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A estranha conexão entre cartas de baralho e tatuagens de cadeia russas

Enquanto pesquisava para seu papel no filme Senhores do Crime, Viggo Mortensen deu ao diretor David Cronenberg um livro em vários volumes: Russian Criminal Tattoos, uma coleção de tatuagens de cadeia. Mortensen estudou as páginas porque sabia que, ao interpretar um gângster em ascensão no submundo dos imigrantes russos em Londres, as tatuagens de seu personagem contavam sua história – por quais crimes ele cumpriu pena, que tipo de criminoso ele era, que lutas ele venceu ou perdeu. Tattoos de cadeia russas, afinal, são como uma língua secreta.

Na cena mais notória do filme, quando Nikolai participa de uma reunião numa sauna, um associado curdo aponta que Semyon, o chefe mais velho da máfia russa, geralmente “recomenda uma sauna para reuniões de negócio porque você pode ver que tatuagens um homem tem”. Quando dois assassinos tentam matar Nikolai, ele os enfrenta completamente nu, e ver todas as imagens na pele dele aumenta o impacto do assassinato fracassado. Mortensen insistiu em ficar nu; ele fez sua pesquisa sobre tatuagens.

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Agora o pessoal por trás do material de pesquisa de Mortensen lançou um novo livro de fotos: Russian Criminal Tattoos and Playing Cards por Arkady Bronnikov. Como promete o título, a obra explora a história íntima e sobreposta de tatuagens e baralhos nas prisões da era soviética. Mas as fotos também fornecem um vislumbre de uma cultura perdida e como a vida era atrás das grades na URSS. Lá, um simples jogo de cartas podia te responsabilizar pela morte de alguém – ou te custar um olho.

A VICE se encontrou com Damon Murray, um dos fundadores da FUEL, a editora que lançou os livros sobre tatuagens, para saber mais sobre a relação entre esses desenhos e baralhos, como eles eram feitos, o que estava em jogo se você fosse um criminoso russo apostando dentro da cadeia e por que essa cultura desapareceu.

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VICE: Como e por que esses baralhos eram feitos?

Damon Murray: Tanto jogar baralho como fazer cartas nas prisões soviéticas e na “zona”, como campos de trabalho forçado eram conhecidos, era proibido. Se uma carta (ou pior, um baralho inteiro) fosse descoberto, a pena era severa. Se envolver num jogo de cartas era equivalente a desafiar a administração, consumir álcool ou injetar drogas, e geralmente era punido com seis meses na solitária. Mas essas penas não dissuadiam os prisioneiros de apostar com cartas.

As cartas em si precisavam ser feitas secretamente do zero. Esse processo trabalhoso e habilidoso começava grudando duas folhas de papel com cola feita com pão mastigado, passada por linho. Essas folhas coladas eram achatadas com vidro até secar, depois cortadas do tamanho certo.

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O estágio seguinte era o estêncil. Essa era a primeira oportunidade de marcá-las, para que pudessem ser “lidas” pelo dono. O dono decidia o tipo de estêncil e tinta que queria. Fuligem geralmente era usada como preto e uma mistura de sangue e cola de pão para o vermelho. (O sangue era preferido porque secava e ficava mais escuro que outras tintas de prisão.) A intenção aqui era tornar o mais difícil possível para o oponente entender as cartas. Além disso, textura podia ser acrescentada à tinta, para o dono saber o valor das cartas antes de distribuir. Depois disso, a parte de trás também era marcada com estêncil. Quando o baralho estava totalmente seco, as cartas eram espalhadas e os cantos afiados com um pedaço de vidro. Isso dava a cada carta uma nova área para pintar nos cantos, onde mais marcas – quase imperceptíveis – podiam ser feitas a pedido do dono.

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O que estava realmente em jogo – o que as pessoas apostavam?

Geralmente, as apostas e método de pagamento eram combinados antes do jogo. Chá ou cigarros podiam ser apostados, mas também dedos, orelhas, olhos ou até a vida de outro detento – ou a vida do próprio jogador. Criminosos apostavam partes do corpo em jogos de cartas para demonstrar sua força de espírito, coragem e crueldade. Quando o detento perdia a aposta, seja qual fosse, o item tinha que ser entregue imediatamente. Se se negasse, ele seria rotulado como um suka (“vadia”) e era esfaqueado. Num caso em particular, um criminoso que perdeu a mão esquerda num jogo de cartas não conseguia juntar coragem para cortar a mão e tentou fugir. As autoridades conseguiram capturá-lo e o transferiram para outro campo, mas seu destino estava selado. Em sua ausência, ele tinha sido sentenciado pela skhodka (“uma reunião de ladões legítimos”). Os criminosos descobriram para onde ele tinha sido mandado e arranjaram para que a sentença fosse cumprida lá.

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E o que essas tatuagens significavam para os russos presos – fidelidade a uma gangue, contavam uma história, marcavam eventos da vida? Tudo isso?

As tatuagens desse livro basicamente não existem mais nessa forma. Quer dizer, elas não carregam o mesmo significado, porque as punições que as tornavam “valiosas” não são mais dadas. Na era soviética, o corpo tatuado de um ladrão mostrava seu status dentro do mundo dos ladrões. As tatuagens de um vor v zakone [“ladrão na lei” ou “ladrão legítimo”] funcionavam do mesmo jeito que um uniforme coberto de regalias, condecorações e medalhas da ranque e distinção. No jargão dos ladrões, o conjunto tradicional de tatuagens era conhecido como frak s ordenami (“um casaco com decorações”). Essas tatuagens transmitiam informações secretas simbólicas que à primeira vista podem parecer familiares para todo mundo – uma mulher nua, um demônio, uma vela acesa e assim por diante.

