10 Perguntas Que Sempre Quiseste Fazer a uma lenda (viva) da rádio

Em 2018 é óbvio que as notícias que em 1980 davam conta da morte da estrela da rádio às mãos do vídeo eram claramente exageradas. Quanto muito, a coisa patinou durante uma década ou duas para, em plena era digital, ressurgir com uma vitalidade que poucos adivinhariam. Podcasts, transmissões digitais, playlists à medida dos ouvintes e, imagine-se, programas de autor que perduram no tempo e influenciam várias gerações sem perderem fulgor.

Na linha da frente deste últimos está o Indiegente. Há 21 anos que Nuno Calado conduz o clássico da Antena 3 e, a avaliar pelo entusiasmo e a relevância com que o autor o continua a “produzir, realizar e levar até si” diariamente, a coisa não parece ter fim à vista. Mas, e se tivesse fim à vista? Passaria o Indiegente a influenciar milhares de ouvintes e a divulgar a melhor música nova (e não só) nacional e internacional via podcast? Ou Nuno Calado encerraria definitivamente a obra e partiria para outras paragens radiofónicas?

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A pouco mais de um mês de a lenda (viva) da rádio (provavelmente ele odeia o epíteto, mas assim justificamos o título do artigo que é, convenhamos, melhor que “estrela da rádio”) assinalar o aniversário de um dos programas com maior longevidade no FM nacional com o “Indiegente Live”, colocamos-lhe esta e outras questões fracturantes. A 13 de Outubro o evento vai juntar no palco do Lisboa ao Vivo nomes como Mazgani, Señoritas, Surma, Adolfo Luxúria Canibal, Fast Eddie Nelson, Frankie Chavez, Mr. Gallini, Sam Alone, Scúru Fitchádu, Sean Riley, Tó Trips ou The Poppers, para “um espectáculo único, non-stop, em que os artistas tocam alguns temas e se encadeiam uns com os outros, como se fossem elos de uma corrente”.

VICE: Como é que em plena era digital se aguenta um programa de autor na rádio durante 21 anos?

Nuno Calado: Sabes que, em Portugal, já vi os programas de autor mais em risco do que vejo hoje. Falando primeiro a nível internacional, a era digital ajudou, de alguma forma, a que gajos que trabalhavam em rádios FM, nas quais se achava que os programas de autor não eram a melhor aposta, começassem a fazer os seus podcasts e programas em rádios ou canais online. Isto faz-nos acreditar que, na realidade, as pessoas os seguiam pela sua personalidade e gosto musical e não tanto por fidelidade a uma determinada estação de rádio. Transpondo isto para Portugal – ainda que o tamanho do mercado não possa ser comparável – acho que aconteceu algo bastante parecido e engraçado. Se reparares, quando, nos anos 90, começaram a aparecer os festivais, a maioria dos nomes que actuavam nos festivais vinham da área alternativa.

E assim começa-se a perceber que existe uma tal “imensa minoria” que não era assim tão minoria quanto isso. Começa-se a ver quem são. E isto faz com que, passado alguns anos, comeces a ter a XFM, a VOX, até a Antena 3 com programas de autor. Programas esses que já se viram ameaçados, porque a determinada altura se achava que a playlist a 100 por cento é que era o caminho correcto. No entanto, hoje tens a Radar, a SBSR, a Vodafone, a Oxigénio, e de repente começas a aperceber-te de que há um mercado para programas de autor e que, todas estas estações, todas elas privadas, não estariam neste nicho se assim não fosse. Apesar da playlist, as rádios apostam agora nos programas de autor, já não são esse bicho que seriam, se calhar, há 10 ou 15 anos atrás. E, pela minha parte, fico muito contente por haver gajos, muito mais novos do que eu, com programas nessas outras rádios que não a Antena 3. É fixe sentir que há gente a vir atrás e ver que têm público. Parece-me que o alternativo, hoje, já não é assim tão alternativo.

