Em sua nova coluna para a VICE, o autor de sci-fi & fantasia afro-americana e pesquisador Ale Santos traz os contextos das causas raciais em questões culturais, políticas e até do entretenimento de nosso país. Esta coluna é um esforço de compartilhamento de conhecimento numa época em que o negacionismo cresce e influencia diretamente o imaginário das pessoas. Bem vindo ao Guia Historicamente Correto do Brasil.
“Não sou Caxias [Duque de Caxias], mas sigo o exemplo desse grande herói brasileiro. Vamos pacificar o Brasil e, sob a Constituição e as leis, vamos constituir uma grande nação”
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Isso imediatamente me acendeu um sinal de alerta, a figura do patrono das Forças Armadas é um tanto quanto controversa e as formas de repressão que lhe renderam o título de “pacificador” não seriam aceitas por nenhum tribunal de justiça minimamente comprometido com a preservação da dignidade humana.
Revisar a história dessa figura é entrar em um grande combate travado há décadas entre historiadores e os militares que carregam sua visão nacional-patriótica e foram responsáveis pela construção do mito. Uma construção tida por muitos como desumanizadora, como descrito por Francisco Doratioto: “A historiografia escrita por autores militares desumanizou Caxias, ao apresentá-lo como soldado e cidadão sem falhas. A artificialidade dessa imagem contribuiu para a pouca identificação com ela por parte do cidadão comum”.
A verdade era que Luís Alves de Lima e Silva ou Duque de Caxias era um homem daquela época. Nasceu em 25 de agosto de 1803 e como um homem de seu tempo, era imperialista e escravocrata. Todo o conceito de sociedade e paz que o governo queria para o Brasil não compreendia a vida dos índios ou negros e seus descendentes. Qualquer “raça” que fosse considerada inferior à elite brasileira poderia ser exterminada sem nenhum escrúpulo, se a Coroa considerasse assim necessário para manter a ordem ou aumentar seu poder econômico.
Os tempos mudaram, as pessoas também. Convivemos no Brasil com indivíduos que, antigamente, estavam em lados opostos e essa nova realidade nos dá a liberdade de olhar para trás e repudiar comportamentos sórdidos, entender suas motivações e principalmente o seu impacto na vida de cada um – apesar disso, ainda há aqueles que digam coisas como “esqueçam as perversões daquele tempo, não podemos julgá-las”. Oportunamente (ou não), são sempre aqueles que descendem de quem não foi oprimido.
Revisitando uma das primeiras campanhas de pacificação, encarada pelo militar, podemos entender o seu total desprezo por certas comunidades.
10 Mil mortos na Balaiada
No final de 1838 a população pobre do Maranhão sofria na mão de ricos e policiais que deveriam manter a ordem. O sentimento era de abuso por parte das oligarquias da província. Certo dia Manuel Francisco dos Anjos, o “Balaio” viu policiais estuprarem suas duas filhas. Para piorar a situação, era costume do exército prender pobres indesejados como recrutamento forçado, (que foi amplamente utilizado, posteriormente, na guerra do Paraguai). A prisão do irmão do vaqueiro Raimundo Gomes somou forças para a explosão de uma revolta popular, alcançando 12 mil homens contra o governo
Mesmo sem estratégia, uma organização rural e desarticulada, os balaios venceram alguns confrontos. Não demorou para tomarem a cidade de Caxias. Após essas vitórias, então, entra na história o coronel Luís Alves de Lima e Silva.
Ele foi enviado pela regência, como Presidente e Comandante das Armas da Província. Cavalaria, Canhões e armas de fogo foram organizados contra a guerrilha que utilizava foices, facões e algumas armas de fogo que conseguiam nas fazendas tomadas.
A violência do ataque era para evitar que a revolta desse exemplos a outras que estavam acontecendo naquele período. Dois fatores podem ter impulsionado isso: O governo regente criado enquanto Pedro II não alcançasse a maioridade, enfrentava várias insurreições; as histórias sobre a independência do Haiti em 1804 deixava vários impérios com medo de algo, tendo em vista que a maior parte da população do Maranhão era de pretos e mestiços (caboclos, cafuzos etc).
Contam que o combate entre os balaios e o exército imperial foi sangrento. Os revoltosos estavam ruindo, mas ainda receberam o apoio do líder Quilombola Cosme Bento das Chagas com um número de 3000 negros. Mesmo assim, os balaios não foram páreo para a força militar organizada, 10 mil pessoas foram massacradas em nome de uma “política da pacificação”. Comunidades inteiras eram ameaçadas, caso dessem apoio para algum deles.
Em agosto de 1840, Pedro II havia alcançado a maioridade e Luís Alves de Lima e Silva decidiu espalhar, uma proclamação que dizia: “ Uma nova época abriu-se aos destinos da grande família brasileira.[…] Aproveitai-a. Amor ao Imperador, respeito às leis e esquecimento das vergonhosas intrigas que só tem servido para enfraquecer. Um só partido enfim, o do Imperador.”.
