Este artigo foi originalmente publicado na VICE Austrália.
Sou autista e quando estava a crescer voltei-me para personagens de filmes e televisão para aprender como me devia expressar e sobreviver socialmente. Em vez de expor os meus pensamentos e sentimentos, imitava os de Buffy A Caçadora de Vampiros, porque ela era a maior; Cher, de Clueless, porque era rica, gira e super empreendedora; e Alice, de Closer, porque um tipo por quem eu tinha uma paixoneta era obcecado por ela.
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Queria ser mais como elas do que como eu. Via a forma como eram respeitadas e admiradas. Portanto, estudei cuidadosamente a forma como falavam, como se vestiam e moviam. Tentei destacar-me e, ao mesmo tempo, integrar-me. Tal como elas. Cada inclinar da minha cabeça, cada suspiro e movimento de anca, tudo era estudado, praticado e cansativo. Ainda assim, nunca questionei a quantidade de energia que isto implicava. Era uma performance de gestos e de tons de voz, como uma entidade robótica a seguir um algoritmo.
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Nunca ninguém suspeitou de que eu tinha duvidas, muito menos que tinha uma incapacidade. Nem achava que tinha uma incapacidade. Não fui oficialmente diagnosticada como autista até há cerca de um ano atrás. Sempre assumi que a forma cientifica que usava para me exprimir, na sexualidade e na comunicação, era igual ao que todos andavam a fazer. Nunca me apercebi de que, na verdade, revelava que sou uma pessoa que não tem os mesmos instintos interpessoais que os outros.
A mímica ajudou-me a passar por tudo. Como filha única, a pressão para comunicar como uma adulta era avassaladora. Por isso, imitava os meus pais, ou interpretava uma personagem. Angela de My So Called Life era um template bastante sólido: reconhecia nela, vagamente, alguns dos meus próprios desejos e ressentimentos. Mas, ela comunicava muito com os amigos, coisa que eu não.
Falar com amigos sobe o que estava a passar parecia-me um não redondo. Sentia que, ao partilhar aquilo com que me debatia internamente, ou que me parecia confuso, tornar-me-ia mais vulnerável. A vulnerabilidade não tem grande papel na cultura popular. É, muitas vezes, apresentada como algo que nos põe em risco socialmente; dá azo a provocações, bullying, ridicularizações e rejeição. Intuição e aprender a seguir os nossos instintos não dá azo a enredos atractivos ou a qualquer clímax de terceiro acto.
Mas, apesar de imitar a cultura popular me ajudar a orientar socialmente, não fazia nada pela sacralidade da minha vida interior. Não sabia verdadeiramente o que sentia e pensava. Não sabia o que queria – e, certamente, não sabia como o expressar. Seguia o guião que a cultura popular me apresentava, na esperança de me manter a salvo.
Personagens de musicais eram uma influência particularmente poderosa. Era fácil perceber o que estavam a passar e o que queriam partilhar, porque cantavam sobre isso e comunicavam-no com o corpo. Os seus pensamentos e sentimentos eram sublinhados como cartazes fluorescentes e eu levava-os muito a sério.
O makeover de Sandy no final de Grease deu mesmo cabo de mim. Até em criança percebia que as coisas só começaram a correr-lhe bem quando finalmente conseguiu fazer girar as cabeças dos rapazes e as outras raparigas suspirar em aprovação. Foi aí que Sandy ganhou poder e isso tinha muito pouco a ver com o que ela pensava ou sentia. Era sobre o que ela vestia e a forma como movia o corpo.
Quando Sandy era modesta, ingénua e insegura, encontrava-se em território instável, quer social quer sexualmente. Foi só quando começou a vestir-se e a dançar mais como Danny, que começou a ser apreciada e a conseguir que interagissem mais abertamente com ela. Grande parte da minha adolescência e inicio dos vintes foram passados a caminhar com ar altivo e a usar licra, pele e batom vermelho sangue.
Criei uma persona para esconder as minhas inseguranças, que eram muitas – especialmente em situações sociais. Tinha tendência para olhar literalmente para o que as pessoas diziam e faziam. Não conseguia perceber se alguém me estava a seduzir até me tentarem beijar ou agarrar. Só sabia se um amigo estava chateado se mo dissesse directamente e, quando tudo isso me fazia sentir esmagada, fingia que não se passava nada.
Com a ajuda da Sandy pós-makeover, aprendi a passar a imagem de que sabia o que andava a fazer. A ilusão de segurança que isto trazia era sedutora. As pessoas interagiam comigo da maneira que eu já esperava que o fizessem: os rapazes giravam as cabeças, as raparigas queriam saber onde comprava as minhas roupas. Fazia muito sexo e esperavam de mim que fosse sexy. Mas, intimidade, quer com outros quer comigo mesma, tornou-se algo impossível.
Certa noite, depois de uma festa, fui para casa com um gajo que decidiu analisar-me, interpretar o meu comportamento ao pormenor. Chegou à conclusão de que eu era uma mulher muito competitiva com outras mulheres e que gostava da atenção masculina. Chegou a isto, suspeito, porque eu tinha ido com ele para casa sem saber o seu apelido e porque estava de saltos altos e calças justas, de pestanas pintadas de rímel.
Não sabia o que dizer. Parecia que ele estava a falar de outra pessoa. E, de certa maneira, estava: estava a falar de Sandy, com talvez uma ponta de Buffy e muito de Alice, que fazia gala em ser emocionalmente indisponível e ultra disponível fisicamente. Porque, eu não gostava especialmente da atenção masculina e nunca me tinha apercebido de que, ao usar roupa reveladora, tinha entrado numa batalha com as mulheres.
A cultura popular tinha-me traído. Ao seguir obedientemente este código de conduta, tinha perdido completamente o contacto comigo mesma. Eventualmente, a minha inclinação para interpretar papéis em vez de ser eu mesma levou-me a ser actriz. Actuei em teatros em Melbourne e entrei em pequenos filmes. Entrei numa escola de teatro e, ironicamente, foi lá que acedi pela primeira vez aos meus sentimentos reais.
Participei numa aula baseada nos ensinamentos de Yat Malmgren, um bailarino sueco e professor de representação, interessado no movimento físico como uma expressão do mundo interior da pessoa. Um dia, pediram-nos que incorporássemos horror, ou o sentimento de estar horrorizado. Levantei-me em frente a toda a gente e imaginei o meu pai a ser atropelado por um autocarro, ou um carro, ou que quer que fosse o que nos disseram para imaginar, até que a professora me mandou parar e disse: “Já é suficiente. Agora sente só”. Não percebi o que ela queria dizer. Achei que tinha sentido, tinha chorado e tudo! O que mais queria ela? “Não faças uma representação de que te estás a sentir horrorizada”, disse-me, “Sente-te horrorizada”.
Tudo parou. Depois, uma experiência sem precedentes saiu de mim. Toda a cor e movimento da cultura popular desapareceu. Já não havia espaço para a Angela, nem para a Cher ou para a Sandy, ou qualquer gesto e pensamento premeditado.
Simplesmente senti algo e expressei-o. Havia um universo inteiro dentro da minha cabeça, longe da cultura popular – e eu estava finalmente pronta para o explorar.
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