o discurso de ódio, há coisas fundamentais que não podemos tolerar. É completamente intolerável tentar angariar pessoas para aniquilar outras, por isso a minha motivação para estar neste posto é muito grande.


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