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Bolsonaro e vaporwave: a tentativa estética tardia de um governo que rejeita arte

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Um dos aspectos simbólicos do governo de Jair Bolsonaro, para além das piadas escatológicas e erros de português, talvez seja a estética duvidosa que ilustra propagandas oficiais e não oficiais do governo, principalmente na internet, em vídeos disseminando conspirações e montagens feitas no Paint por seguidores convictos do presidente e seu clã. É nesse embalo que o vaporwave passou a ser marginalmente uma espécie de estética oficial do governo, sendo adotada no Twitter por Abraham Weintraub, o ministro da Educação; Filipe G. Martins, assessor especial da Presidência da República e representante do olavismo no governo e agora, mais recentemente, no novo avatar em tons neon de Eduardo Bolsonaro. O vaporwave é uma apropriação tardia de um microgênero musical e de arte digital levada a cabo um por governo cuja única proposta estética é a completa ausência da mesma.

Depois das reportagens publicadas pela Folha de São Paulo, Veja e O Globo, a discussão sobre o vaporwave e o bolsonarismo se tornou quase um papo do ovo e da galinha — o vaporwave passou a ser apropriado pelo bolsonarismo por causa da imprensa ou a imprensa passou a falar de vaporwave por causa de uma apropriação chupinhada dos EUA vinda de simpatizantes do clã Bolsonaro? Sim, as reportagens explicando avatares usando filtros de VHS, golfinhos e estátuas greco-romanas defendendo um governo de extrema-direita talvez ajudaram mais ainda na disseminação irônica dessa estética, mas antes delas a direita já demonstrava uma certa atenção sobre o vaporwave, ou, mais especificamente, sobre o fashwave — um desdobramento estranho do gênero, nascido no 4Chan e fóruns onde a presença da extrema-direita se tornou unânime nos últimos anos.

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O vaporwave se popularizou anos 10 afora principalmente através de dois vetores: o Tumblr e a Rihanna. O primeiro era plataforma outrora habitada por jovens estranhos onde a estética oitentista, meio new-age e ambient foi consagrada por produtores musicais como Ramona Xavier, James Ferraro e Daniel Lopatin que caprichavam em faixas estranhas meio chopped and screwed. Já a Rihanna foi quem apresentou a “gênero” de forma mais pasteurizada para o mundo, mais especificamente no programa humorístico Saturday Night Live em 2012 ao apresentar seu hit “Diamonds” na frente de uma tela verde reproduzindo golfinhos, ondas do mar e imagens mal renderizadas que pareciam saídas de um site do Geocities.

Assim como outras ondas músicas nascidas na internet como o witch house e o cloud rap, o vaporwave atraiu atenção por ir além da música em si, com uma estética de arte digital refletida em ótimos EPs como Floral Shoppe da Macintosh Plus e Chuck Person’s Eccojams Vol. 1 de Lopatin, entre centenas de outros sons de produtores obscuros que depois foram apropriados pela renovação da MTV na mesma década e e mesmo na fotografia e direção de arte dos filmes do diretor Nicolas Winding Refn.

A graça do vaporwave, no caso, era a ironia afiada, entendida como uma piada interna pelos fãs e artistas que moldaram esse microgênero nascido, criado e reproduzido na rede mundial de computadores afora. O estilo chegou até ser chamado de “chillwave para marxistas”. Nos clipes, capas de álbum e posts do Tumblr que traziam essa estética, ou melhor, essa A E S T H E T I C, há referências de marcas como a Fiji Water e grifes de sportwear como a Nike e Adidas. Na música, os produtores se apropriaram de trilhas sonoras de lojas de departamento (estilo denominado muzak ou “música de elevador”), cheias de sintetizadores, usadas a rodo nos anos oitenta durante o boom dos shopping centers e que de certa forma se traduziam como trilha sonora da ascensão do neoliberalismo de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que mais tarde serie relembrado como um momento de derrota entre as esquerdas mundiais.

A ironia aceleracionista de símbolos de consumo do vaporwave está também justamente em invocar uma estranha sensação de nostalgia ao ouvinte, usando elementos do passado reunidos em gravações lo-fi, e criando uma expressão artística nova e estranha. Para quem escuta, fica a terrível epifania de que grande parte de nossas lembranças e prazeres estão atreladas ao consumo e a sugestão dele através da publicidade e da saudade de épocas que não vivemos.

