Tecnología

​A DARPA Realiza Testes de Softwares Militares com Pré-Adolescentes

O Sieg Hall não parece importante do lado de fora. Localizado na Universidade de Washington, o edifício foi construído na década de 60, época em que funcionava como um ponto de concentração contra a guerra do Vietnã. Antes da reforma, o local estava tão mal conservado que os estudantes tinham a tradição de arrancar pedaços da fachada para levar pra casa. Se eu não soubesse do que se tratava, pensaria que o Sieg fosse apenas mais um prédio de ciências da computação sem grandes atrativos. Jamais iria imaginar que lá se desenvolvia pesquisa e desenvolvimento de ponta na área militar.

Mas é exatamente isso que encontramos aqui: escondido no terceiro andar, o Centro de Ciências para Games (CGS, na sigla em inglês), é um laboratório de pesquisas que também desenvolve videogames educacionais para crianças. O grosso do seu financiamento vem da Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA), o braço do Departamento de Defesa dos EUA que patrocina pesquisas em tecnologia militar experimental.

Videos by VICE

Mas por que a DARPA é o principal financiador do CGS? Segundo as declarações escritas e gravadas dos atuais e ex-gerentes de programa do DARPA – bem como as informações contidas em outros documentos do governo –, os objetivos dos videogames educacionais financiados pela DARPA e desenvolvidos pelo CGS vão além da ideia de ensinar alunos da escola primária habilidades nas áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática.

Em vez disso, o principal propósito dos jogos do CGS é o de usar crianças em idade escolar como cobaias para criar e melhorar tecnologias de treinamento em “aprendizagem adaptativa” para as forças militares.

Ele é apenas um dos nós em uma rede de programas que foi originalmente concebido com a intenção de construir melhores simulações de “contrainsurgência” para treinar os combatentes americanos que operam em países ocupados pelas forças americanas. Em resumo, a DARPA está militarizando a academia. Mas não é tão simples assim.

Foto do autor

O lugar não é nada de mais. Seth Cooper, diretor criativo do CGS, me acompanhou num passeio rápido pelas instalações. Lá existe um pequeno laboratório de informática e um escritório adjacente, decorado com carpetes baratos e luzes fluorescentes. Um chapéu do Tio Sam murcho, adornado com as famosas estrelas e listras, fica esquecido em cima de uma das mesas.

Em um pequeno refeitório, Cooper e eu conversamos sobre o jogo mais famoso do CGS, Foldit, um puzzle de dobramento de proteínas que foi resultado de um projeto de crowdsourcing de pesquisa com voluntários, algo que antes era realizado exclusivamente por especialistas. A iniciativa transformou cada um dos jogadores em um “pesquisador cidadão”. Um dos puzzles do jogo envolvia o mistério sobre as causas do vírus da AIDS em macacos resos que vinha desafiando cientistas havia 15 anos. Os jogadores de Foldit resolveram o mistério em dez dias.

O mais novo “jogo de descoberta científica” criado pelo laboratório é o NanoCrafter. Espera-se que o jogo alcance ainda mais sucesso na promoção da democratização da pesquisa científica. O CGS ganhou os holofotes da mídia nos últimos tempos devido ao NanoCrafter; a atenção tem sido tanta que todos com quem conversei acharam que este era também o propósito da minha visita. Mas o meu motivo para estar lá era descobrir mais sobre o relacionamento deles com os militares.

O site do CGS menciona a DARPA logo na página principal, bem como a Fundação Bill & Melinda Gates, a Agência de Pesquisa Naval dos EUA e vários outros patrocinadores corporativos. Mas a minha curiosidade aumentou quando li um documento de 2011 da Universidade de Washington declarando uma verba de US$ 15 milhões para o CGS – soma que se dividiu da seguinte forma: inacreditáveis US$ 3 milhões vindos da Fundação Gates e US$ 12 milhões da DARPA.

O envolvimento da Fundação Gates não causa muita surpresa. Afinal de contas, a Fundação está comprometida em fazer do mundo um lugar melhor. A sede mundial deles também fica em Seattle, e Bill Gates é um geek local. Ele mencionou o Centro e o diretor Zoran Popović na Carta Anual da Fundação Gates de 2012, e também durante a sua apresentação na Conferência Anual da Comissão de Educação dos Estados de 2012.

