Carne de porco é aquele esquema, né: um misto de prazer com cagaço. Prazer porque nossos amigos suínos produzem alguns cortes muito apreciados no Brasil, tipo o pernil que vai parar no sanduba de porta de estádio ou o lombo que sustenta belo almoço em família.
É tão bom que cada brasileiro consome, em média, 15 quilos da carne por ano, segundo um dado de 2015 da Associação Suinocultores do Estado de Minas Gerais. Os mineiros têm consumo médio ainda maior: 21 quilos por ano. Não é uma marca tão elevada como as de alguns países europeus — em 2014, os alemães tiveram consumo per capita de carne suína de 54,1 quilos —, mas o setor anda crescendo por aqui. No primeiro trimestre deste ano, a produção cresceu 2,6% em relação ao mesmo período do ano passado. É o melhor resultado para o período desde 1997. Foram abatidos 10,46 milhões de animais.
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Porém, como disse ali em cima, existe o outro lado dessa história: o cagaço de comer a iguaria mediante os avisos apocalípticos dos anciãos de nossas aldeias familiares: “Carne de porco é complicado. Se não estiver bem cozida, dá problema”.
Não é exagero. A carne de porco contaminada pode, nos piores casos, resultar em vermes alojados no cérebro. Retirar tais visitantes de lá não é tarefa simples, mas a medicina brasileira vem aperfeiçoando técnicas que visam remover os invasores e tratar os efeitos causados por eles no cérebro.
No próximo mês de novembro, o neurocirurgião Humberto Belem de Aquino, do Hospital Municipal de São José dos Campos, no interior de São Paulo, vai apresentar os resultados do seu trabalho no oitavo Congresso Mundial de Neuroendoscopia, que acontece na Cidade do Cabo, na África do Sul. É um trabalho revolucionário que pode salvar muitas vidas, mas, antes de entender a remoção dos monstros no seu cérebro, vamos voltar para as aulinhas de ciências dos tempos de escola e entender todo o contexto da doença.
DE ONDE VÊM OS MONSTROS
Você deve se lembrar da taenia solium, aquele verme achatado e comprido que se desenvolve no intestino de quem consome água e alimentos contaminados. Um dos agentes de transmissão desse parasita é o porco, que pode abrigar por anos em sua musculatura a forma larvária da tênia. Nesse estágio da vida, o bichinho é conhecido como cisticerco.
Só que os suínos são apenas hospedeiros intermediários. O objetivo final dos cisticercos é o corpo humano. Um pernil contaminado mal cozido pode fazer a ponte perfeita (aqui vale um grande registro: a principal fonte de transmissão não é a carne de porco, e sim vegetais contaminados). Uma vez nos intestinos, o cisticerco pode gerar a tênia, causadora da teníase. E coisa pior pode acontecer. Essas larvas curtem regiões com muito oxigênio, então elas viajam pelo sistema circulatório até se abrigarem nos músculos ou no sistema nervoso central. Quando isso ocorre, aparece a cisticercose.
Com a presença dos vermes no corpo humano, o ciclo de contaminações segue a todo vapor: o humano vai contaminar a água e o ambiente sempre que fizer cocô. Os ovinhos espalhados por esse mundão vão contaminar o solo e poderão, novamente, infectar alimentos e agentes hospedeiros, como o porco. É um ciclo de doenças difícil de lidar.
Com toda essa história, já deu para sacar que a prevalência desse verme é maior em locais com saneamento básico precário. E adivinha se o Brasil não atende essas condições? Olhe no mapa com dados da Organização Mundial da Saúde sobre áreas endêmicas de cisticercose.
A produção de dados relacionados à doença no Brasil é muito precária, mas o que está disponível na literatura já assusta.
Um estudo de 2003 da pesquisadora Svetlana Agapejev, do Hospital Estadual de Bauru, em São Paulo, mostra que em 1,5% das necropsias feitas no país foram encontrados cisticercos. Em outras palavras, a pessoa pode ter morrido por qualquer razão, mas médicos constataram a presença do verme durante as observações do cadáver.
Nos estudos com pessoas vivas, o número sobe para 2,3% da população. Isso significa que essas pessoas têm sorologia positiva para o cisticerco embora não seja possível determinar qual a forma da doença desenvolvida por elas. Ainda assim, Agapejev avisa: “Discutem-se aspectos relacionados à subestimação da prevalência desta neuroparasitose no Brasil.”
Os números podem ser bem maiores. Na comunidade médica existe a certeza de que muitos casos não são notificados. A Secretaria de Saúde do Paraná estima que, na América Latina, existam 350 mil pacientes. Já o estudo de Agapejev afirma que a cisticercose corresponde a 0,3% das admissões nos hospitais gerais no Brasil.
Entramos em contato com Ministério da Saúde por dados mais recentes, mas até a conclusão deste texto não fomos atendidos.
NÃO SAI DA SUA CABEÇA
Quando a larva resolve morar no cérebro, o paciente desenvolve a neurocisticercose. É uma doença casca grossa. Segundo Julio Sotelo, pesquisador do Instituto Nacional de Neurologia e Neurocirurgia da Cidade do México, a neurocisticercose é responsável por 12% de todas as admissões em hospitais neurológicos e também principal causa da epilepsia em adultos.
