“O fado é cantar a própria vida. Para mim, um Leonard Cohen é um fadista”

Quebrou barreiras no fado e nunca se conformou O álbum Amai, de 1994, causou polémica no meio mais tradicional, pois misturava fado com samples, música pop e ainda metia lá pelo meio uma versão de “Sorrow’s Child”, de Nick Cave. Portugal estranhou, mas David Byrne, dos Talking Heads, entranhou e deu-o a conhecer ao Mundo através do catálogo da sua editora, Luaka Bop.

Paulo Bragança é um conversador nato, daquelas pessoas com quem apetece muito tertuliar e ouvir. Como naqueles serões à antiga. Saiu de Portugal triste com isto tudo, aventurou-se pela estrada fora, qual Jack Kerouac luso e acabou a viver num castelo na Irlanda rural. Agora, é o tempo de voltar.

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Em Agosto último apresentou-se ao vivo no Festival Entremuralhas, em Leiria e falámos com ele sobre o novo disco que está para vir, fadistas punks, a vida, a Lisboa que ninguém está a ver e o regresso à música depois de uma espécie de exílio espontâneo.


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VICE: Ouvimos dizer que tens um novo disco na calha, é verdade?

Paulo Bragança: Sim. Convidei o Carlos Maria Trindade para trabalhar comigo. É uma aliança que vem desde 1990 e era mais do que natural. Esse disco está para ser acabado, será mais (eu detesto dar nomes as coisas)… será mais… limpo? É um processo que tem quatro anos, mas que quando começou foi sem deadlines no horizonte, sem pressão de editoras. Não havia ditaduras estéticas.

Limpo em que sentido?

Limpo no sentido de não haver tanta coisa, mais ligado à palavra. Se calhar menos é mais, mas isto pode não ser nada, não faço a mínima ideia de nada… é um laboratório experimental, acima de tudo.

Mas, sempre ligado ao fado?

Sim, a matriz claro que é essa. Gosto muito de fazer outras coisas, mas, para mim, a questão do fado – e não sou eu que o digo – é que os próprios fadistas do princípio do século XX, finais do século XIX, eram uns punks, uns outsiders, que se queixavam, que cantavam à vida.

O regresso de Paulo Bragança aos palcos será em breve acompanhado por um disco. Foto por Gil Álvaro de Lemos

Em certa medida também um pouco na génese da música de intervenção?

Precisamente! Música de intervenção da época. Temos de tentar perceber como é que as coisas seriam nessa época. Adoraria saber exactamente como era, mas não temos ainda máquinas de voltar atrás ou à frente, porque se houvesse ia lá ver como é que era. E não seria só eu, haveria de ir muita gente. Mas sim, a matriz do fado está lá, mas o fado é cantar a própria vida. Para mim, um Leonard Cohen é um fadista.

Tu cantas Nick Cave…

Ui, esse então… tem lá tudo.

Pegando nesse conceito, o fado é cantar à vida mas, se calhar, também à má vida, à sorte e à má sorte…

A vida inclui tudo isso, claro. Se bem que acho que a vida, de sorte não tem nada. É mais uma questão de castigo, de penitência.

Mas será que tem de ser sempre assim? Não poderá haver nas tuas músicas um lado alegre, de celebração?

Há, mas não é uma questão de alegria. Não há alegria sem tristeza, nem tristeza sem alegria. São dois conceitos em que um não existe sem o outro. Repara na expressão: “Morri a rir”. Se formos analisar a raiz etimológica e se formos falar do que é “normal”, para mim não há nada que seja normal, essa tristeza é mais normal do que a alegria.

Não quer dizer que uma pessoa ande aí pelos cantos a chorar todo o dia, não é nesse sentido. É a busca da exacta permanência de onde estamos. É claro que há momentos melhores e outros piores, momentos maus e muitos bons, mas isso encerra tudo. Eu acho que se tivesse de definir a vida e só pudesse escolher entre a alegria e a tristeza, escolheria a tristeza! Ou então tínhamos de arranjar uma palavra que contemplasse as duas.


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Sempre tiveste uma postura diferenciada. Estarias tu à frente do teu tempo e agora é que faz sentido?

Não faço ideia, porque nunca pensei nesses termos. Estou é preocupado com aquilo que tenho. Se vou para cima de um palco, tenho de gostar daquilo que estou a fazer, não pode ser de outra forma. Acho uma audácia ir buscar coisas que já estão feitas e muito bem feitas, de há 40 ou 50 anos atrás – não estou a dizer que não se possa ir buscar -, mas ser sempre igual.