Depois do Foldit, o CGS havia começado a desenvolver jogos educacionais que empregavam tecnologia de ensino adaptativo, os quais ensinavam matemática e outras habilidades para os alunos durante as partidas. Gates estava claramente fascinado, saudando Popović na sua Carta Anual de 2012 por ter encabeçado a criação de:

…games que automaticamente se adaptavam às necessidades únicas de cada estudante com base nas suas interações com o computador. Muitas dessas novas ferramentas e serviços oferecem o benefício adicional de proporcionar uma visão incrível sobre o progresso de cada aluno, gerando dados úteis que podem ser usados pelos professores para melhorar o próprio desempenho em sala de aula.

Gates levou seu argumento ainda mais adiante na Conferência da Comissão de Educação, pedindo ao público para imaginar um mundo onde a mecânica por trás dos games – em que os jovens se dedicam voluntariamente e com muito afinco — ensinasse matemática “sem que os alunos se dessem conta de que estavam aprendendo por ser tão divertido”. É por este motivo, ele explicou, “que estamos patrocinando o Centro de Ciências para Games na Universidade de Washington”.

Os repetidos pedidos para que a Fundação Gates se pronunciasse a respeito do tema não foram respondidas.

Apesar de tudo isso, a contribuição financeira da Fundação Gates ficou minúscula ao lado da contribuição feita pela DARPA (cuja nova iniciativa de pesquisa chamada ‘Squad X’, caso você não percebido, lembra muito o Call of Duty). Qual é o interesse da DARPA, e como esse patrocínio desproporcional das fundações influencia o CGS? Como beneficiário de dólares recolhidos dos contribuintes pelo governo federal, acho importante considerar o fato de que já existe um Departamento de Educação. Então por que este projeto está sendo financiado pelos militares?

JOVENS MAL SE DERAM CONTA DE QUE ESTAVAM APRENDENDO PORQUE O JOGO ERA TÃO DIVERTIDO

De volta ao laboratório, perguntei ao Cooper como funcionava esse esquema de receber dinheiro, tanto da Fundação Gates como da DARPA. Aceitar o dinheiro significava ficar com o rabo preso? Havia um direcionamento?

“Ah sim, há um direcionamento”, contou Cooper. “Meio que depende do jogo específico, ou algo assim. Temos objetivos e metas concretas.” Esses objetivos e metas, ele continuou, vêm diretamente da DARPA ou da Fundação Gates.

“Você escreve uma proposta dizendo que vai fazer alguma coisa específica e então isso é financiado, daí você precisa desenvolver o que propôs”, explicou Cooper.

Parece justo. Mas o que a DARPA ganha tanto com isso que estaria disposto a investir US$ 12 milhões para dar o pontapé inicial no CGS?

Para saber “esse tipo de informação”, disse Cooper, seria melhor falar com o próprio Popović.

Primeiramente, acho que é importante dizer que o Centro de Ciências para Games está sendo financiado por um programa da DARPA chamado ENGAGE (embora o nome seja escrito em caixa alta, me disseram que as letras não significam nada), e que foi Daniel Kaufman, atual diretor do Information Innovation Office (I2O) dentro da DARPA, que lançou a primeira “semente” que viria a se transformar no ENGAGE.

Talvez seja coincidência, mas Kaufman ocupava o cargo de diretor de operações na Dreamworks Interactive, o estúdio de games fundado por Steven Spielberg que desenvolveu a série de videogames Medal of Honor, um jogo militar de tiro em primeira pessoa e que supostamente foi utilizado para fins de treinamento no Laboratório de Habilidades Cognitivas da Infantaria Naval dos EUA.

Mas foi só depois que soube do trabalho que estava sendo desenvolvido por Zoran Popović e outros com o Foldit que Kaufman se aprofundou na questão. Hoje, o I2O da DARPA descreve o foco da sua missão como “operações militares cibernéticas e de outros tipos excepcionais”, e possui um portfólio de pesquisas que busca antecipar “novas modalidades de operações de guerra nestas áreas emergentes e desenvolver os conceitos e ferramentas necessárias para conferir aos EUA e seus aliados uma vantagem decisiva”.

Em resposta a uma solicitação de Kaufman, então gerente do programa, e com um subsídio inicial de US$ 500 mil, Popović apresentou um documento delineando o potencial inexplorado dos videogames. A comprovação de que a iniciativa funcionaria foi o game desenvolvido através do projeto de crowdsourcing de pesquisas, Foldit, mas Popović também demonstrou que as tecnologias adaptativas de ensino poderiam ser criadas a partir do que descobriram durante aquela pesquisa. Foi então que outro gerente de programa, o Capitão Russell Shilling, desenvolveu essas ideias ao máximo e criou o que é hoje conhecido como o programa ENGAGE, chamariz dos financiamentos milionários ao CGS.