O cisticerco pode passar anos morando no sistema nervoso sem que nada aconteça. Ao contrário do que muitos pensam, o verme não tem formato de alien que vai devorar todo o seu cérebro. As larvas são pequenas bolinhas que parecem de papel (e o nome científico entrega isso: Cysticercus cellulosae). Elas ficam navegando no líquido cerebral, de boa, só curtindo a vida. Não possuem motorzinho nem nadadeiras, só seguem o fluxo. Na real, começa a dar ruim mesmo quando esses ovinhos chegam ao fim da vida e passam a se degenerar.
Nessa hora, o sistema imunológico reage causando inflamações no cérebro. “As reações do corpo e a gravidade da doença são individualizadas. Parece um contrassenso, mas quanto menos o hospedeiro reagir, menor vai ser a gravidade da doença e vice-versa”, explica o neurocirurgião Samuel Zymberg, da Universidade Federal de São Paulo e membro da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia. Quando a doença se agrava, é como se o paciente tivesse uma meningite ou uma encefalite. E aí o caminho para o cemitério está traçado.
Foi o que aconteceu com o ex-atacante Leonardo, ídolo do Sport nos anos 90. Em fevereiro 2016, com apenas 41 anos, o ex-jogador foi internado com uma crise convulsiva. Permaneceu um mês no hospital, mas não resistiu. A causa da infecção que o matou foi a neurocisticercose.
Uma das regiões no cérebro preferidas dos cisticercos são os ventrículos, locais que parecem cavernas subaquáticas. É nessa área que é produzido o líquido cefalorraquidiano, conhecido também como líquor, que carrega substâncias nutritivas para dentro das células cerebrais, remove impurezas da região e oferece proteção hidráulica ao sistema nervoso. Em média, produzimos 20 ml de líquor por hora; ao final do dia dá quase meio litro de líquido.
Os ventrículos são conectados por canais para dar vazão a essa produção. O líquido, assim, circula por todo o sistema nervoso até ser reabsorvido pelo cérebro. Aí é que o bicho pega, já que o cisticerco pode bloquear esse fluxo. Isso pode acontecer tanto por uma obstrução pura e simples das passagens, como por meio das inflamações. Quando isso acontece e o líquor se acumula, temos uma outra condição, a hidrocefalia. Ou seja, a cabeça da pessoa fica cheia de “água”.
CÉREBRO EXPOSTO
“Dos pacientes com neurocisticercose, entre 15% e 30% desenvolvem hidrocefalia”, conta Zymberg. O acúmulo do líquor aumenta a pressão intracraniana, o que comprime as estruturas cerebrais e pode gerar dores de cabeça, vômitos, dificuldades de locomoção, distúrbios urinários e falta de memória. Se não for tratada, essa condição pode levar à morte.
Até os anos 1950 não existia tratamento para a hidrocefalia. Se você tivesse isso, sua vida seria muito difícil. Com o desenvolvimento do silicone, resultado indireto da Segunda Guerra Mundial, foi possível criar um sistema de válvulas no cérebro para fazer o escoamento do líquor por outras vias. Em muitos casos, esse método ainda é utilizado. Mas há um problema: “A válvula torna o paciente dependente do neurocirurgião para o resto da vida”, explica Aquino. Esses sistemas, claro, dependem de manutenção para manter o bom funcionamento, e isso significa entrar na faca de tempos em tempos.
Já o combate aos cisticercos pode ser feito utilizando remédios, antinflamatórios e anticonvulsivantes (já que 62% dos pacientes são portadores de epilepsia associada). Mas nem sempre o remédio vai funcionar. Depende do tamanho da infestação e da reação dos vermes. Além disso, a região onde eles se instalam funciona como refúgio. “O remédio para quem tem cistos ventriculares não é muito bom porque não é possível ter concentração suficiente da droga no líquor. A gente produz e absorve líquor o tempo todo”, explica Zymberg. A espera pelo efeito do remédio pode levar à morte. A melhor opção, então, é a cirurgia.
O método de Aquino dura aproximadamente 15 minutos; no procedimento antigo, a remoção dos vermes pode chegar a seis horas
Por um bom tempo, cirurgia para retirar vermes dos ventrículos significava aplicar uma técnica chamada craniotomia de fossa posterior, um lance nada simples. Nela, o paciente fica quase de bruços, com o rosto virado para baixo e a nuca voltada para os médicos. Na região do crânio onde há aquele calombinho (basicamente, atrás da cabeça), um bom pedaço do osso é serrado para expor o cérebro. Ao tirar a tampa, a primeira visão será do cerebelo, e a missão seguinte é afastar os hemisférios cerebelares uns dos outros para ir mais fundo até chegar ao quarto ventrículo. Depois de retirados os vermes, a tampa do crânio é devolvida e fixada com plaquinhas. (Se bateu a curiosidade, chega aqui, mas fique ligado que as imagens não são suaves.)