É claro que esse partido único e essa família brasileira desprezava qualquer um daqueles negros e mestiços do estado do Maranhão. “Hoje historiadores já escrevem sobre essa nova versão. A versão dos vencidos, dos balaios como verdadeiros heróis na batalha contra os opressores”, disse o pesquisador Wibson Carvalho.
O Massacre de Porongos
A prova dessa pacificação seletiva, beneficiadora das elites, é a atuação de Caxias na revolta Farroupilha. Conhecido um dos episódios mais vergonhosos, desleais e intragáveis da história brasileira.
A famosa Guerra de Farrapos colocou do lado o império contra os proprietários de terras escravagistas. Na época o Brasil era dividido em províncias e o RS era a província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Os farrapos queriam independência. Os insurgentes gaúchos, proprietários rurais reivindicavam um tratamento mais privilegiado como a diminuição dos impostos. A província já vinha de um amplo histórico de divisões ideológicas com o Governo Regente, por várias vezes tentaram instaurar um governo próprio. Até que assim fizeram em 1836
Quando, foi proclamada a República Rio-Grandense, as regras poderiam ser diferentes, inclusive as leis de escravidão. Os Rio-grandenses estavam longe de serem abolicionistas visionários da liberdade, só que a guerra que durava anos necessitava de recursos bélicos, principalmente soldados. Logo, negros, foram convidados para a luta pela nova república sob a promessa de receberem a liberdade quando a guerra chegasse ao fim. Morrer no campo de batalha era melhor do que no tronco com grilhões, muitos agarraram a chance com fervor.
Dois corpos militares foram criados, com mais de 400 homens que vinham inicialmente de onde hoje residem os municípios de Canguçu, Piratini, Pedro Osório, Arroio Grande e outros. A grande maioria dos negros não eram libertos pelos farrapos, estes no máximo vendiam para a guerra
Então quando atacavam uma fazenda inimiga, eles ofereciam a carta de alforria para que fizessem parte do exército. Os negros nunca tiveram os mesmos ideais da República Rio-Grandense, estavam ali pela sua sobrevivência e a esperança de liberdade.
O conflito entre as duas repúblicas era danoso para ambos, mesmo após 10 anos de batalha o Império nem reconhecia aquela província como república. E achou melhor resolver o conflito de forma diplomática, Luiz Alves de Lima e Silva que havia se tornado Barão em 41 e escolhendo o nome Caxias para lembrar da sua grande vitória no Maranhão, foi enviado para as negociações. Vale ressaltar que sua carreira foi conquistada também pela sua habilidade de articulação política. No caso, o governo prometeu até ressarcir os gastos com o conflito, para alguns proprietário do exército farroupilha.
Foi quando um grande impasse surgiu: o que fazer com os lanceiros negros que lutaram por uma década ao lado dos farrapos? O Brasil não iria alforriar negros com treinamento militar em meio ao período da escravidão.
Alguns farroupilhas entregaram os negros de volta a escravidão outros resistiram temendo uma rebelião pela traição que estavam cometendo. Em 1844, Caxias, se encontrou com o general farroupilha David Canabarro e chegaram a uma solução para o conflito. Canabarro ordenou que os Lanceiros negros montassem acampamento, desarmados, no local conhecido como Arroio Porongos, atualmente chamado de Pinheiro Machado.
Na madrugada do dia 14 de Novembro daquele ano os lanceiros negros foram atacados pelo exército imperial. As instruções secretas de Caxias para o comandante legalista da operação dizia:
“Poupe o sangue brasileiro o quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou dos índios, pois bem se sabe que essa pobre gente ainda pode ser útil no futuro”
O massacre de Porongos foi palco da morte de cerca de até 1.700 lanceiros negros (as estimativas não são exatas), uma verdadeira chacina que representa mais de 50% das baixas de toda a Revolução Farroupilha em seus dez anos de existência .Mais uma vez, foi considerado um projeto de pacificação efetivo para quem importava, os detentores do “sangue brasileiro”. Barão de Caxias terminou sua carta de instrução com “Deus vos guarde”, que irônico.
O Genocídio Paraguaio
Suas sucessivas vitórias levaram ao topo da carreira militar e a comandar o exército em uma das mais importantes guerras que o Brasil enfrentou e o maior conflito internacional da América do Sul, a guerra do Paraguai contra a Tríplice Aliança, formada por Brasil, Argentina e Uruguai (1864). Dois anos após o início desse conflito, Caxias assumiu o controle supremo das tropas brasileiras e mais tarde ainda em 1868 ele passou a controlar também o exército dos aliados.