As assombrações do capitalismo invocadas pelo vaporwave chamaram a atenção de autores e críticos culturais como Mark Fisher e Grafton Tanner, que associaram o movimento musical com a hauntology (assombrologia, em tradução livre), um conceito criado pelo filósofo pós-estruturalista Jacques Derrida em sua obra Espectros de Marx publicada em 1993.

A hauntology é uma junção de haunt (“assombrar”) e ontologia, ramo da filosofia de trata da natureza dos seres. Referenciando a primeira frase do Manifesto do Partido Comunista que menciona “um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo”, o filósofo discute a importância de Marx após a queda do Muro de Berlim em 1989 e coroa o termo, que mostra uma disjunção de tempo e espaço na nossa identidade, onde a percepção do presente é influenciada pelo passado e de como imaginamos o futuro. Algo parecido com uma nota solitária em uma partitura que só faz sentido se colocada em junção com a nota anterior e a nota musical que está por vir, formando um conjunto.

A aplicação da hauntology de Derrida na música começa aparece pela primeira vez em 2006 em artigos publicados por Fisher em seu blog, k-punk. Para Fisher, especialmente após os anos 1980, toda a cultura pop é pautada pela nostalgia e pelo resgate de épocas passadas, gerando assim uma percepção de que tudo já foi imaginado e não há nada mais a ser criado. Em contraponto à nostalgia, existiria a hauntologiy musical onde artistas como Boards of Canada, o produtor Burial e o selo londrino Ghost Box passaram a criar obras que imaginam um futuro utópico perdido, outrora sonhado por gerações passadas e que agora se encontra em falência constante e cuja única saída é ficar promovendo revivals de épocas passadas. Esse conceito encontra eco no sucesso de séries atuais como Stranger Things, que apelam para um passado nem tão distante e celebradas como inovadoras, quando na verdade são apenas revisitações de um mesmo tema.

Considerando a ironia sobre a dominação do capital abordada pela vaporwave, é no mínimo cômico a forma que a estética está se esvaindo atualmente através de filtros genéricos de Instagram. O fashwave (cujo “fash” é uma referência direta a “fascismo”) surgiu entre 2015/2016 durante a campanha de Donald Trump à presidência, como um microgênero do vaporwave que misturava elementos do nazifascismo com trechos de discursos de Donald Trump. Assim como grande parte do lixo cibernético, um volume considerável dos memes fashwave usando o Pepe The Frog saíram de boards 4Chan — espaços onde artistas consagrados do vaporwave como Daniel Lopatin buscavam também referências para suas obras.

No Brasil, a experimentação do vaporwave chegou rapidamente através de produtores de música eletrônica e foi reproduzida em festas de rua até ser efetivamente substituída pelo techno 4×4 —que domina até hoje as raves e baladas eletrônicas. O vaporwave também encotnrou espaço na memesfera brasileira em 2014 através da página de Facebook B R A S I L W A V E, aplicando a estética musical em funks como “Moleque Transante” e “Bateu Uma Onda Forte“. Também foi encontrou espaço, olha só, em memes do Lula lá em 2016.

“A estética anticapitalista e anticonsumista sempre foi falada no vaporwave. Para mim o que me puxou foi a possibilidade do experimentalismo sonoro. A forma distorcida que eles fazem as músicas, usando elementos que já estavam no imaginário popular, foi isso que me puxou primordialmente,” explica Lucas Sublingualwart, produtor musical conhecido como akaaka.

Para outro produtor musical brasileiro, MASAKOTO150, o fashwave brasileiro foi uma surpresa até nos círculos de artistas que curtem o gênero. “Eu acompanho o vaporwave desde 2014, quando comecei a ouvir e desde sempre foi uma vertente irônica ao consumismo e o capitalismo. Fiquei sabendo disso pelo post da Folha, mas o pouco que eu via nessa galera mais de direita é que sempre houve essa pira mais sad boy que se misturou e deu origem ao fashwave, mas inicialmente é um movimento que cresceu na contracultura e contra o consumismo e não faz muito sentido e não consegui entender como isso foi apropriado,” afirma.

A chegada tardia do fashwave, no entanto, se resume apenas em avatares coloridos e milícias virtuais de trolls simpatizantes do Bolsonaro, encabeçadas por arrobas do Twitter reclamonas como Bernado P. Kuster e anônimos raivosos que mesclam vaporwave com elementos nacionalistas. Uma das origens da chegada do fashwave no governo bolsonarista, além do fetiche vira-lata em copiar os EUA, foi também o canal de Youtube Brasileirinhos, no qual o tradutor carioca Elton Mesquita e seu companheiro fantasiado de palhaço gravam vídeos usando a estética vaporwave para ilustrar seus drops ideológicos advindos da escola de pensamento do ex-astrólogo Olavo de Carvalho. O próprio canal é reverenciado nas redes sociais como o principal a reproduzir a estética “bolsowave”.