O Capitão Russell Shilling já não trabalha mais para a DARPA; os gerentes de programa da área de pesquisas exploratórias do Pentágono tipicamente saem de lá depois de quatro ou seis anos. Em junho de 2014, o Presidente Obama apontou Shilling como diretor executivo das Iniciativas STEM do Departamento de Educação.

Eu consegui enviar uma mensagem para Shilling – aliás, a foto dele no Twitter, caso você tenha alguma curiosidade, é um avatar dele como personagem dos Muppets – perguntando por que a DARPA, e não o Departamento de Educação, estava financiando um projeto de STEM para o ensino primário.

“Não posso falar em nome da DARPA, uma vez que não trabalho mais lá”, respondeu Shilling. Em vez disso, ele me direcionou para duas newsletters, ambas escritas por ele mesmo e disponíveis no website da DARPA, afirmando que lá as “intenções estavam explicadas”. Uma delas falava sobre experimentos com treinamentos baseados em jogos e a outra é sobre o programa ENGAGE.

De acordo com a segunda newsletter, intitulada “ENGAGE:Novos Métodos de Análise de Grandes Populações para Fins de Ensino e Treinamento”, o ensino de matemática e ciência não era o objetivo primário do programa. A intenção, na verdade, era utilizar os jogos que o CGS tinha desenvolvido em conjunto com a DARPA – jogos como o Treefrog Treasure e o Refraction – para ensinar habilidades para alunos da escola primária, testando as capacidades de ensino adaptativo dos jogos com milhares de pessoas.

Quando aperfeiçoada, continuou Shilling, a tecnologia por trás do ensino adaptativo poderia ser aplicada em outras áreas mais adequadas ao treinamento militar. Não haveria escassez de cobaias para a pesquisa porque, conforme pontuado pela newsletter, a DARPA tinha acesso aos filhos de militares em todo o mundo através das Atividades Educacionais do Departamento de Defesa, braço civil do Pentágono através do qual os softwares poderiam ser testados.

A newsletter da DARPA também leva o crédito pelos Desafios de Álgebra que o CGS promove, lembrando que milhares de jovens participaram deles. Veja bem, o site dos Desafios de Álgebra não menciona o patrocínio da DARPA, muito menos que as crianças envolvidas estão participando de testes militares, ou que o Departamento de Defesa está coletando todos os dados.

Dito isto, Shilling escreve sobre como o ENGAGE aproveita o poder dos grandes grupos de usuários “para otimizar a instrução”. Diz a newsletter:

O ensino tradicional testou a sua efetividade através de pequenas amostras (<100); a abordagem de avaliação do ENGAGE, ao contrário, envolveu milhares ou milhões de estudantes… O programa ENGAGE focou, inicialmente, nas tecnologias interativas para alunos do ensino fundamental ao médio, incluindo nas Atividades de Educação do Departamento de Defesa, uma organização com patrocínio do governo que é responsável pelo ensino dos filhos de militares em todo o mundo.

A newsletter de Shilling termina dizendo que podemos esperar que as mesmas táticas utilizadas pelo programa ENGAGE para otimizar o ensino de matemática e ciência “sejam aplicadas em uma variedade maior de contextos de treinamento… militar”.

O que seria essa variedade maior de contextos de treinamento militar? Primeiro pensei, erroneamente, que a educação dada a crianças e jovens seria simplesmente adaptada à educação dada aos soldados. Mas a intenção é que ela seja aplicada em uma “grande variedade” de contextos de treinamento militar, não apenas na educação. Então a pergunta é outra: a quais tipos específicos de treinamento a DARPA ou o Departamento de Defesa estavam se referindo para receber essa tecnologia de ensino adaptativo?

Dentro do CGS. Este é Cooper, em pé. Foto do autor.

O orçamento de 2012 da DARPA nos oferece uma pista. Escrito em fevereiro de 2011, o orçamento de 2012 foi onde o ENGAGE apareceu pela primeira vez. O documento elabora em detalhes o plano de ação do programa para 2011 e 2012. Em nenhum momento o treinamento é mencionado como um dos seus objetivos, muito menos o ensino para crianças e jovens.

