“Uma senhora, mãe de uma amiga, acaba de tentar se matar aqui na favela. Sem conseguir trabalhar – ela é ambulante -, não pode pagar o aluguel, não tem o que comer.” Este relato foi postado recentemente nas redes sociais por Rafael Oliveira, coordenador do Coletivo Favela Vertical, do Rio de Janeiro, e mostra como a desigualdade social brasileira parece ainda mais brutal durante a pandemia do coronavírus. O sucateamento do Sistema Único de Saúde também é preocupante e relatos dados por profissionais da saúde pública expõem como estamos vulneráveis. E, nesse momento de “quem poderá nos defender”, enquanto os governantes brigam entre si como se tivessem seis anos de idade, algo muito típico no modus operandi de Jair Bolsonaro, fica a brecha: o que os super-ricos podem e devem fazer? Meter a mão no bolso e ajudar é, moralmente, uma obrigação?
E já que existe muita gente pobre no Brasil, existe em contrapartida muita gente endinheirada. Um ranking da Forbes, publicado em 2019, anunciava a existência de 58 bilionários brasileiros. O patrimônio de todos eles juntos somava US$ 179,7 bilhões. O número 1 da lista é, obviamente, um banqueiro: Joseph Safra. Na verdade, ele é libanês naturalizado brasileiro, e atualmente ostenta uma fortuna estimada em US$ 25,2 bilhões. Procurado pela VICE, o banco Safra, que leva o sobrenome de seu dono, afirmou que estava destinando uma doação de R$ 20 milhões para ajudar hospitais públicos. Em nota, a assessoria de imprensa afirmou que o dinheiro será destinado “à ampliação de leitos hospitalares e compra de equipamentos e insumos médicos”.
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O segundo homem mais rico do Brasil é Jorge Paulo Lemann, dono da Ab Inbev (fusão da belga Interbrew com a brasileira Ambev) e sócio da 3G Capital, que controla redes como Kraft-Heinz e Burger King. Sua fortuna é estimada em US$ 22,8 bilhões. A Ambev também tem anunciado doações de produtos, como 50 mil frascos de álcool em gel para a Secretaria da Saúde do Distrito Federal, 500 mil garrafas do mesmo produto para hospitais públicos e a produção de três milhões de face shields (aquela máscara que protege todo o rosto) para que o Ministério da Saúde repasse aos profissionais da saúde.
O difícil é entender o quanto essas doações correspondem à fortuna total desses e de outros bilionários. São doações generosas ou só uma merreca?
Para sanar essa dúvida, recorri a uma especialista inglesa que tem como objeto de pesquisa a filantropia realizada pela elite do Brasil e da Inglaterra. Jessica Sklair é antropóloga e pós-doutora pela Universidade de Cambridge. Ela mora em sua terra natal, mas fala português fluentemente. Logo de cara, a acadêmica ressalta que, em momentos de crise, um país como o Brasil deixa ainda mais nítida sua desigualdade social absurda. Pergunto, então, se é obrigação dos mais ricos doar parte de suas fortunas. “Essa palavra ‘obrigação’ é complicada, é provocativa. Mas é bom que você provoque em relação a isso. É uma coisa pra se pensar”, ela diz pelo telefone. “A única instituição que poderia obrigar isso é o Estado. A maneira com que o governo, vamos dizer, ‘obriga’ os ricos, no sentido da redistribuição da riqueza – que, no fundo, é disso que falamos quando mencionamos doação – é por meio do imposto.”
Para termos uma ideia em números, uma reportagem publicada no início de abril listou o valor de doações feitas por algumas empresas para ajudar na prevenção e no combate ao coronavírus. A antropóloga explica que não existe um padrão de quanto essas empresas doam e que também não existem métodos para regular ou quantificar. “A única coisa que talvez se aproxime de um certo sistema ou tendência em torno disso é o sistema de incentivo fiscal em cima de doação. Depende muito de país para país, de como o estado oferece o incentivo fiscal em cima da sua doação. E, no Brasil, é pouco.”
Quando uma empresa faz uma doação para um projeto, ela tem descontos nos impostos que paga ao governo. No Brasil, temos três leis que são mais conhecidas: a Lei Rouanet, destinada a projetos de arte e cultura; a Lei de Incentivo ao Esporte; e a Lei do Audiovisual. Já as empresas que investem em projetos sociais se encaixam no processo de renúncia fiscal.
Jessica pontua que os trâmites são bem burocráticos. “Eu já ouvi investidores filantropos dizendo que o trabalho que dá entender esses sistemas e o tanto que você tem que gastar no conselho do seu advogado e contador pra te ajudar a fazer isso não vale a pena.”
Em 2018, o Brasil teve seu pior desempenho no World Giving Index, maior publicação sobre solidariedade do mundo. Ficamos no 122º lugar. Esse levantamento é baseado em três comportamentos específicos: ajudar um desconhecido, doar dinheiro e fazer trabalho voluntário.
Em sua coluna no UOL, o antropólogo Michel Alcoforado já traz no título de um texto recente sobre doações para combater a pandemia que “a elite brasileira é egoísta”. Ele destrincha sua experiência como pesquisador acadêmico, desde 2010 imerso no estilo de vida de milionários e bilionários do Brasil. “A minha tese é que a elite brasileira já se acostumou com as desigualdades sociais gritantes que permeiam o país”, publicou. “Os brasileiros veem o Estado e a sociedade como uma ameaça ao sucesso individual.”
São muitos fatores que dificultam uma análise mais profunda sobre as doações que os bilionários brasileiros têm feito. Mas, antes de finalizar a conversa por telefone, Jessica faz uma ressalva: “No mundo inteiro, em geral, os pobres tendem sempre a doar mais como porcentagem da sua riqueza do que os ricos. Isso é quase padrão mundial.” Alguma surpresa pra vocês?
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