Um dos resultados desta guerra foi a destruição da economia do Paraguai e a morte de até 69% da população do país. Dessa atuação vem a fama de genocida, claro que não, por parte dos Brasileiros. Ao contrário, dizem que após a Guerra do Paraguai criou-se um sentimento nacionalista militar muito forte. A gente sabe que, na história do mundo, quem vence a guerra sempre conta sua versão cheia de pompas e heroísmo, mas uma verdade implacável sobre histórias é que o comandante sempre assume duas figuras: o herói dos vencedores e o vilão dos sobreviventes. Então nas fronteiras brasileiras, os militares não iriam escrever histórias que mancham a honra da sua instituição ou o legado do seu patrono. Aliás, eles frequentemente articulavam as narrativas para parecer menos opressora.
O maior exemplo dessa falha de memória intencional dos militares é que o governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca, aprovou a versão do Hino de Proclamação da República que continha a frase “Nós nem cremos que escravos outrora, Tenha havido em tão nobre País…” em 1890 (dois anos após a abolição oficial da escravatura)
Porém em 1979, Júlio José Chiavenato publicou (em meio a Ditadura Militar) a obra “Genocídio Americano: A guerra do Paraguai”, contrariando as representações históricas nacionais que nunca foram questionadas. Seu envolvimento com esse genocídio começa quando ele determinou que era mais seguro sair do país, após o decreto do AI 5 e a perseguição que vários jornalistas sofriam. Ao entrar em contato com a realidade paraguaia, com todas as consequências da guerra, ele percebeu que havia ainda um trauma naquele povo. Vários poemas e contos orais, chamados de guarânias, foram escritos sobre revelando uma versão sombria dos acontecimentos.
Um deles apareceu no jornal quinzenal Cabichuí em 24 de julho de 1868 e dizia:
Os bárbaros inimigos
Da nossa paz feliz
Eles concordaram em uma guerra feroz
A morte do Paraguai […]
Enrique D. Parodi (1857-1917 ), publicou na Revista Paraguaya seu poema “Pátria”, que destaca o caráter genocida da guerra :
Pátria, amada deusa do meu culto,
compêndio do meu amor e minha esperança;
berço de patriotismo e nobreza […]
E aí, na solidão da hecatombe
os braços no peito, abandonados,
você espera como Lazarus pela mensagem,
a voz poderosa que diz: marcha!
O sucesso da sua obra, que foi publicada em vários países, não foi recebido de bom grado pelo governo militar Brasileiro. O general Floriano Peixoto Keller escreveu uma carta endereçada ao diretor do Arquivo Nacional, Raul Lima, criticando a obra “Genocídio americano” e solicitando que fosse tomada alguma providência a fim de restaurar a “verdade histórica – em 27 de dezembro de 1979.
Segundo a pesquisadora Silvânia de Queiróz, apesar de ter lido a obra de Chiavenatto o General Historiador não refutou em nada o seu conteúdo. Ele se limitou a dizer que o livro poderia prejudicar as relações entre o Brasil e o Paraguai e ainda acusou o autor de não ter pesquisado no Arquivo Nacional – como se fosse razoável encontrar a verdade abertamente em livros e registros durante a ditadura.
Enquanto isso, no acervo do museu Mitre, em Buenos Aires, existe uma carta assinada por Duque de Caxias para o imperador dom Pedro II. O seu conteúdo é explícito: “O general Bartolomeu Mitre [comandante das tropas da Argentina] está resignado plenamente e sem reservas às minhas ordens; ele faz quanto eu lhe indico, como tem estado muito de acordo comigo, em tudo, ainda enquanto a que os cadáveres coléricos, se joguem nas águas do Paraná, já da esquadra como de Itapiru para levar contágio às populações ribeirinhas”.
Há quem conteste esta evidência e questione as motivações de Júlio José Chiavenatto. Porém a atuação de Caxias na Balaiada e em Porongos, deixam bem evidente a extrema capacidade que ele tinha para promover estratégias de destruição em massa e chamá-las de pacificação.
Herói do sangue brasileiro
De forma alguma, um texto como esse vai conseguir diminuir o patriotismo e a memória histórica militar brasileira. Tenho certeza que Chiavenatto ainda será amplamente questionado por conta do orgulho das Forças Armadas – mesmo que eles continuem negando o extermínio de mais da metade do povo paraguaio.
Também acho desleal a ideia de que Duque de Caxias não seja um herói nacional. Verdade seja dita, ele representava a máxima conservadora daquela época: um escravocrata que repudiava negros, um homem da elite que não se importava com os pobres e qualquer minoria, um militar rígido capaz de derramar muito sangue para defender seus ideais. Esse era o nosso país, Luís Alves de Lima e Silva era o campeão que o sangue brasileiro precisava e o demônio que assolava quem tentasse abalar a tranquilidade do Império.
Só que a sociedade agora é outra. Composta por várias pessoas como os mestiços do Maranhão, indígenas do Paraguai e negros de Porongos. Desconsiderados da sociedade, que, hoje, não precisam respeitar a memória de um homem que só queria proteger o sangue branco brasileiro.
Espero mesmo que não seja essa a face de Duque de Caxias que o futuro presidente tenha como exemplo.
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