Em vez disso, o objetivo declarado no documento é o de encontrar formas de melhorar a inteligência artificial (IA) do ensino adaptativo para treinamentos baseados em jogos que poderiam saltar do mundo virtual para o real. “O programa ENGAGE, que anteriormente pertencia à iniciativa de Treinamento para Adaptabilidade”, conforme consta no orçamento de 2012, “…abordará a questão de se conectar o desempenho no mundo virtual e o consequente uso desse conhecimento para impulsionar a criação de um treinamento mais eficaz baseado em jogos”. O ENGAGE também vai “desenvolver abordagens para extrapolar para o mundo real o desempenho dos sistemas de treinamento baseados em computador”.

Espera aí… ele anteriormente pertencia à iniciativa de Treinamento para Adaptabilidade? O que seria isso?

Se voltarmos ao orçamento de 2011 do DARPA, veremos que o Treinamento para Adaptabilidade tem uma definição bastante vaga, sem muitos detalhes, e é descrito como um programa de treinamento de liderança. Isso torna difícil entender a sua possível relação com o ENGAGE. No orçamento de 2012, encontramos com muito esforço algo chamado Módulos de Interação Social Estratégica (SSIM), com a seguinte observação: “anteriormente conhecida como Treinamento para Adaptabilidade”.

Esta é uma informação fundamental. Falam sobre um sistema de treinamento para membros das forças armadas dos EUA em “missões de contrainsurgência (COIN)”, com o objetivo de ensinar aos combatentes a melhor forma de lidar com civis estrangeiros em países sob ocupação militar americana, com o objetivo final de “conquistar seus corações e mentes”. De acordo com um dos itens detalhados no orçamento de 2012:

O SSIM desenvolverá a tecnologia de treinamento necessária, que incluirá técnicas avançadas de gaming/simulação… desenvolverá ferramentas para identificar a execução competente de habilidades em um ambiente de treinamento e ferramentas para predizer a eficácia do treinamento no ambiente cultural e operacional pretendido.

Para efeito de comparação, aqui está novamente a descrição de Bill Gates sobre a tecnologia que está sendo desenvolvida no CGS: “Essas novas ferramentas e serviços oferecem o benefício adicional de proporcionar uma visão incrível sobre o progresso de cada aluno, gerando dados úteis que podem ser usados pelos professores para melhorar o próprio desempenho em sala de aula”.

No orçamento de 2011, um ano antes de o programa ENGAGE aparecer pela primeira vez no documento, a DARPA já tinha um programa em operação que parecia explicar muito melhor o pensamento por trás do desenvolvimento do ENGAGE. O programa, chamado “Training Superiority”, é parte da iniciativa DARWARS, um plano cujo objetivo é aprimorar os treinamentos através de simulações e videogames. No orçamento de 2011 são mencionadas as ambições da DARPA de criar um sistema de ensino inteligente chamado Digital Tour.

“O programa Training Superiority“, explica a descrição, “mudará paradigmas na esfera de treinamentos militares”. Abordagens tradicionais e passivas de ensino não são mais suficientes nos modernos campos de batalha, continua o documento, uma vez que se exige mais de um número menor de soldados, os quais devem se tornar capazes de controlar e interagir com sistemas complexos e não tripulados.

Os treinamentos modernos, portanto, devem incluir o elemento emocional dos jogos de computador, e isso impulsionará o crescimento de novas metodologias de aprendizagem digital que serão “disponibilizadas para um grupo maior de combatentes”.

Mas existe ainda um outro documento do governo que explica com riqueza de detalhes o Training Superiority e o Digital Tutor. Ele termina de uma forma meio bizarra, citando – e isso não é uma piada – uma linha de Maquiavel que menciona “uma nova ordem”.

Foto do autor.

O atual gerente de programa do ENGAGE, o homem que ocupou o lugar que era de Russell Shilling, chama-se Daniel Ragsdale. Ele é um coronel aposentado do exército americano e, segundo consta na sua biografia na DARPA, participou das operações “Enduring Freedom” e “Iraqi Freedom”, ambas designações oficiais das guerras no Afeganistão e no Iraque que aconteceram após os ataques de 11 de setembro. Academicamente falando, os interesses de pesquisa de Ragsdale incluem a fraude cibernética.

Durante uma entrevista telefônica, perguntei-lhe porque ele estava financiando o Centro de Ciências para Games, e ele explicou que teve a sorte de herdar o programa de Shilling – que era, segundo ele, o criador do programa que visava, antes de mais nada, esse formato de ensino.

Então o propósito do ENGAGE, e o que impulsionou os financiamentos, explicou Ragsdale, foi o desenvolvimento de tecnologias baseadas em games para aceleração da aprendizagem, bem como “novas abordagens” para analisar o desempenho nos jogos, adaptando-os a indivíduos e grandes grupos.