No universo do fado isso acontece muito e à descarada, para não dizer outra coisa. E isso custa-me. Portanto, estando à frente ou não, não foi pensado. Foi como aconteceu, assim como a minha retirada, que também não foi pensada. Este regresso já foi uma decisão tomada e pensada, mais uma maneira de começar a perceber o que é que eu vou fazer da minha vida, se vou acabar aquilo que comecei, ou não, enfim… decidi… take a shot and we’ll see.

Neste regresso não fizeste a coisa por menos e rodeaste-te de excelentes músicos…

Sim, são todos óptimos. Mas, sobretudo, gostamos todos muito disto, damo-nos bem. De outra maneira não seria possível. Nos tempos da Luaka Bop, do David Byrne, não que quisesse, mas havia a possibilidade de eu receber um tratamento diferente em relação aos restantes músicos, mas comigo não pode ser. Se eles não estiverem bem, não estão bem comigo e, se vamos para a estrada, tem de haver harmonia.

Já vi o que acontece noutros grupos quando está cada um para seu lado e até sei de casos em que nos bastidores andavam literalmente à cacetada e aos insultos, mas depois iam para o palco, faziam o número que tinham a fazer e retiravam-se. E duas bandas que até são bem conhecidas em Portugal, mas não vou estar aqui agora a falar disso. Sei que comigo nunca poderia ser.

Até deve haver mais bandas assim, certamente [risos].

Pois, isso não sei. Eu conheço duas! [risos]

Hoje, em 2017, sítios emblemáticos como o Cais do Sodré, em Lisboa, por exemplo, já não são como eram antigamente, como o fado os cantou…

Sim, infelizmente é verdade, está muito diferente.

Está lá a VICE, por exemplo, vê lá tu ao ponto que isto chegou… [risos]. Mas hoje, em 2017, dizia eu, cantas sobre o quê?

Se ouvires a letra da música que ainda nem tem título definitivo – será Decreto ou Ultimato – diz: “Daqui te peço Lisboa, não me fales do teu fado, nem rosários de amarguras, das tuas ruínas escangalhadas a rolar pelas colinas…”. É um bocado a Lisboa que parece que toda a gente não está a ver. Há muitas colinas escangalhadas, os símbolos a rolar por ali a baixo, os corvos não existem, as naus também não e é outra Lisboa, de facto. De modo que tenho de ir à outra [Lisboa], porque esta ainda não me diz muito. Não sou contra o progresso em Lisboa, não é pecado ganhar dinheiro, mas é pecado ser soberbo. Se é que há aqui algum pecado.

No entanto, parece-me que esta questão está a ser muito instrumentalizada e Lisboa corre o risco de vir a ser uma cidade sem alma! Como já é Veneza, por exemplo. Veneza às seis da tarde não tem ninguém. Durante o dia, são aos magotes, gente por todo o lado a tirar fotografias indiscriminadamente, mas já ninguém lá mora. Em certos bairros de Lisboa tens sítios onde as pessoas estão a ser despejadas para se construirem hostels.

A Irlanda lida muito bem com isso. Durante o ano inteiro têm uma expressão incrível no Mundo, com prémios nobel, música, actores, etc… mas lida com o turismo de uma maneira muito soft, não é a causa da sua existência, mas é mais uma entre outras maneiras de viver. Não pode ser o tudo em detrimento do nada.

E se calhar em Lisboa também faltam poetas, não?

Não sei por onde eles andam. Artistas há muitos, agora a arte… [risos]. Mas, volto ao que disse há pouco. Para mim estar em palco é a causa disto tudo. Preciso de ser o primeiro a gostar de estar em palco para o dar a alguém. Isso não tem nada a ver com vaidades. Seja na música ou noutra coisa qualquer. Estando num situação de que, se quiser não faço, então não faço mesmo. Foi também por isso que me fui embora, porque sabia que não poderia dar nada de jeito a ninguém.

§

Entretanto – e enquanto não sai o seu próximo disco, ainda sem data de lançamento -, Bragança participa no novo álbum dos Moonspell, 1755, cantado em português, com o Terramoto de Lisboa como tema e que irá ser editado a 3 de Novembro. A banda de Fernando Ribeiro tinha uma música que foi escrita especificamente para ele, mesmo antes de se saber se seria possível participar. Tudo se conjugou. Paulo Bragança conta também com uma falange de metaleiros entre os seus fãs e a boa vontade entre quem se respeita mutuamente fez o resto.

Na noite desta entrevista, no festival gótico Entremuralhas, em pleno castelo de Leiria – uma noite mágica de Verão, poderíamos poeticamente dizer -, Bragança cantou à vida e deixou muitos na plateia a chorar. Não estavam tristes, antes pelo contrário. Estavam comovidos. E isso, por vezes, reflecte-se na forma de lágrimas. Lá está, a tristeza também pode ser uma coisa linda. Paulo Bragança está de volta. Ainda bem.


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