Lembras-te qual foi a primeira música que passaste e porque é que a escolheste?

A primeira música foi o jingle de abertura (risos). Não, não me lembro, de maneira nenhuma… Sou um gajo muito desligado… Se me perguntares se tenho programas gravados, por exemplo, devo ter apenas dois ou três – e isso se não os tiver perdido numa mudança de casa qualquer. Assim como não tenho cassetes de vídeo da SIC Radical… Sou péssimo na arte de guardar memórias. Acho que é por não ser muito saudosista, por incrível que pareça. Gosto de me encontrar com o passado, mas mais porque isso me ajuda a situar-me no presente e no futuro. Em tempos, a minha ex-mulher ofereceu-me uns cadernos e por isso é lá que escrevo os alinhamentos dos programas e esses tenciono guardar, na esperança que quando morrer possam valer qualquer coisa, tipo um euro (risos).

Fazes sempre os alinhamentos antes, ou acontece a meio do programa mudares aquilo tudo?

É curioso que, ao ver o documentário sobre o António Sérgio [Uivo, realizado por Eduardo Morais], que felizmente era meu amigo, ao ouvir as pessoas falarem dele, apercebi-me pela primeira vez de algumas coisas. Uma delas foi através do testemunho do Ricardo Saló, com quem já trabalhei e que leva sempre o programa meticulosamente alinhado – aquilo não sai da linha nem por nada. O Sérgio era o oposto, agarrava num monte de discos que trazia na mala e escolhia, ali mesmo, qual seria o primeiro a tocar – depois a coisa construía-se a partir daí. Foi aí que percebi que tenho muito de parecido na forma de trabalhar com o António Sérgio. Um dia ele até me chegou a dizer: “Nós temos sorte, acertamos sempre no disco certo”. Eu levo dois ou três temas pensados – nem sempre escritos, mas pensados – e depois o caminho para fazer a ligação entre eles é ali na hora.

E se agora de repente te acabassem com o Indiegente, fazias um podcast?

Bem, se fosse eu a acabar com o programa, seria certamente por ter chegado à conclusão de que me apetecia algo diferente. Mas, se o acabassem por mim, aí sim, acredito que fosse à procura de alternativas. O Indiegente é a minha relação mais duradoura, mas comecei-o sem nunca olhar para as perspectivas de futuro. Tal como quando se começa uma banda, é ir de concerto em concerto, sem saber até onde nos vai levar. Ainda hoje, não sei onde o programa me vai levar, nem quanto mais tempo vai durar. Até porque, como falámos antes, há 10 ou 15 anos os programas de autor estavam em risco de cair no abismo… estas reviravoltas são imprevisíveis. O lado bom é que, com as novas tecnologias, temos outros canais pelos quais podemos tornar estas coisas possíveis. Por isso, se fosse esse o caso, acho que não hesitaria em experimentar um podcast. Se bem que, honestamente, ponderasse provavelmente primeiro mudar de rádio para tentar a continuação do Indiegente.

Sentes que tens influência na forma como as pessoas consomem música? De que forma é que consegues ter essa percepção?

Tenho essa noção, porque me foram chegando relatos ao longo dos anos, mas não é uma percepção que tenha diariamente. E, para além disso, é uma responsabilidade para a qual não sei se, mesmo ao fim deste tempo todo, estou preparado (risos). Comecei a ter noção dessa influência há uns anos atrás, porque havia pessoas que me abordavam, em concertos ou em festivais, a mim e ao Henrique Amaro, para nos dizer que tinham aprendido a ouvir música connosco, que tinham cassetes gravadas dos programas… Até que o Henrique fez uma observação, num dia em que tinha encontrado mais uma dessas pessoas e comentei-lhe o estranho que era que eu próprio não tivesse essa percepção, porque nem sequer sentia que já fazia o programa há tantos anos assim. Ao que ele me disse: “É giro não é? Aquilo que nós pensávamos do António Sérgio, já existe uma geração que nos diz isso a nós”.