“Essa é a parte mais importante”, frisou ele, “porque os jogos não são desenvolvidos só pelo divertimento ou poder educacional, e sim para se adaptarem ao longo do tempo a indivíduos específicos ou grupos”. O propósito abrange não apenas as salas de aula, mas também o uso individual, disse Ragsdale, acrescentando que em relação ao público-alvo de estudo, “estamos basicamente focando em estudantes do pré a 3a ou 4a série, esse grupo demográfico”.

Quanto aos motivos pelos quais a DARPA estaria com a atenção voltada para videogames educacionais que visa crianças do ensino primário, Ragsdale deu uma resposta que me pegou de surpresa e confirmou o que eu tinha encontrado nos documentos e orçamentos. “A verdadeira inspiração para o programa não foi o formato STEM“, disse ele. “Queríamos desenvolver métodos novos e baseados em jogos para acelerar o aprendizado e ter algo com características de adaptabilidade.”

Após declarar o objetivo, Ragsdale acrescentou que a verdadeira pergunta era: o que seria um bom objetivo? Ele me contou que “não é fazer um programa STEM’”.

“Então o que você está aprendendo através dessas crianças pode extrapolar para a aplicação numa série de outras coisas se você tem um sistema de tutoria inteligente?”, perguntei.

“Certamente, esse é o nosso verdadeiro propósito”, explicou ele.

A verdadeira inspiração para o programa não foi o formato STEM

Isso me lembrou de outro jogo chamado Ambush, parte da Iniciativa de Treinamento e Superioridade da DARWARS, que treinava soldados para antecipar e reagir às ameaças de bombas (AEIs) e emboscadas no Iraque e no Afeganistão. Será que o que está sendo aprendido aqui através da tutoria adaptativa poderia ser aplicado em simulações militares do tipo Ambush?

“Sim, sim, acho que seria justo afirmar isso”, respondeu Ragsdale.

Não são os jogos educativos para crianças que estão sendo desenvolvidos no Centro de Ciências para Games que são interessantes para os militares – é a tecnologia de ensino inteligente. As crianças só estão testando a tecnologia para eles, sem saber do que se trata.

Eu finalmente me encontrei com Zoran Popović, que não estava no escritório quando visitei o CGS, e perguntei a ele sobre os US$ 12 milhões da DARPA.

Ele me contou que esse financiamento ocorreu ao longo de quatro anos, e eles ainda contam com mais um ano e meio ou dois anos de apoio. Ele tinha ouvido rumores de que alguns senadores souberam do envolvimento da DARPA com o CGS e que não estavam nada contentes com isso. Não gostaram do envolvimento de militares com jogos educativos infantis, uma vez que havia outros órgãos de financiamento, como o Ministério da Educação e a National Science Foundation, que seriam mais apropriados.

“Houve, pelo menos até onde fiquei sabendo, uma certa oposição”, disse Popović.

Mas ele mencionou que o programa continuaria com o financiamento de outros órgãos. Por exemplo, nos últimos quatro anos a National Science Foundation doou ao GSC aproximadamente US$ 3 milhões, segundo Popović. Ele estima que o dinheiro que receberam da Fundação Gates tenha somado apenas US$ 1,5 a US $ 2 milhões.

Popović também mencionou depois em um email que o financiamento do DARPA é muito menor do que o do SRI, anteriormente conhecido como Instituto de Pesquisas de Stanford. Em 1970, o SRI foi pressionado por manifestantes universitários para se separar de Stanford devido ao dinheiro que havia recebido da DARPA, que era visto durante o período da guerra do Vietnã como uma indesejável intromissão do complexo militar-industrial em uma instituição de ensino.

“Mas espero que você não escreva muito sobre os subsídios”, falou Popović. “O que importa são os resultados, certo? Não tenho interesse em levantar um grande volume de fundos. O meu interesse é fazer coisas que tenham poder transformador.”

Foto do autor.

Se quer saber, acredito nele. Parece que o Centro de Ciências para Games está aceitando os financiamentos de quem se dispõe a concedê-los, não é nada além disso. E o programa militar ENGAGE deu à luz o ENLEARN, programa voltado para crianças e financiado pela Fundação Gates. Ele usa a mesma tecnologia que está sendo desenvolvida pelo CGS para ensinar através de videogames; neste caso, evidentemente, sem segundas intenções.

