A Condenação da New Hit e o Pagode Baiano no Tribunal

Crédito: Divulgação/Facebook.

Imagine a situação. Uma jovem adolescente do interior da Bahia está se preparando para ir à micareta da cidade. Entre as atrações, uma das mais esperadas é o show de uma das bandas de pagode de maior sucesso no momento. Ela vai ao evento com uma amiga: as duas curtem o som dos trios elétricos, dançam bastante e depois vão tirar umas selfies com seus ídolos.

Tudo muda dali para frente. Durante o primeiro contato com os integrantes, ainda com os celulares nas mãos, alguns deles começam a apertar suas bundas. As meninas acabam arrastadas até o fundo do ônibus dos pagodeiros com a desculpa de que estava muito barulhento lá fora. No interior do veículo, são separadas: cada uma fica em uma parte do ônibus. Então, são forçadas a terem relações sexuais com os músicos: enquanto alguns seguravam uma delas, outros se aproveitavam. Indo de dois em dois, até. Os músicos fazem ironias, dizem que elas deveriam usar pílulas do dia seguinte. Uma delas, virgem, grita, mas ninguém lá fora consegue ouvir – afinal, trata-se de uma micareta. Um policial militar, contratado como segurança da banda, ficava do lado de fora do veículo e acobertava o que acontecia lá dentro. Assustador, não?

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O enredo é verdadeiro e aconteceu em agosto de 2012 na cidade de Ruy Barbosa, próxima à Chapada Diamantina, a cerca de 300 km da capital, Salvador. Os nove integrantes da banda New Hit e o segurança foram presos em flagrante pelo estupro coletivo de V.L.S.B. e V.S.B., ambas então com 16 anos. O julgamento, porém, aconteceu apenas no ano seguinte, bem depois de ter saído o laudo técnico que apontava enormes quantidades de sêmen nas roupas das garotas. A sentença da juíza Márcia Simões Costa, em primeira instância, saiu na quarta-feira, dia 6, quase três anos após o caso: os pagodeiros e o policial foram condenados a 11 anos e oito meses de prisão pelos crimes de formação de quadrilha e estupro.

Foram condenados a cumprir a pena em regime fechado Alan Aragão Trigueiros (conhecido como “Alanzinho”), Edson Bonfim Berhends (conhecido como “Netinho”), Eduardo Martins Daltro de Castro Sobrinho (conhecido como “Dudu”), Guilherme Augusto Campos Silva (conhecido como “Guiga”), Jefferson Pinto dos Santos, Jhon Ghendow de Souza, Michel Melo de Almeida, Wenslen Danilo Borges Lopes (conhecido como “Gagal”) e Willian Ricardo de Farias (conhecido como “Brayan”), além do ex-policial militar Carlos Frederico Santos de Aragão. Antes mesmo da decisão judicial, o PM foi expulso da corporação. Todos os réus podem recorrer da decisão e ficarão em liberdade até que todos os recursos possíveis sejam julgados.

A advogada das jovens, Maria Cristina Carneiro, não ficou muito satisfeita com a decisão judicial. Ela discorda do fato de a pena de 11 anos e 8 meses ter sido a mesma para todos os réus, pois a advogada acha que as punições aplicadas deveriam ter durações diferentes, porque cada pessoa condenada teve uma participação diferente no crime. Os recursos devem demorar mais alguns meses para serem apreciados pela Justiça. A novela se arrastará por mais um tempo, mas parece que caminhará para a condenação definitiva dos envolvidos.

“Gosto do ritmo do pagode, mas o problema está em algumas letras e danças, que desrespeitam as mulheres e a nossa Constituição. É uma violência simbólica muito grande, e a violência contra a mulher não pode ser levada como uma questão de ordem privada. Nós estamos disponíveis pra qualquer um?”, questiona a deputada estadual Luiza Maia.


