No Brasil, durante mais ou menos três séculos, o atabaque e o agogô já marcavam as batidas enquanto o berimbau dava o clima e completava o ritmo da roda. Os golpes cadenciados pela música se diluíam nas festas dos escravos, que jogavam a capoeira e praticavam com arte a resistência bem debaixo do nariz dos feitores e capatazes.
Abra os olhos: arte é resistir, desde sempre. Arte não é só coisa de museu, nem precisa ser bonita, saca? Porque ela é instrumento e voz para a comunidade LGBTQIA+, os negros, as mulheres e a sociedade como um todo em tempos de direitos mínimos e retrocesso. É também cura para as dores e inquietudes: discute a vida. É o que faz pensar, do mictório (alô, Duchamp!) à Capela Sistina.
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“A arte opera nos campos de tensões sociais como uma espécie de curativo”, afirma Giselle Beiguelman, artista, curadora e professora da Faculdade de Arquitetura da USP. “Ela tem o poder de indicar e catalisar questões pautadas pela sociedade. E, por outro lado, de criar contextos de diálogo e permitir novas formas de construção do presente e, portanto, do futuro”.
Arte-função
A arte nunca esteve em uma caixa de porcelana, ela faz parte do mundo e se alimenta dele. Pense no passado, você já tava por aí: século 20. No Brasil, o Modernismo – aquele da Semana de Arte Moderna de 1922 – lutou pela identidade nacional, pela democracia na Era Vargas e parte da Ditadura e questionou as restrições da produção artística vigente. Rompeu com um pensamento conformista, deu a letra de qual era o caminho.
Daí em diante, essa tal de arte ganhou mais fôlego e produziu questionamentos ligados ao tempo. Tem até um termo em alemão pra isso: zeitgeist. Nos anos 1970, Cildo Meireles e suas mensagens nas garrafas de Coca-Cola discutiam a ideologia, a sociedade e o capitalismo, enquanto as notas de cruzeiro vinham carimbadas com a frase “Quem matou Herzog?” em uma provocação política contra os anos de chumbo. Cê viu cavalete, tela e muita tinta na mão do Cildo? Não. É arte? É!
Nos anos 80, com tinta colorida e desenhos com cara de HQ, Keith Haring mandava a real na cena de NY. Pra quem estava de fora o bagulho parecia meio bobo, mas era cheio de crítica e reflexão social explosiva. Naquela década, o preconceito contra gays tinha atingido níveis alarmantes e esse era um dos temas de Haring. Seu quase contemporâneo, Ross Bleckner faz abstrações e também se assumiu em um período turbulento os anos 90. Desde então, ele vem falando de mudança, perda e memória em obras que exploram diversos suportes.
Para Jan Fjeld, cofundador da Galeria Vermelho, a arte é o que toda essa galera aí faz, sem exceção. É usar esse campo livre para lidar com o dia a dia e não ser regido pelas regras de um sistema político, de uma doutrina ou de um credo. “A arte está em você, em quem a olha. As funções da arte são as que gente dá”.
Gênero, sexualidade e arte
Gênero e feminismo são trending topics nas redes e nos museus. Só no MASP, estão em cartaz até fevereiro de 2018 as mostras Guerrilla Girls: gráfica, 1985 – 2017, que traz para o espaço artístico a militância do grupo homônimo dos anos 80, e Histórias da Sexualidade, com um recorte diverso de produções sobre sexualidade de diferentes épocas e lugares. A ideia é estimular discussões importantes como as que tratam de identidade de gênero, homofobia e violência contra mulheres.
Mas a vida não tá fácil para quem trabalha com arte. Em setembro, a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, em cartaz no Santander Cultural de Porto Alegre (RS), foi fechada. Este foi o pontapé para uma série de polêmicas, como a que envolveu performance de Wagner Schwartz, no MAM-SP. Nela, o artista, nu, foi tocado na canela por uma criança que acompanhava a mãe. Manifestantes falaram, nos dois casos, em estímulo à pedofilia e a comoção nas redes sociais resultou em protestos, agressões e ações legais. Fora isso, toda a agitação trouxe à tona a discussão sobre nudez artística e a (ameaça da) censura.
É proibido proibir
O MASP quis se blindar para evitar que Histórias da Sexualidade fosse fechada e restringiu o acesso à exposição para maiores de 18 anos (ação que fere a Constituição). Depois, liberou para geral e fez uso da Classificação Indicativa, com base em uma portaria do Ministério Público, que prevê aos pais ou responsáveis decidir se o menor de idade pode entrar ou não.
Parece que vivemos em tempos de muito espaço para falar e pouca reflexão sobre o que é dito. A artista plástica Giselle Beiguelman concorda e afirma que “as pessoas precisam compreender como se posicionar em favor ou contra. Ouvir e se contrapor na base do diálogo, não na da censura. Desde que se respeitem os direitos humanos”.
Na rua, o negócio é tenso
Se rola preconceito com a arte de museu e galeria, imagina com a de rua e com quem a produz. Grafite é resistência por natureza e seus temas são tão diversos como a própria arte ou os percalços da sociedade e das cidades. Estes últimos recortes são tratados pela iniciativa multidisciplinar Imargem, criada em 2006 às margens da represa Billings. O coletivo usa produções artísticas como instrumento de inclusão, diálogo e enfrentamento de preconceitos tão comuns ao distrito do Grajaú, o mais populoso e menos desenvolvido dos 96 que compõem a capital paulista.
“Assim como o Grajaú pertence às pessoas do Jardins, os Jardins pertencem às pessoas do Grajaú”, explica Mauro Neri, educador e fundador do projeto ao lado do irmão, Tim. Segundo ele, uma das maneiras de conquistar esse pertencimento é quando alguém coloca seu nome no muro, por meio do pixo. Pra arte e pra vida, Mauro vê um desafio: “Encontrar um jeito de nos comunicarmos, de ter uma linguagem que aproxima as pessoas. O que a gente mais percebe é essa polarização da criminalização do outro que é diferente”.
Pra fechar esse caldeirão de ideias, a gente repete e conclui: a arte é um instrumento de resistência e seu maior propósito é aquilo que a move, o fazer pensar. A beleza é um bônus e não há um estilo de arte melhor ou maior que o outro, só o que comove, instiga e inquieta.