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A figura da mulher no mundo dos jogos eletrônicos

“Eu lembro quando estava acompanhando o lançamento do Depression Quest, da Zoe” me diz Amora Bettany, artista e desenvolvedora de jogos brasileira, se referindo a Zoe Quinn, a garota responsável pelo jogo Depression Quest que, sem querer, se tornou o Arquiduque Franz Ferdinand dos games. O caso de Zoe virou o que conhecemos como Gamergate. Amora continua: “Ela tinha postado em algum desses fóruns enormes de anônimos, como o 4chan ‘olha, isso aqui é o meu jogo’ com o nome real dela e o avatar com a foto dela. Eu pensei, caralho, eu nunca teria essa coragem. Os e-mails que eu respondia da Miniboss, eu sempre assinava como sendo o Pedro”. Quando em 2010 Amora se juntou a Pedro Medeiros para formar o estúdio MiniBoss, responsável por jogos como Talbot’s Odyssey, a arte do excelente Towerfall e vários outros projetos, eles já eram um casal, e se apresentavam desta forma para as pessoas que iam conhecendo no meio. “Eu só fui perceber isso depois de uns dois anos”, comenta Amora sobre a assinatura dos e-mails. “Nossa, eu tenho medo de mostrar que eu sou mulher. Para mim era um comportamento completamente normal, é melhor se eu ficar atrás dele. Sempre me senti mais segura me escondendo atrás dele. Quando eu percebi que estava fazendo isso eu pensei ‘que merda’.”

Amora em retrato de Fernando Piovesan.

O mundo dos jogos eletrônicos e o das mulheres não esteve sempre tão distante assim, fiquei sabendo através de Thais Weiller, game designer da Joy Masher, empresa responsável entre outros por Oniken e o mais recente título Odallus, que está em pré-venda. “Acho que durante os anos oitenta, e começo dos noventa, era melhor, o Metroid é de 86″, citando o primeiro jogo de sucesso a ter uma protagonista feminina. “Na época, ser homem ou mulher não tinha muita diferença, até os porn games do Atari tinham versão feminina. Menos frequentes que as masculinas, mas existiam. Nos últimos vinte anos que essa cultura sexista apareceu, se firmou e prosperou.” O que me faz pensar no desenvolvimento da arte e hardware dos vídeo games que possibilitaram os peitos saltitantes, por exemplo, da série de luta Dead or Alive, e já que toquei nesse vespeiro vale lembrar da série paralela Dead or Alive Beach Volleyball,que é basicamente sobre peitos saltitantes mesmo, em vários biquínis e maiôs diferentes. O título original da série é de 1996, o mesmo ano que foi lançado Tomb Raider com um dos primeiros sex symbols virtuais de sucesso, Lara Croft, série que pelo menos em seus mais recentes jogos, tenta mudar um pouco o foco da sexualização de uma fêmea poligonal.

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A onda de ameaças de morte, estupro e de violência bizarra que muitas mulheres vem recebendo nos EUA, algumas delas meio engraçadas até com ameaças de “vou morder seu pescoço e beber o seu sangue!” (???), em geral parece não ter afetado o público brasileiro do mercado e cultura de vídeo games. Claro que aqui temos um ou outro ser aceitando as teóricas premissas do Gamergate de busca de “ética no jornalismo”, termo, no caso, tão amplo e vago quanto defender a prisão de políticos corruptos, e usa isso para atacar mulheres com ameaças de bombas e tiroteios em massa, além de expor informações pessoais de pessoas que acham ser contra o “movimento”. O que não significa que não exista algum tipo de problema entre os gêneros aqui, embora não da mesma forma que lá fora. Tentar fazer uma analogia direta entre um e outro não funciona muito, já que o tipo de machismo que, ao menos as garotas que eu entrevistei observaram, não são tão diretos quanto ameaças de estupro e à família de garotas desenvolvedoras de jogos lá na gringolândia. Thais comenta: “Geralmente empresas de jogos são salas com 12 a 30 pessoas, e duas ou três são mulheres. Quando a equipe tem diversidade e a mente aberta isso não costuma ser problema, na primeira empresa que trabalhei haviam gays, bis, e os homens héteros eram bem abertos. A segunda empresa em que trabalhei não era assim. Eles tentavam, eu acho, mas acabava gerando um espírito BROGAMER, de fazer piada de “viado” e alguns comentários machistas. Eles tentavam, mas tentavam errado ‘Thais, eu te considero como um cara, meu!’. Majoritariamente masculino e levemente retrógrado. Não era especialmente diferente de um escritório de contabilidade, por exemplo”.

Thais Weiller em um momento Girl Power.