E, de alguma forma, esse é o reconhecimento máximo que queres no teu trabalho. Claro que as gerações vão passando e crescendo, talvez este meu público deixe até de se interessar por música e, com o tempo, esse seguimento vá desaparecendo. Mas, espero que não para já, porque, por exemplo, há pessoas que estão nos seus 20 e poucos anos que só começaram a ouvir o programa há cerca de três anos, o que é óptimo.

Achas que as bandas continuam a ter como um dos grandes objectivos de carreira passar na rádio?

Na realidade portuguesa acho que ainda conta, assim como ainda conta teres um disco físico. Apesar de, hoje em dia, não ser necessário teres um disco físico para veres a tua obra chegar ao público. Mas, acho que são marcos, tanto o passar na rádio como o ter um CD, que te trazem um certo sentimento de validação, de reconhecimento do trabalho. E, se calhar, o público até te encara de uma forma mais séria se passares na rádio, mesmo que tenhas muito mais views online.

Até porque há o outro lado da coisa, que vimos em algumas pessoas do star system português, que começaram por ter milhares de visualizações no YouTube, mas depois não lhes foi tão fácil concretizar isso no terreno. É um bocado como os eventos do Facebook, em que toda a gente diz que vai e quando lá chegas estão cinco gatos pingados. No sofá toda a gente gosta, mas depois ir lá e manifestar esse apoio, validar o artista, já é mais complicado. Por isso, acho que esses meios clássicos, como a rádio, os CDs e o palco, ainda são pilares importantes.

As pessoas reconhecem-te na rua, ou só mesmo quando abres a boca?

Eu já fiz televisão, embora não muita e há já vários anos, por isso há quem me conheça daí. Mas, claro que isso de só reconhecerem a voz acontece, “ah és tu? Pá fixe, fixe”. Por exemplo, aconteceu-me, logo quando comecei a trabalhar com o pessoal do Curto Circuito [na SIC Radical], fomos a Viana do Castelo para um festival e, no entretanto, o Alvim pediu direcções a um rapaz que estava a passar na rua, ele ajudou-nos e, quando acabou, virei-me para trás e disse-lhe “Obrigado”. Ele imediatamente pergunta-me “Nuno Calado?”, eu respondi que sim e ele rematou com um “Reconheci-te pela voz”.

Questão crucial para a humanidade: o que é afinal o “bichinho da rádio”?

Deve ser caruncho (risos). O bichinho da rádio consigo descrever numa palavra: paixão. Paixão pelo que fazes. É uma daquelas profissões (existem outras) que só consegues fazer se adorares o que fazes, porque senão é uma chatice monumental. É um trabalho muito mais fácil do que estar nas obras a carregar baldes de cimento, mas tem que haver um gozo especial em estares ali. Por isso é que, acho, existe esse tal “bichinho” – porque quando não estás a fazer sentes falta. Mas, acredito que isso exista noutras profissões – ou até mesmo em qualquer uma – desde que tenhas paixão.

Qual foi a pior coisa que te aconteceu em estúdio? Alguma vez te vomitaste todo, ou algo do género?

Vomitar-me todo nunca me aconteceu, mas perto. Estava a fazer madrugadas, numa altura em que não havia computadores, era tudo “à mão” e comecei a ficar com febre. Tinha que fazer sete horas em directo, com febre, e foi sem dúvida das coisas que mais me custou em estúdio. Punha a música alto, o mais alto que dava, tentava pôr-me de pé, tudo para tentar não adormecer. Se bem que falhei às vezes, adormeci uma ou outra vez durante a emissão e, quando o som vinha abaixo, quando começava a fazer o fade-out, acordava sobressaltado para mudar de música.

