Foi a comer gordura que os nossos antepassados conseguiram os nutrientes necessários para que o cérebro crescesse e, assim, a espécie humana evoluísse – isto há quatro milhões de anos, no Plioceno, muito antes de sabermos caçar grandes animais. Esta é, em traços gerais, a proposta da tese científica publicada esta semana no Current Anthropology, da Universidade de Chicago, EUA, que vem desafiar a opinião generalizada entre antropólogos de que a ingestão de carne teria sido o ponto de viragem da evolução cerebral.
Como mote para o início deste estudo, os autores – a portuguesa Susana Carvalho, professora associada no Instituto de Antropologia Cognitiva e Evolucionária na Universidade de Oxford, Reino Unido e directora de Paleontologia e Primatologia no Projecto de Restauração de Gorongosa, no Parque Nacional da Gorongosa, Moçambique, Jessica C. Thompson, professora assistente no Departamento de Antropologia da Universidade de Yale, Curtis W. Marean, professor na Escola de Evolução Humana e Mudança Social na Universidade Estatal do Arizona e Zeresenay Alemseged, professor no Departamento de Biologia e Anatomia de Organismos da Universidade de Chicago – queriam responder à seguinte questão: o cérebro humano consome 20 por cento da energia do corpo quando está em descanso, o dobro do que os cérebros dos outros primatas consomem, portanto onde é que os nossos antepassados iam buscar a energia para o alimentar?
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Os antepassados dos humanos eram bastante limitados – não eram bons a moverem-se em cima de árvores, como os chimpanzés, mas também ainda não dominavam totalmente a forma de se movimentarem no chão, já que tinham acabado de conseguir ficar de pé. Contudo, há provas de que, nesta altura, já se tinha dado um pequeno aumento no tamanho do cérebro, o que levou os investigadores à conclusão de que o grande combustível cerebral da altura não poderia ter sido a carne, mas sim a gordura. Gordura essa que encontravam dentro dos ossos de esqueletos de grandes mamíferos, que tinham sido caçados e comidos por outros animais. Partiam os ossos para retirar a gordura que tinham dentro, que era, nada mais nada menos, aquilo a que hoje chamamos de medula óssea.
Isto porque, nesta fase da evolução símia, o ser humano não sabia ainda caçar e tinha caninos demasiado pequenos para conseguir capturar e comer animais, por isso a única carne a que conseguiria ter acesso seria a de animais bastante pequenos. Esta carne, demasiado magra, não teria os nutrientes necessários para a estimulação cerebral que se sabe ter acontecido, como explicam os autores, o corpo gastaria mais a conseguir digeri-la do que ganharia em valor nutricional. Para além disso, sabe-se, desde que aconteceu aos primeiros exploradores do Ártico, que uma dieta exclusiva deste tipo de carne magra, sem gordura para a compensar, leva a envenenamento proteico e a uma aguda subnutrição – conhecida por “rabbit starvation”, já que os exploradores se alimentavam exclusivamente de coelho.
A gordura, no entanto, teria um valor calórico suficiente para servir de combustível ao ser humano acabado de se erguer, podendo, esta sim, contribuir para o crescimento do cérebro e dar azo à evolução da raça humana. Apesar desta problemática de decidir entre a carne ou a gordura como alimento chave na evolução humana parecer irrelevante aos nossos olhos leigos, não o é: os nutrientes de uma e de outra são bastante diferentes, tal como as tecnologias necessárias para as obter. No caso da carne, as ferramentas teriam que ser pontiagudas e esculpidas, enquanto para a gordura, o uso de pedras seria suficiente para esmagar os ossos. “É assim que nasce a tecnologia – pegar numa coisa e usá-la para alterar outra”, diz Jessica Thompson, uma das autoras, em declarações à publicação Science Daily. E conclui: “Isto, no fundo, foi a origem do iPhone”.
Os ossos destes grandes mamíferos eram muito difíceis de abrir, mas numa era em que não há vestígios de que já se saberia fazer fogo ou caçar, a gordura era mais do que uma óptima fonte de calorias – os ossos protegiam-na, como um Tupperware, impedindo a criação de bactérias e servindo de incubadora. Parti-los, contudo, era complicado. No estudo, uma das co-autoras, Susana Carvalho, sugere que, para tal, os nossos antepassados usavam pedras – a utilização de ferramentas é uma outra característica fundamental para a evolução do ser humano.
E esta nova teoria traz-nos, ainda, uma outra explicação reconfortante. Segundo o estudo, “os nossos antepassados começaram, provavelmente, a ganhar o gosto à gordura há quatro milhões de anos, o que pode explicar porque é que a desejamos tanto hoje em dia”. Isto sim, é ciência que nos traz felicidade e alívio: afinal, a culpa não é nossa, a gordura já faz parte dos nossos caprichos há milhões de anos. Menos mal!
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