Perguntei a Henry Giroux, crítico cultural e autor de The University in Chains: Challenging the Military-Industrial-Academic Complex, o que ele pensava a respeito de instituições receberem financiamento militar para projetos que também tinham benefícios sociais.

“Não sou contra as universidades receberem dinheiro dos militares, do Ministério da Defesa ou qualquer outro órgão do governo, desde que não exista um jogo de interesses que determine como esse dinheiro deva ser usado”, disse ele por email. “Quando esse princípio é violado, abrem-se as portas para valores e projetos antidemocráticos adentrarem o espaço da universidade”.

A DARPA foi criado pelo Presidente Eisenhower, sob a sombra do Sputnik – o satélite lançado pelos soviéticos, o primeiro e único satélite da época, que nos fitava lá do alto, violando o céu americano. Foi Eisenhower também o homem que, em seu discurso de despedida em 1961, reconheceu a necessidade de se ter forças militares fortes, mas ao mesmo tempo reconheceu e nos advertiu sobre um terrível efeito colateral: a possibilidade de se destruir uma república onde impera o livre pensamento.

Já que a pesquisa se tornou fundamental, argumentou Eisenhower, ela também se tornou mais “formalizada, complexa e cara”:

Uma parcela cada vez maior das pesquisas é conduzida para, por ou sob a direção do governo federal… [A] universidade livre, que historicamente tem sido fonte de ideias livres e descobertas científicas, passou por uma revolução no que diz respeito a condução de pesquisas. Em parte isso se deve aos enormes custos envolvidos, então um contrato com o governo, em termos práticos, substitui a curiosidade intelectual. A possibilidade dos pesquisadores do país serem subjugados pelos funcionários do governo federal, pelas alocações de projetos e pelo poder do dinheiro está sempre presente – e deve ser seriamente considerada.

O que nos traz de volta ao Foldit e ao NanoCrafter. Ambos são jogos que estão trazendo a pesquisa científica para o público leigo no assunto, disse Ragsdale com sinceridade palpável durante uma conversa telefônica. “Acredito que o Nanocrafter será uma tecnologia que provocará uma ruptura na ciência de um modo geral”, disse ele. “Eu acho, sem exageros, que ele tem o potencial de revolucionar a ciência e a bioquímica.”

É interessante notar que o CGS passou a ser interessante para a DARPA só depois de desenvolver o Foldit, game desenvolvido a partir de um projeto de crowdsourcing, mas que acabou fazendo jogos educativos adaptativos para o setor mais futurista da pesquisa, ou seja, duas coisas bem diferentes. Então, será que a capacidade do CGS de encontrar soluções através de crowdsourcing para os problemas científicos não está sendo usada pela DARPA?

NUNCA VI PESQUISADORES RECLAMANDO DE RECEBER FINANCIAMENTO DO MINISTÉRIO DA DEFESA

Na verdade, a DARPA, que originalmente fazia parte de um programa separado do ENGAGE, mas que agora também é administrado por Ragsdale, estava aberto a propostas para fazer o crowdsourcing dos testes e debugging do software. Eles buscavam uma forma barata de fazer isso, usando pessoas não especialistas. O Centro de Ciências para Games apresentou a melhor proposta, ganhando o contrato e o financiamento para um projeto chamado Crowd-Sourced Formal Verification.

No final, a solução do CGS foi criar videogames com efeitos visuais que apresentassem a matemática que estava por baixo do jogo, de forma que, durante as partidas, os jogadores estivessem testando o software para defeitos. Foi assim que o Verigames, um processo para detecção de falhas em software, nasceu.

Ele se parece com qualquer outro portal de jogos para crianças e no site não é explicado o tipo de software que está sendo testado. Mas como deixou claro um anúncio feito pela DARPA durante o dia de apresentação das propostas para o Crowd-Sourced Formal Verification, conforme os usuários jogam, estão também participando do debugging de softwares dos sistemas de armas militares.

Como eu estava lendo o livro The Department of Mad Scientists para saber mais sobre a história da DARPA, resolvi entrar em contato com o autor Michael Belfiore, perguntando se os pesquisadores se deparavam com questões éticas ao receber financiamentos militares.

“Nunca vi pesquisadores reclamarem de receber dinheiro do Ministério da Defesa ou algum tipo de preocupação ética nesse sentido”, contou Belfiore. “A maioria parece concordar que pesquisa benéfica é pesquisa benéfica, seja lá qual for a fonte do financiamento.”

Os jogos no Sieg Hall, até onde sabemos, apenas começaram.