Arte: o instrumento da resistência

No Brasil, durante mais ou menos três séculos, o atabaque e o agogô já marcavam as batidas enquanto o berimbau dava o clima e completava o ritmo da roda. Os golpes cadenciados pela música se diluíam nas festas dos escravos, que jogavam a capoeira e praticavam com arte a resistência bem debaixo do nariz dos feitores e capatazes.

Abra os olhos: arte é resistir, desde sempre. Arte não é só coisa de museu, nem precisa ser bonita, saca? Porque ela é instrumento e voz para a comunidade LGBTQIA+, os negros, as mulheres e a sociedade como um todo em tempos de direitos mínimos e retrocesso. É também cura para as dores e inquietudes: discute a vida. É o que faz pensar, do mictório (alô, Duchamp!) à Capela Sistina.

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“A arte opera nos campos de tensões sociais como uma espécie de curativo”, afirma Giselle Beiguelman, artista, curadora e professora da Faculdade de Arquitetura da USP. “Ela tem o poder de indicar e catalisar questões pautadas pela sociedade. E, por outro lado, de criar contextos de diálogo e permitir novas formas de construção do presente e, portanto, do futuro”.

A artista plástica e professora da USP, Giselle Beiguelman, fala sobre o papel da arte e trata de questões cotidianas em suas obras, como a demolição da Perimetral, no Rio, ou os discursos de ódio baseados nos comentários publicados nas redes sociais sobre as ações da Prefeitura de São Paulo e do Governo do Estado na Cracolândia (Odiolândia está em cartaz no Sesc 24 de Maio, até janeiro) – Foto: Leila Fugii/ Divulgação

Arte-função

A arte nunca esteve em uma caixa de porcelana, ela faz parte do mundo e se alimenta dele. Pense no passado, você já tava por aí: século 20. No Brasil, o Modernismo – aquele da Semana de Arte Moderna de 1922 – lutou pela identidade nacional, pela democracia na Era Vargas e parte da Ditadura e questionou as restrições da produção artística vigente. Rompeu com um pensamento conformista, deu a letra de qual era o caminho.

Daí em diante, essa tal de arte ganhou mais fôlego e produziu questionamentos ligados ao tempo. Tem até um termo em alemão pra isso: zeitgeist. Nos anos 1970, Cildo Meireles e suas mensagens nas garrafas de Coca-Cola discutiam a ideologia, a sociedade e o capitalismo, enquanto as notas de cruzeiro vinham carimbadas com a frase “Quem matou Herzog?” em uma provocação política contra os anos de chumbo. Cê viu cavalete, tela e muita tinta na mão do Cildo? Não. É arte? É!

Keith Haring foi um dos artistas mais celebrados da NY underground dos anos 80. Em 1986, fez uma parceria com a Absolut. Na imagem, o trabalho de Haring aparece ao lado dos de Andy Warhol e Edward Ruscha – Foto: Divulgação/ Absolut

Nos anos 80, com tinta colorida e desenhos com cara de HQ, Keith Haring mandava a real na cena de NY. Pra quem estava de fora o bagulho parecia meio bobo, mas era cheio de crítica e reflexão social explosiva. Naquela década, o preconceito contra gays tinha atingido níveis alarmantes e esse era um dos temas de Haring. Seu quase contemporâneo, Ross Bleckner faz abstrações e também se assumiu em um período turbulento os anos 90. Desde então, ele vem falando de mudança, perda e memória em obras que exploram diversos suportes.

Para Jan Fjeld, cofundador da Galeria Vermelho, a arte é o que toda essa galera aí faz, sem exceção. É usar esse campo livre para lidar com o dia a dia e não ser regido pelas regras de um sistema político, de uma doutrina ou de um credo. “A arte está em você, em quem a olha. As funções da arte são as que gente dá”.