Antes mesmo da condenação da New Hit, a associação da banda à violência (desta vez, simbólica) contra a mulher já existia. Se o estupro consumado teve violência física e sexual contra as jovens, a banda, antes disso, poderia facilmente ter algumas de suas músicas enquadradas em uma lei de autoria da deputada estadual Luiza Maia (PT), líder da Bancada Feminina do legislativo baiano.

A parlamentar criou um projeto de lei que ficou conhecido popularmente como Lei Antibaixaria, já que ela proíbe o uso de recursos públicos para contratação de artistas que, em suas músicas, desvalorizem, incentivem a violência ou exponham as mulheres à situação de constrangimento, além de essas músicas não poderem conter manifestações de homofobia, discriminação racial ou apologia ao uso de drogas ilícitas. Por causa da lei, Maia chegou a ser taxada em 2012 de “inimiga do pagode” antes mesmo de o caso de estupro ter acontecido – embora estupro e apologia sejam delitos de naturezas diferentes.

Sem se referir especificamente ao caso da New Hit, Luiza Maia condenou o machismo presente em músicas do pagode baiano. “É difícil combater o machismo, que existe há séculos. Não é com uma lei que a gente muda tudo. Gosto do ritmo do pagode, mas o problema está em algumas letras e danças, que desrespeitam as mulheres e a nossa Constituição. É uma violência simbólica muito grande, e a violência contra a mulher não pode ser levada como uma questão de ordem privada. Nós estamos disponíveis pra qualquer um?”, questiona.

Para muita gente que acompanhou o caso, parecia que sim: as mulheres estão disponíveis. O que aconteceu entre o crime e a condenação seguiu a mesma narrativa triste do estupro: primeiramente, os músicos alegaram inocência e, chorosos, disseram que não tinham feito nada de errado. Eles contaram que as garotas fizeram tudo por vontade própria, mantendo essa postura mesmo após os 40 dias de prisão preventiva e até as primeiras etapas do julgamento. Ao mesmo tempo, surgiram páginas de apoio à banda no Facebook e tentativas – frustradas – de manifestações pró-New Hit em locais públicos. Claro que um mar de chorume também começou a escorrer nas caixas de comentários de sites e redes sociais: pessoas diziam que as meninas estavam querendo se aproveitar, que quem queria entrar em ônibus com um monte de homens estava correndo mesmo riscos ou, pior, que elas desejavam “dar para cantor, engravidar e conseguir pensão alimentícia”.

Era a velha estratégia de culpabilização das vítimas, principalmente se elas forem mulheres. À época, a blogueira Lola Aronovich compilou alguns comentários feitos por quem achava que as garotas tinham parcela de culpa pelo próprio estupro. Enquanto isso, as meninas sofriam ameaças por celular e tinham as casas vigiadas por estranhos. Elas precisaram ficar sob proteção do Programa para Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte e receber acompanhamento psicológico e policial. Hoje, as duas não moram mais na cidade – uma delas está até em outro Estado.

A banda faria shows em outubro e novembro de 2012, logo após ter recebido habeas corpus. No entanto, os patrocinadores dos eventos em que a New Hit tocaria não quiseram associar as suas marcas a (até então) possíveis estupradores. Mesmo assim, a banda lançou uma música chamada “Nossa História” com uma clara referência ao caso: na letra, versos sobre falsas acusações, obstáculos e a infalível justiça divina. Não emplacou.

Sem espaço, a New Hit, já há tempos sem realizar apresentações, acabou em setembro de 2013, mas o vocalista, Eduardo Martins, ainda tentou voltar aos palcos com a banda Quarteto Fantástico. Ele ainda participou de shows de alguns dos principais nomes do pagode local, como Igor Kannário e Robyssão, talvez pelo fato de eles terem o mesmo empresário, Jorge Sacramento. No entanto, nem mesmo com o apoio deles e de Edilson Capetinha, ex-jogador de futebol e dono de uma casa de shows da cidade, Eduardo conseguiu voltar a ter uma carreira de sucesso.

