Da coluna Geopolítica das Copas
Metade dos jogadores que vão correr atrás da bola nos campos da Rússia representa países que vivem em “democracias imperfeitas”, ou seja, em que há liberdades individuais e eleições limpas e confiáveis, mas que apresentam problemas no processo de representatividade. O conceito foi criado pela revista The Economist e 16 dos 32 países que disputam o Mundial de 2018 está nesse grupo – entre eles o Brasil, 49º colocado no ranking, com nota 6,6 em 10 possíveis.
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Apenas 9 dos países participantes vivem uma “democracia plena” nos critérios da revista britânica. A mais bem colocada no ranking é a Islândia, que leva nota 9,58 em democracia, atrás apenas da Noruega – cuja seleção não se classificou. Suécia, Dinamarca, Austrália, Suíça, Alemanha, Inglaterra, Uruguai e Espanha completam a lista – que inclui os países com nota acima de 8.
No oposto, quatro dos países estão na pior classificação possível: Egito, Irã, a anfitriã Rússia e a Arábia Saudita – dos 32 participantes, o que tem pior nota entre os classificados para a Copa, com 1,93, e a 159ª colocação no ranking entre 167 países avaliados. A Arábia Saudita, aliás, é o único dos países que estão na Copa do Mundo que não tem nenhum tipo de eleição e é governado por uma monarquia absolutista.
Outros oito países da Copa têm um rei para se reportar – mas, neste caso, todos são monarquias parlamentaristas, ou seja, em que o monarca é o chefe de estado, mas o governo fica a cargo de um primeiro-ministro indicado pelo parlamento. Ou, no caso do Marrocos, pelo próprio rei Mohammed VI, mas obrigatoriamente do partido mais votado nas eleições parlamentares – concessão feita pelo monarca depois dos protestos de 2011, que ficaram conhecidos como Primavera Árabe, provavelmente a fim de salvar seu pescoço. O Marrocos, assim como a Tunísia, país também afetado pelas manifestações de 2011, e a Nigéria, é definido pela Economist como um regime híbrido: não chega a ser uma ditadura, mas está longe de ser uma democracia real, com sinais de perseguição do governo a opositores e pressão sobre a mídia.
O regime preferido dos países da Copa é o parlamentarismo, adotado em 21 países – seja no formato clássico, em que o primeiro-ministro é quem manda no governo, ou no semipresidencialismo, em que há divisão de poderes com o presidente, como acontece na França. Já o presidencialismo é adotado por 10 países: os cinco sul-americanos que vão à Copa, os três da América Central, mais o Irã, onde o presidente tem poderes limitados e se reporta a líderes religiosos, e a Nigéria, cujo atual líder, Muhammadu Buhari, eleito em 2015, já ocupou o cargo uma vez, entre 1983 e 1985, como ditador após um golpe militar. Hoje, ele se apresenta como um “democrata arrependido de centro-esquerda”.
Questão de gênero
Entre os 32 países da Copa, apenas quatro mulheres ocupam o poder: a britânica Theresa May, a alemã Angela Merkel, a islandesa Katrín Jakobsdóttir e a servia Ana Brnabic. Jakobsdóttir, a mais jovem entre todos os chefes de governo, tem 42 anos, faz parte do Partido Verde e lidera um governo de centro-esquerda que tem sociais-democratas, progressistas e até o Partido Pirata na coalizão.
Brnabic, que completa 43 em setembro, foi a primeira mulher declaradamente homossexual a assumir o comando da Sérvia, mas tem causado polêmica por implantar políticas liberais e por dar pouca atenção à causa LGBT. É chamada por críticos de “fantoche” do presidente Aleksandar Vucic, que a indicou ao cargo no ano passado.
Theresa May também vive situação delicada: quase foi derrubada no ano passado após antecipar as eleições legislativas, como espécie de voto de confiança no processo do Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia. Seu partido não obteve maioria e ela precisou recorrer a alianças com conservadores para construir o novo governo.
