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Cientistas encontraram maconha num antigo altar dos tempos bíblicos

Um santuário chamado o “Santo dos Santos” oferece “a evidência mais antiga do uso de cannabis no Antigo Oriente Próximo”. Quem era o traficante de maconha do Reino de Judá?
​View of the altar with cannabis remains. Image: Israel Antiquities Authority Collection, Photo ©​ The Israel Museum, Jerusalem, by Laura Lachman
O altar com os resquícios de cannabis. Imagem: Israel Antiquities Authority Collection, Foto © Museu de Israel, Jerusalém, por Laura Lachman.

O Reino de Judá, uma civilização da Idade do Ferro ao redor de Jerusalém, que aparece com destaque na Bíblia Hebraica, já se distinguia como um local de grande encantamento cultural.

Mas agora, arqueólogos resolveram sem querer um mistério que provavelmente nunca foi abordado em nenhuma escola dominical: Sim, alguns judaítas inalavam deliberadamente vapor de cannabis, e sim, eles provavelmente faziam isso pra chapar.

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Essa descoberta incrível é resultado de estudos cromatográficos de resíduos encontrados num altar que data do século 8 AEC. Os resultados representam “a primeira evidência conhecida de substâncias alucinógenas encontradas no Reino de Judá” e “a evidência mais antiga do uso de cannabis no Oriente Próximo Antigo”, segundo um artigo publicado na quinta-feira no jornal Tel Aviv.

“Nossa evidência de cannabis é a mais antiga da nossa região”, o colíder do estudo Eran Arie, curador de Arqueologia da Idade de Ferro e Período Persa do Museu de Israel, confirmou por e-mail. A descoberta “foi, naturalmente, uma grande surpresa”, ele acrescentou.

O altar de pedra calcária que preservou a cannabis queimada fica no “Santo dos Santos”, um espaço sagrada em Tel Arad, uma atinga fortaleza no Vale de Bersebá de Israel. Escavações em Tel Arad começaram nos anos 1960, e o estranho resíduo no altar foi coletado na época, mas os testes de seus conteúdos químicos se mostraram inconclusivos. O Santo dos Santos foi transportado para o Museu de Israel em Jerusalém, onde é uma das principais atrações há décadas.

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Vista aérea de Tel Arad. Imagem: אסף.צ no projeto Q52.

Arie e Dvory Namdar, pesquisador sênior do Centro Volcani de Pesquisa Agrícola que coliderou o estudo, decidiram que era uma boa hora de reanalisar os resíduos com técnicas mais precisas e modernas. Além de identificar cannabis, a equipe testou resíduos encontrados no topo de um altar mais alto do santuário, que eles descobriram ser olíbano.

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Então quem era o traficante de maconha do Reino de Judá? É uma questão desafiadora considerando a natureza sem precedentes da descoberta.

“Até agora, não temos nenhuma informação sobre como cannabis poderia chegar até Arad em geral e Judá em particular”, disse Arie. “Mas como sabemos que olíbano vinha da Arábia do Sul (agora Iêmen e sul da Arábia Saudita), teoricamente essas regiões poderiam ser usadas como agências de comércio de cannabis.”

“Só descobertas futuras vão ajudar a resolver esses enigmas”, ele acrescentou.

E de fato, outro enigma é qual exatamente era o papel da cannabis e olíbano nos rituais do santuário. Segundo os resultados do estudo, os vegetais eram misturados com outras substâncias para ajudar na queima e emissão de vapores: gordura animal para o olíbano e possivelmente algum tipo de fezes de mamíferos para a cannabis.

A cannabis do altar também não continha sementes ou pólen discerníveis, o que contrasta com maconha antiga encontrada em outros sítios arqueológicos na Rússia e China. Por essa razão, Arie e seus colegas especulam que a cannabis foi importada para Tel Arad como resina seca – em outras palavras, haxixe.

Todos esses detalhes levam a crer que cannabis tinha um “papel deliberadamente psicoativo”, o que se encaixaria com o “uso frequente de materiais alucinógenos para propósitos de cerimônia religiosa no Oriente Próximo Antigo”, segundo o estudo.

“Podemos supor que a fragrância do olíbano dava um ambiente especial para os cultos no santuário, enquanto a queima de cannabis levava pelo menos alguns sacerdotes e adoradores a um estado religioso de consciência (êxtase)”, disse Arie. “É lógico supor que essa era uma parte importante das cerimônias que aconteciam no santuário.”

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O altar mais alto com olíbano (esquerda) e o altar mais baixo com cannabis (direita) em exposição no Museu de Israel, no Santo dos Santos. Imagem: Israel Antiquities Authority Collection, foto © Museu de Israel, Jerusalém, por Laura Lachman.

Apesar dessa parecer ser uma experiência religiosa intensa – ou pelo menos uma festa interessante – a escala pequena do santuário sugere que o número de presentes nos rituais era limitado, provavelmente a elite de Tel Arad. O resto dos moradores da fortaleza deviam celebravam num pátio aberto próximo, especulou Arie.

Qualquer que fosse a natureza dessas cerimônias canábicas, elas parecem ter durado apenas duas gerações, no máximo. Estudos arqueológicos no santuário indicam que a erva foi usada de cerca de 760 ou 750 até 715 AEC – ou talvez, apenas uma ou duas décadas dentro desse período – antes do local ter sido deliberadamente enterrado, permanecendo intocado por milhares de anos.

Há um debate sobre o motivo para os judaítas de Tel Arad terem enterrado o santuário, com explicações que vão de reformas nas cerimônias feitas pelo Rei Ezequias até uma tentativa de proteger o espaço valioso da invasão dos assírios. Qualquer que tenha sido a razão verdadeira, o sepultamento foi uma ação inteligente para a posteridade, já que permitiu “uma boa preservação do material orgânico nos altares”, segundo o estudo.

Então quais as chances de encontrar mais maconha antiga – ouso dizer, biblicannabis – nessa região arqueológica tão rica? Arqueólogos já encontraram cerca de 50 altares de pedra relacionados com artefatos de Tel Arad, de origem nos reinos antigos de Israel, Judá, Moabe e cidades-estado filisteias, segundo Arie.

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“O problema”, ele disse, “é que devido ao clima úmido de Israel, material orgânico se deteriora e não pode ser preservado”.

Mas outra equipe de arqueólogos encontrou material queimado em dois altares na Jordânia (antiga Moabe), que ainda não foi testado quimicamente. É possível que estudos futuros dessas amostras – e qualquer outro objeto de cerimônias como elas – possam fornecer mais detalhes sobre as origens, transporte e uso de substâncias como cannabis no Oriente Próximo Antigo.

Por enquanto, é suficiente apreciar a surpresa de encontrar cannabis num reino perdido tão cheio de história.

“A presença de cannabis em Arad é um testemunho do uso de substância que alteram a mente como parte dos rituais em Judá”, a equipe conclui no artigo. “As plantas detectadas neste estudo podem servir como uma fonte extrabíblica para identificar o incenso usado em práticas religiosas não só em Arad, mas por toda parte em Judá, incluindo Jerusalém.”

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