Outra história que conto sempre, que é das minhas histórias engraçadas de rádio, é com o Álvaro Costa em Vilar de Mouros. A cabina de emissão da Antena 3 era por cima da casa-de-banho do festival… Ao fim do primeiro dia já não se estava muito bem ali e, durante o segundo, a coisa já era péssima e ridícula. Subia-se por umas escadas de madeira, daquelas de encostar e não havia nenhum aviso ao publico que dissesse que não se podia subir. Às tantas, a meio da emissão, começa pessoal a subir lá para cima, (claro!), para ver melhor o concerto. E nisto, o Álvaro avisa um gajo que estava de pé, à nossa frente, para que, em vez de pé, pelo menos que se sentasse como os outros. O Álvaro diz-lhe isto uma, duas, três vezes… e o gajo nada, até que me passa a emissão, levanta-se e agarra o tipo pelo colarinho, já com os pézinhos no ar e o Álvaro pronto para o atirar lá para baixo… A namorada do rapaz já se agarrava ao Álvaro a gritar “Não faças isso!”. Imagina a minha cara, a ver tudo aquilo sem poder intervir, a ter que aguentar a emissão apesar de toda a loucura ali mesmo à minha frente. Nos festivais havia sempre qualquer coisa… Agora já não é assim, é tudo mais certinho, cronometrado. Já há pouco rock n’ roll (risos).


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Para assinalar os 21 anos do Indiegente decidiste juntar em palco uma catrefada de artistas nacionais. A música portuguesa está a viver o seu melhor período de sempre?

Sim, acho que a música portuguesa está a viver o melhor momento de sempre. Completamente. Pelo menos em termos de quantidade e de qualidade, de competência a fazer as coisas. Já nem vou pelo lado técnico da forma como se toca um instrumento ou da quantidade de notas, ou essas coisas, mas acho que as pessoas – uns mais miúdos e outros menos, porque há percursos bastante diferentes – estão num momento incrível. Acho, inclusive, que se há coisa que se devia pensar seriamente neste país em, finalmente e a sério, começar a exportar a música portuguesa. Os concertos, por exemplo, do Tigerman ou dos Dead Combo, não ficam rigorosamente nada atrás de qualquer banda estrangeira e são bons em qualquer parte do Mundo. Penso mesmo que Portugal, hoje, se arrisca a ser pequeno demais para a música que se faz e isso tem que mudar. De alguma forma, o Estado devia ter uma política de aposta na música nacional, até porque seria um bom investimento – exportar música é bastante interessante e não temos só o Fado. Claro que o Fado é único, só aqui é que existe, mas o Pop Rock é uma linguagem mundial. Com o Why Portugal já está a começar a fazer-se alguma coisa, mas se calhar é algo que requer mais apoios, mais verba, para ser um trabalho mais volumoso.

E temos que perceber isto: imagina que és uma banda e fazes 20 concertos em Portugal, mas se conseguires fazer mais cinco ou seis em Espanha, mais quatro ou cinco em França, etc, quando regressares no final do ano, em vez de teres feito 20 concertos conseguiste fazer 50 ou 60 e essa rodagem vai, de certeza, tornar-te numa melhor banda. É como quando há uns anos se dizia que ao futebol português lhe faltava os últimos 30 metros. Acontecia o mesmo com as bandas portuguesas, faltava-lhes os últimos 30 metros. Hoje, já só faltam os últimos cinco metros, que são a rodagem no palco. Claro que é duro, a vida de tocar, tocar, tocar. É preciso estar disponível para andar semanas dentro de uma carrinha, com cachets muitos mais baixos do que em Portugal, não é fácil. Mas, acho que há muitas bandas que estariam dispostas a tudo isso. Há uma expressão que eu sempre odiei, quando os discos nos chegavam havia sempre alguém que se saía com um “isto para português não está mau”, Felizmente, agora, caiu em desuso. A música portuguesa provou que quem dizia isso estava errado.


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