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Conta vinculada ao canal Brasileirinhos.

Com as reportagens sobre o fashwave tupiniquim, apoiadores do governo Bolsonaro correram para abraçar a estética por completo, tomando para si um conceito pré-pronto e pasteurizado em filtros vaporwave disponíveis em aplicativos internet afora.

As críticas quanto à estética adotada pelo bolsonarismo costumam ser pautadas por um certo teor de superioridade artística e acadêmica. Como aparente reação a essa empáfia, o design sofrível de logos e campanhas publicitárias governamentais foram além da incompetência para sugerir uma intenção proposital de se distanciar do debate artístico. Com a apropriação do vaporwave há, pela primeira vez, uma estética um pouco mais sofisticada associada aos bolsonaristas além do Word-Art e vídeos feitos no Windows Movie Maker.

Não foram poucas as iniciativas de Bolsonaro e seus simpatizantes em demonizar certos tipos de arte. A começar pelo Queermuseu, campanha histérica encabeçada pelo agora arrependido MBL de impedir que uma exposição nem-tão-queer-assim acontecesse em Porto Alegre, gerando uma onda de notícias falsas de supostos peladões comunistas incentivando que crianças os tocassem. Querendo ou não, a exposição do vídeo de um artista recebendo um golden shower em um bloco de carnaval em São Paulo foi também uma reação típica de um governo de extrema-direita ditando o que seria uma espécie de “arte degenerada”, tal qual a mostra Entartete Kunst realizada pelo regime nazista em Munique em 1937 serviu para classificar a visão artística do regime hitlerista (talvez essa seja uma comparação congratulatória para os bolsonaristas). A performance carnavalesca sequer foi lá aquelas coisas, mas se tornou para os apoiadores de Bolsonaro um símbolo de tudo aquilo que é ruim na classe artística.

Evidente que nem todos os apoiadores do presente governo são filisteus que rejeitam arte, tanto que o diretor de teatro e bolsonarista tardio Roberto Alvim foi nomeado presidente da Funarte. A intenção, segundo ele, é montar uma “máquina de guerra cultural” convocando artistas e produtores culturais de direita para dar um norte estético ao bolsonarismo que vá além de memes e montagens duvidosas. Enquanto isso, o vaporwave do neofascismo tropical corre por fora para tentar construir tardiamente uma identidade estética, que já parece ultrapassada e cafona até para os entusiastas da ironia.

Embora seja uma piada no vaporwave, esse resgate de elementos nostálgicos no fashwave é levada a sério. “Acho que essa lógica do ‘instante eterno’ pode ser interessante para entender o tipo de relação que movimentos como vaporwave e fashwave tem com elementos estéticos dos anos 80; essa espécie de quebra de um contínuo passado/presente/futuro embaralha não só o que seria a ‘posição original’ desses elementos estéticos, mas também o sentido de sua apropriação”, explica Tiago C. Soares, pesquisador associado ao grupo de estudos ICTS (Informação, Ciência, Tecnologia e Sociedade), da Unicamp, e do Centro Interunidades de História da Ciência (CHC) e doutor em História Econômica pela USP.

“O que seria originalmente uma aproximação irônica pode ser entendido também como uma espécie de retrato do presente, e se tornar uma declaração; uma espécie de reprocessamento desses elementos estéticos que acaba os transformando num programa de e para o tempo de hoje, confundindo o próprio tempo das coisas,” explica. “A ironia, afinal, é uma expressão do humor, mas não deixa de ser também uma manifestação de agressividade e, de certo modo, de negação de empatia. E essa reapropriação pode ser um movimento de depuração, e intensificação, de um ou mais desses elementos”.

No círculo de produtores musicais, os artistas mais conhecidos do vaporwave seguem sendo uma síntese do que o bolsonarismo parece rejeitar, como no caso de Ramona Xavier, a Macintosh Plus, uma mulher trans de Portland, Oregon. Já nas redes sociais brasileiras a estética virou uma identidade bolsonarista zoeira que tomou para si um estilo datado, sem perceber que sua própria ideologia é a piada central do vaporwave.

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