Falando assim, parece coisa rápida. É, porém, um procedimento que pode se alongar por até seis horas de duração. Nesse procedimento, são grandes as chances de problemas, afinal, muitas estruturas como artérias e nervos ficam expostos. O risco de morte ou de sequelas, principalmente motoras, é alto. Portanto, era preciso partir para algo mais eficiente e menos agressivo no tratamento da hidrocefalia e da neurocisticercose. É aqui que entra o avanço da medicina nacional.
SÓ NO CANUDINHO
O uso endoscopia começou no final do século 19 e, de início, esteve relacionada a área como urologia e gastroenterologia. A ideia é colocar um canudo com fonte de luz, lentes e ferramentas para realizar procedimentos pouco invasivos.
Foi só no início dos anos 1990 que os cirurgiões passaram a tratar da ideia de utilizar de maneira geral o endoscópio no cérebro (e não especificamente para a remoção de vermes da cabeça). Os primeiros registros na literatura são do meio daquela década. Ainda assim, a pouca qualidade das imagens e a baixa qualidade das fontes de luz freavam os avanços num órgão tão sensível feito o cérebro, no qual um deslize pode deixar sequelas irreversíveis.
No consenso global de 2002 para o tratamento da neurocisticercose, surgiu a indicação do uso do endoscópio no cérebro, mas o documento deixa claro a falta de pesquisas sobre o assunto. “Uma conclusão adicional do painel é a inadequação do design de estudos e resultados no tratamento da neurocisticercose”, diz um trecho. É possível que médicos tenham realizado tentativas no tratamento, mas pouca coisa foi documentada.
Em 2003, Zymberg foi creditado como o primeiro médico a usar o endoscópio para a remoção de cisticercos no quarto ventrículo. Ainda assim, a literatura global produziu pouco material sobre a neurocisticercose. O que foi registrado contou com colaborações de médicos do México, da Índia, do Equador e do Brasil. O volume de registros de pesquisas passou a aumentar a partir de 2010, e é aí que chegamos no trabalho do médico de São José dos Campos.
Ele conseguiu demonstrar como remover os vermes e curar a hidrocefalia causada por eles em um único procedimento. Munido de uma potente luz xenon, o endoscópio entra por um pequeno furo no topo da cabeça e percorre alguns canais cerebrais até chegar ao quarto ventrículo. Ali fica moleza encontrar o verme e exterminá-lo. Os bichos são sugados por um aspirador embutido no endoscópio. A remoção acaba com as inflamações, e o líquor volta a circular normalmente. Tempo do procedimento: 15 minutos. Chance de dar ruim: baixíssima.
Cisticerco estava flutuando no líquor e foi aspirado. Crédito: Humberto Belem de Aquino
A NOVA ESPERANÇA
Na pesquisa, foram registrados oito casos de neurocisticercose intraventricular entre 2014 e 2016. O Hospital Municipal de São José dos Campos é o maior do Vale do Paraíba e atende pelo SUS não apenas a região do interior de São Paulo, como recebe também pacientes do sul de Minas. Em ambos os estados, a prevalência de cisticercose é grande, já que a área rural é grande. Segundo Agapejev, o paciente masculino de neurocisticercose tem origem rural e idade entre 31 e 50 anos.
Desses oito pacientes, dois tinham cistos nos ventrículos laterais e foram excluídos das pesquisas (embora tenham sido tratados por neuroendoscopia). Nos seis restantes, metade foi tratada pelo método tradicional (válvulas + craniotomia) e outra metade pela técnica endoscópica. Entre aqueles tratados com o método antigo, dois ficaram com sequelas motoras e um morreu. Já aqueles tratados pelo endoscópio foram curados da cisticercose e da hidrocefalia e tiveram uma recuperação tranquila. O resultado óbvio é a eficácia e segurança da técnica.
“É importante a gente levar esses resultados para África do Sul, pois quase todo o continente africano sofre com a doença. Os médicos de lá precisam estar prontos para o diagnóstico e para o tratamento rápido”, diz Aquino.
O diálogo, porém, é fundamental também para os médicos de países desenvolvidos. Os fluxos migratórios, afinal, têm levado pessoas com a doença para países onde os doutores não estão acostumados a lidar com o problema. Diagnóstico e tratamento de doenças relacionadas a falta de saneamento básico não são a especialidade de médicos nos EUA e na Europa — tanto que é comum ver médicos mexicanos colaborando com os colegas americanos em relação a neurocisticercose.
O benefício da pesquisa de Aquino é também importante para os pacientes no Brasil. Embora o SUS não compre endoscópios para os médicos (um aparelho desses pode custar mais de R$ 100 mil), ele oferece o tratamento em um hospital público. O instrumento, no caso de Aquino, foi comprado pelo próprio médico — mas ele afirma que essa informação é irrelevante. Outros médicos no hospital também estão aprendendo a técnica com ele.
Assim, diante de dificuldades de dados, de informações e de suporte, a medicina brasileira colabora para que uma doença tão assustadora nas rotinas de países pobres possa fazer parte do passado.
E não custa dar uma mãozinha e cozinhar bem aquele pernilzão do final de semana, certo?