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Essas imagens encarnam o registro de serviços de um ladrão, sua biografia. Elas detalhavam suas conquistas e fracassos, suas promoções e rebaixamentos. Elas contavam a “verdade” sobre aquele detento, se você preferir. Eram seu passaporte e ficha policial, a chave para sua sobrevivência. Assim que um detento comum entrava na população carcerária da zona, ele logo percebia que os ladrões estavam no comando. Aí ele tentava copiar suas tatuagens e maneirismos para escalar o status. Por proteção, ele precisava se mostrar excepcional, experiente, corajoso e calejado.

A pergunta feita pelos ladrões legítimos para qualquer recém-chegado era: “Você mereceu essas tatuagens?” Se as tatuagens não refletisse o ranque dele, o prisioneiro era obrigado a removê-las com uma faca, lixa, caco de vidro ou um pedaço de tijolo. Aí ele era espancado, estuprado ou morto. No mundo dos ladrões, um homem sem tatuagens não tinha status social.

Nessa estrutura simbólica densa, o que as cartas acrescentavam?

Grupos de detentos pertenciam a diferentes masti (“naipes”), e essas cartas eram símbolos representados em suas respectivas tatuagens. As cartas mais nobres eram o rei de paus e espadas. Os principais símbolos de um ladrão legítimo eram naipes de paus ou espadas. Em contraste, os naipes vermelhos eram menos nobres. Informantes pertenciam ao naipe “sociável”, representado por ouros, enquanto o símbolo de copas transformava seu portador numa “mulher” na zona. Esses dois símbolos eram aplicados à força, tirando todo o status do portador, levando à violência. Esses naipes serviam para aplicar o poder dos ladrões, funcionando como um aviso para o resto da população carcerária. Se outros detentos eram associados com os símbolos, seu próprio status seria “rebaixado”.

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Imagens alegóricas eram usadas dentro da linguagem das tatuagens para passar uma mensagem sobre o portador. Por exemplo, imagens de copulação eram tatuadas no corpo de um ladrão que não conseguiu pagar sua dívida nas cartas. Essas tatuagens eram uma punição. Enquanto isso, um ladrão que era habilidoso com cartas podia ter os símbolos de paus, espadas, ouros e copas tatuados nos nós dos dedos. Em russo, as primeiras letras de cada naipe significavam a frase Kodga Vyidu Budu Chelovekom (“Serei um homem quando sair”), confirmando a intenção do portador de continuar num caminho criminal.

Como Bronnikov, um especialista em crime que pertenceu ao Ministério de Assuntos Internos soviético, o autor do livro, juntou tantas fotos de tatuagens de cadeia?

Parte dos deveres dele envolvia visitar instituições carcerárias nas regiões dos Urais e Sibéria. Foi lá que ele entrevistou, juntou informações e tirou as fotos dos condenados e suas tatuagens, juntando um dos arquivos mais abrangentes do fenômeno. Esse material era de uso exclusivo da polícia, para entender a linguagens dessas tatuagens e funcionar como uma ajuda para prender criminosos nas ruas.

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Mas essas cartas não são da coleção de Bronnikov, elas foram adquiridas pela FUEL na última década. Como elas eram confiscadas e destruídas pelas autoridades das prisões, baralhos originais são difíceis de conseguir e muitas vezes estão incompletos. Originais geralmente são caracterizados pelo tamanho pequeno, da grossura de um maço de cigarros Prima. Esses maços geralmente eram usados para guardar as cartas porque eram a camuflagem perfeita.

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A cultura de tatuagens e cartas nas prisões russas mudou depois da queda da União Soviética? Quer dizer: isso ainda acontece lá?

Para responder essa questão, temos que voltar para a década de 1950, quando o código dos ladrões (o conjunto de regras pelo qual eles viviam) era mais rigoroso. Na época, a punição para usar uma tatuagem que você não mereceu era espancamento, estupro ou até morte. No final dos anos 1960, essas retribuições cruéis se voltaram contra os ladrões legítimos. Havia tantos prisioneiros humilhados (que tiveram seu status diminuído por estupro) que as autoridades os usavam como arma contra os ladrões legítimos, que eram jogados em celas cheias de suas vítimas.

Eventualmente, um conselho de ladrões aprovou a regra “sem punições com o pênis”, que proibia membros do seu grupo de rebaixar (ou seja, estuprar) prisioneiros por essas coisas. Isso levou a uma queda na tensão e desaparecimento gradual de punições por usar tatuagens. As tatuagens acabaram passando para as prisões juvenis, onde os detentos se cobriam com todo desenho e inscrição, incluindo tatuagens marca registrada dos ladrões. Percebendo que era impossível aplicar suas leis em jovens que os admiravam, os ladrões desistiram – permitindo uma liberdade de tatuagens.

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Com a chegada da perestroika (a “reestruturação” liderada pelo governo soviético de Mikhail Gorbachev), muitos estúdios de tatuagens abriram em toda a Rússia e o número de detentos tatuados cresceu substancialmente. Drogas também tiveram um efeito nas tradições de tatuagens nas prisões, permitindo que detentos que lidavam com esse comércio lucrativo comprassem qualquer tatuagem que quisessem.

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Criminosos russos contemporâneos têm muito menos chance de serem tatuados. Onde antes essas marcas serviam como um sinal de que o portador pertencia a uma casta de ladrões e obedecia o código dos ladrões, hoje elas funcionam como um método de identificação para as forças da lei e um obstáculo no mundo dos negócios, a verdadeira ambição dos criminosos russos modernos. Com tantos estúdios de tatuagem profissional, é cada vez mais raro ver as tatuagens de cadeia originais. As tatuagens dos criminosos russos hoje provavelmente são feitas em estúdios profissionais e carregam um significado pessoal, não de um código que pode ser entendido por outras pessoas.

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