Jan Fjeld, cofundador da Galeria Vermelho, acredita na arte livre, aquela que não é regida por sistemas políticos, doutrinas ou regras. Na foto, o galerista está à frente das imagens da série Núptias, 2017, de Rosângela Rennó – Foto: Caroline Lima/ VICE BRASIL

Gênero, sexualidade e arte

Gênero e feminismo são trending topics nas redes e nos museus. Só no MASP, estão em cartaz até fevereiro de 2018 as mostras Guerrilla Girls: gráfica, 1985 – 2017, que traz para o espaço artístico a militância do grupo homônimo dos anos 80, e Histórias da Sexualidade, com um recorte diverso de produções sobre sexualidade de diferentes épocas e lugares. A ideia é estimular discussões importantes como as que tratam de identidade de gênero, homofobia e violência contra mulheres.

Imagem do ambiente da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira que foi fechada por pressão popular, em setembro, no Santander Cultural de Porto Alegre – Foto: Divulgação

Mas a vida não tá fácil para quem trabalha com arte. Em setembro, a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, em cartaz no Santander Cultural de Porto Alegre (RS), foi fechada. Este foi o pontapé para uma série de polêmicas, como a que envolveu performance de Wagner Schwartz, no MAM-SP. Nela, o artista, nu, foi tocado na canela por uma criança que acompanhava a mãe. Manifestantes falaram, nos dois casos, em estímulo à pedofilia e a comoção nas redes sociais resultou em protestos, agressões e ações legais. Fora isso, toda a agitação trouxe à tona a discussão sobre nudez artística e a (ameaça da) censura.

É proibido proibir

O MASP quis se blindar para evitar que Histórias da Sexualidade fosse fechada e restringiu o acesso à exposição para maiores de 18 anos (ação que fere a Constituição). Depois, liberou para geral e fez uso da Classificação Indicativa, com base em uma portaria do Ministério Público, que prevê aos pais ou responsáveis decidir se o menor de idade pode entrar ou não.

Parece que vivemos em tempos de muito espaço para falar e pouca reflexão sobre o que é dito. A artista plástica Giselle Beiguelman concorda e afirma que “as pessoas precisam compreender como se posicionar em favor ou contra. Ouvir e se contrapor na base do diálogo, não na da censura. Desde que se respeitem os direitos humanos”.

Beco Niggaz da Hora, em Pinheiros, tem uma arte intacta do grafiteiro Nigazz da Hora e também uma obra (foto) de Mauro Neri, do coletivo Imargem – Foto: Divulgação/ Imargem

Na rua, o negócio é tenso

Se rola preconceito com a arte de museu e galeria, imagina com a de rua e com quem a produz. Grafite é resistência por natureza e seus temas são tão diversos como a própria arte ou os percalços da sociedade e das cidades. Estes últimos recortes são tratados pela iniciativa multidisciplinar Imargem, criada em 2006 às margens da represa Billings. O coletivo usa produções artísticas como instrumento de inclusão, diálogo e enfrentamento de preconceitos tão comuns ao distrito do Grajaú, o mais populoso e menos desenvolvido dos 96 que compõem a capital paulista.

“Assim como o Grajaú pertence às pessoas do Jardins, os Jardins pertencem às pessoas do Grajaú”, explica Mauro Neri, educador e fundador do projeto ao lado do irmão, Tim. Segundo ele, uma das maneiras de conquistar esse pertencimento é quando alguém coloca seu nome no muro, por meio do pixo. Pra arte e pra vida, Mauro vê um desafio: “Encontrar um jeito de nos comunicarmos, de ter uma linguagem que aproxima as pessoas. O que a gente mais percebe é essa polarização da criminalização do outro que é diferente”.

Pra fechar esse caldeirão de ideias, a gente repete e conclui: a arte é um instrumento de resistência e seu maior propósito é aquilo que a move, o fazer pensar. A beleza é um bônus e não há um estilo de arte melhor ou maior que o outro, só o que comove, instiga e inquieta.

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