Ali perto, na Croácia, haveria uma “quinta elementa”: Kolinda Grabar-Kitarović, presidenta da Croácia desde 2015. Mas ela não conta na lista porque quem manda é o primeiro-ministro, Andrej Plenković – Grabar-Kitarovic é responsável apenas pela indicação do premiê, a partir do resultado das eleições legislativas, e cuida mais de assuntos ligados às Forças Armadas e às relações exteriores.
No calor da Copa
Quatro dos países participantes terão eleições ainda este ano. A primeira delas é já neste domingo: o segundo turno da votação presidencial na Colômbia, entre o senador direitista Iván Duque, apoiado pelo ex-presidente Alvaro Uribe, e Gustavo Petro, ex-prefeito de Bogotá, ex-guerrilheiro e com apoio da esquerda. Esta é considerada a primeira eleição livre no país após o fim da guerra com as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), com o acordo de paz selado em 2016.
Em 1º de julho, ainda durante a Copa, haverá eleições gerais no México, para renovação do Congresso e escolha dos governadores e do presidente que sucederá Enrique Peña Nieto. O país vive uma grave crise de segurança pública, com uma epidemia de violência que tem sido alimentadas com assassinatos de autoridades e jornalistas. A posse do eleito, no entanto, será apenas em dezembro.
Em setembro, a Suécia irá às urnas para renovar o parlamento, o que pode resultar na saída do primeiro-ministro Stefan Löfven, social-democrata.
Outro país que vive clima político quente nos últimos dias é a Espanha, que acaba de trocar o conservador Mariano Rajoy pelo socialista Pedro Sánchez como chefe de governo. Na seleção, o impacto inicial não foi dos melhores: num encontro do político com o time, houve mal-estar com o goleiro David de Gea, o único de toda a delegação a não aplaudir seu discurso. Tudo porque, anos atrás, o camisa 1 da seleção foi acusado de envolvimento num caso de abuso sexual e Sánchez disse que “o goleiro da seleção deve ter comportamento exemplar”. De Gea acabou inocentado e o político pediu desculpas; o goleiro publicamente aceitou, mas nitidamente não engoliu a história.
E o Brasil?
E, no Brasil, outubro é o mês das eleições presidenciais que definirão o sucessor de Michel Temer. Nas últimas seis Copas, desde 1994, quando houve esse “casamento” entre a Copa e a eleição, o clima causado pela campanha da Seleção só teve influência, e ainda relativa, em 1994, quando Fernando Henrique Cardoso, o então candidato governista, se elegeu impulsionado muito mais pelo sucesso do Plano Real do que pelo tetra.
Em 1998, o Brasil perdeu a Copa para a França, com direito à polêmica convulsão de Ronaldo na final (que depois viraria até assunto em CPI), e mesmo assim FHC se elegeu. Quatro anos mais tarde, o penta levou Vampeta a dar cambalhotas ao lado de Fernando Henrique na rampa do Planalto, mas a oposição levou a melhor na eleição, com a primeira vitória de Luiz Inácio Lula da Silva.
O presidente boleiro, corinthiano fanático, não deu sorte nas Copas: viu as derrotas de 2006 e 2010 no cargo, mas mesmo assim se reelegeu e ainda emplacou sua sucessora, Dilma Rousseff. A primeira mulher a governar o Brasil foi vaiada e insultada na abertura da Copa de 2014, em Itaquera, e, com 7 a 1 e tudo, conseguiu se reeleger – embora tenha sido afastada do cargo menos de dois anos depois num controvertido processo de impeachment. Ou seja: a alegria ou a tristeza que Tite e seus homens vão causar dificilmente fará alguma diferença diante da urna em outubro.
Fernando Cesarotti, 40, é jornalista e professor universitário. Vai assinar a coluna Geopolítica das Copas, sobre futebol e política, durante o Mundial da Rússia.
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