Os músicos aguardaram o fim de todo o processo em liberdade e compareceram às etapas do julgamento, que aconteceu em Ruy Barbosa. Em todas as sessões de depoimento, foram alvo de protesto de várias integrantes da Marcha Mundial das Mulheres. A marcha foi representada pelo Núcleo Negra Zeferina, um dos mais atuantes grupos feministas da Bahia. O grupo celebrou o veredicto da juíza Márcia Simões Costa através de uma nota oficial.

De certa forma, a condenação da New Hit trouxe de novo à tona algumas discussões sobre como boa parte do que se produz atualmente no pagode da Bahia se relaciona, de alguma forma, a temas criminais e à suposta apologia a diversas formas de violência.


“Comemoramos com muita euforia. Não somente pela condenação em si, mas pelo que ela representa: a violência contra as mulheres não ser aceita como coisa natural. Quando realizamos o primeiro escracho contra Eduardo Martins, queríamos principalmente afirmar a necessidade da reação organizada das mulheres como fundamental para combater a violência sofrida por nós todos os dias. Apenas 2% dos agressores de mulheres são condenados no Brasil; nos casos de violência sexual, o número é ainda menor: apenas 14% das vítimas conseguem denunciar tamanha brutalidade. Lutar pelo fim da violência contra as mulheres é também lutar para que os agressores sejam punidos”, lê-se no comunicado, publicado na página do grupo no Facebook. Leia a íntegra aqui.

A sentença também foi bem recebida pela deputada estadual Luiza Maia. “É uma grande vitória para nós, mulheres. Vale a pena lutar. Estupro é crime hediondo e não poderia ficar impune. Decisões como essa reforçam que estamos no caminho certo. O sentimento é de alma lavada pela sentença dada aos músicos”, declarou.

De certa forma, a condenação da New Hit trouxe de novo à tona algumas discussões sobre como boa parte do que se produz atualmente no pagode da Bahia se relaciona, de alguma forma, a temas criminais e à suposta apologia a diversas formas de violência. A relação entre os pagodeiros, seus fãs – geralmente de classes populares – e o restante da sociedade está em uma constante tensão. Embora ela às vezes se aplaque, costuma ser alta.

Alguns músicos se pronunciaram por causa dessas questões. Robyssão, que chegou a dar espaço a Eduardo Martins em seu palco antes da condenação da New Hit, já havia comentado sobre o fato ao site Bahia Notícias. “Depois da New Hit, o pagode ficou um pouco associado com a criminalidade, o estupro, o desrespeito. Mas existem profissionais que não se associam ao crime, não usam drogas, tipo eu.”

O comentário foi uma resposta a outra declaração polêmica que ele deu ao jornal Correio: Robyssão disse que o público do pagode admirava a vida do crime e que, quando ele criou um personagem para divulgar sua carreira solo, após a saída da banda Black Style, houve identificação. O pagodeiro se denominava “gângster do bem”.

Mais especificamente, momentos antes do carnaval. O cantor Igor Kannário, autoproclamado Príncipe do Gueto, sempre esteve na mira de policiais, promotores, políticos e jornalistas. Ele é acusado de fazer apologia às drogas e à violência em suas músicas, como “Tudo nosso, nada deles”, maior hit do carnaval deste ano, “Sai da frente que lá vem a zorra”, “Dedo Calibrado” ou “Cyclone”, que inspirou o vulgo de Kelly Cyclone, a musa do tráfico de drogas na cidade, morta em 2011.

Essa pecha Kannário sempre rebateu prontamente. Ele alega apenas fazer uma música que se comunique com os favelados, como ele também se considera. O antropólogo Maycon Lopes, que estuda sexualidade e o pagode no contexto das classes populares, concorda com a visão do Príncipe do Gueto sobre seu próprio trabalho.

“Se suas músicas podem ser rotuladas por alguns como ‘apologéticas à violência’, é porque Kannário consegue trazer o seu mundo para dentro das letras das canções. Um mundo em que prevalecem outras leis, relações outras de poder. E, como qualquer outro mundo, por que não mereceria também ser objeto de sua atenção como compositor?”, pergunta.

Igor Kannário conta ser “barril dobrado” (gíria baiana para “problemático”): apropriada também como elogio, ela é usada por ele nos dois sentidos. O pagodeiro chegou a ser banido do Carnaval de Salvador acusado de ter envolvimento com tráfico de drogas: disseram que sua presença poderia levar facções para correrem atrás do trio elétrico e provocar grandes confusões nos circuitos. Ele foi preso por porte de uma pequena quantidade de maconha (da qual é usuário declarado), acabou liberado e o clamor popular fez com que ele acabasse sendo convidado para reintegrar a programação da festa de fevereiro.

Depois que passou a ser hype, Kannário passou a sintetizar toda a associação do pagode à violência em Salvador – e, mais especificamente, no carnaval –, mas a questão não abrange apenas o seu trabalho e o de músicos associados a ele: é algo que parece entranhado no inconsciente coletivo local. Durante o carnaval e após grandes festivais de pagode, programas de TV sensacionalistas, como o “Se Liga, Bocão”, têm como parte de sua programação uma exibição dos “melhores momentos” de brigas e ações policiais durante os shows.

“Se as relações de violência são constituintes da favela (a qual, por favor, não se reduz a isso), como queremos que ‘os favelados’ participem da festa? Essas relações também são integrantes do Estado, que monopoliza o direito legítimo de uso da força através da polícia. Basta perceber como os baianos se defendem uns aos outros quando passa uma horda de policiais no carnaval”.

Em Salvador, há dois circuitos de carnaval com trios elétricos: o Dodô (ou Barra-Ondina), na orla turística da cidade, onde estão os camarotes mais sofisticados, a maior parte das transmissões de TV e a do YouTube, além dos artistas globais; e o Osmar (ou Campo Grande), onde desfilam também os artistas do axé, apesar de ele ser reservado principalmente a afoxés, samba, reggae, blocos afro e pagode. No Campo Grande, o contingente policial é maior e mais atento. Digamos que eles põem os “direitos humanos” que carregam nas cinturas para trabalharem com mais agilidade, especialmente quando os pagodeiros enchem as ruas.

Quando a favela desce e está dançando atrás de qualquer trio de pagode, muita gente espera “a barreira passar” para prosseguir o caminho até outro trio, que vem logo depois, por medo de furto ou ser arrastado para alguma briga. A massa de favelados atrás do trio na avenida é como uma barreira geográfica para a classe média-alta que não vai ao Barra-Ondina. É como se, para ir do Itaigara à Pituba (bairros de classe média-alta da cidade), um morador desses locais precisasse fazer um desvio e entrar no complexo de favelas da Chapada do Rio Vermelho. Algo que, muito provavelmente, preferiria evitar. É o que pensa Maycon Lopes.

“É que talvez seja insuportável (re)conhecer a existência do ‘lado B’, em que o marco da legalidade muitas vezes passa ao largo e o Estado mais reprime do que dá assistência. O sentido de brincar carnaval não é único; há quem vá à rua paquerar, dançar, cantar junto. Há quem faça tudo isso e inclusive brigue, sabendo que pode levar cacetadas ou mesmo ser preso pela polícia. Se relações de violência são constituintes da favela (a qual, por favor, não se reduz a isso), como queremos que ‘os favelados’ participem da festa? Essas relações também são integrantes do Estado, que monopoliza o direito legítimo de uso da força através da polícia. Basta perceber como os baianos se defendem uns aos outros quando passa uma horda de policiais no carnaval”, analisa.

O julgamento da New Hit, por mais recursos que ainda venham a ser apresentados, já acabou. O crime de estupro, ao que tudo indica, será mesmo punido como crime hediondo que é – independentemente de ter sido cometido por pagodeiros ou não. O pagode, por sua vez, continuará na berlinda na sociedade baiana.