O que Anita Sarkeesian, criadora da série Tropes vs Women in Video Games tenta fazer é justamente o que acho que é papel de grande parte do feminismo, aprender e ensinar a enxergar o mundo através das lentes que mostram onde há injustiça, desigualdade ou simplesmente algo estranho. Obviamente em 2012 quando Anita fez o Kickstarter do projeto, ela recebeu inúmeras ameaças, xingamentos, trolladas etc em um processo parecido com o que Zoe Quinn está passando agora. O bom de posições como a de Anita Sarkeesian, é que como qualquer abordagem que abra para discussões, ela mais gera debates e discordâncias do que 100% de aceitação de seguidores cegos ou ataque de seus “inimigos”. Segundo Amora o que Anita tenta fazer é “ensinar a ver pela lente do feminismo, e eu acho que isso não é para o público, para o gamer, é muito mais para os desenvolvedores. Para quinhentas pessoas que ficam putas com ela, xingam ela, falando que ela é uma vadia que tem que morrer, um desenvolvedor entendeu e já está fazendo os jogos de maneira diferente”. Thais parece concordar com Anita, com algumas ressalvas: “não gosto de muitas das posições na Anita, e não amo a forma que ela se expõe, mas acho ela importantíssima para que possa existir um diálogo. Antes dela o assunto era como um elefante na sala, todo mundo via e poucos comentavam”.

Outra garota com que conversei foi a Marina Val, designer que tem como hobby criar jogos, participando desde 2011 da SP Jam, um evento voltado para o desenvolvimento de jogos em uma maratona de 48 horas. No evento em si Marina diz que não existe muito problema em ser uma participante mulher, mas na internet, especialmente antes dos eventos, rola machismo. “A coisa muda um pouco de figura quando saem notícias com as fotos de meninas participando. Sempre vai ter alguém fazendo algum comentário besta tratando as meninas como alienígenas ou falando algo sobre a aparência.” Em geral dentro do evento parece rolar tudo OK: “só consegui sentir isso mesmo na internet. No evento os caras eram sempre muito cordiais”.

Sobre a diferença da recepção de jogos feitos por mulheres lá fora e aqui no Brasil, Amora destaca um exemplo: “Esses dias uma moça brasileira lançou um jogo pro oculus rift [Pixel Rift, desenvolvido pela brasileira Ana Ribeiro] e a recepção do pessoal aqui no Brasil parece ter sido ótima, não foi agressiva. Também, não sei se dá pra generalizar, nós não temos aqui mulheres lançando jogos sozinhas, mas me parece muito menos agressivo do que nos EUA”. Thais também parece não ter tido muitos problemas com o público brasileiro. “Até o MRC6-454, que é um jogo com personagem feminina forte que fiz, nunca foi xingado por isso. É engraçado, ouvi mais elogios de homens e mais críticas de mulheres, que eram mais em relação ao ritmo do jogo, que é de plataforma mais lento. Aliás, recebi muitos ‘nossa que interação legal da Rachel e do Rico’, personagens do jogo”. Uma possível explicação para essa recepção aparentemente mais positiva no Brasil se dê por conta do tamanho do público de jogos no Brasil que se interessa, e vai atrás, dos jogos independentes. A grande tigrada, a massa revoltosa de gamers reclamões, não costuma dar tanta atenção para os títulos menores. Ou talvez o brasileiro seja mais educado mesmo, vai saber.

Outra questão interessante nos jogos é a parte visual que, mesmo em jogos com figuras femininas fortes e poderosas, donas do próprio destino e de seus poderes especiais, ainda são extremamente sexualizadas visualmente, até quando não condiz muito com a narrativa do jogo. Ao discutir um exemplo que para mim era claramente uma hipersexualização da mulher com a Thais ela me mostrou outro jeito de enxergar esse caso em especial, que é da personagem Bayonetta, que recentemente ganhou uma nova edição. Segundo Thais “Bayonetta é o role tão extremo que já não vejo como sexual. Para mim, faz o círculo todo e vira uma crítica. Vejo ela como uma caricatura tão extrema dos estereótipos físicos a ponto de ser desproporcional e claramente falso, o que me soa muito mais como uma resposta sarcástica a sexualização que cada um entende como quer. Os gamers vêem como uma gostosa, gaymers vêem como uma trava, mulheres vêem como uma personagem feminina forte que não tem medo ou vergonha de ser sexual”. Realmente aos meus olhos de homenzinho hetero, eu não tinha interpretado essa bruxa que dá tiros com seu salto alto como uma figura que pode ser libertadora, e até feminista. Confesso que as câmeras do jogo como vi nas demos e vídeos, com seus zooms ginecológicos e ângulos de banheira do Gugu tive dificuldade em enxergar isso da primeira vez, mas faz bastante sentido.

Quem diria que Bayonetta pode ser vista como uma personagem feminista.

Amora, comentando sobre o desenvolver da figura da mulher nos jogos eletrônicos diz: “A maioria dos desenvolvedores independentes que conheço tem uma cabeça muito aberta, muito diferente da maioria dos gamers que estão super bravos com tudo. É uma galera que realmente quer entender e mudar o mundo, deixar as coisas de um jeito melhor. Pelo menos agora rola uma onda muito grande em jogos independentes em criar mais personagens femininas”. Thais também indica uma mudança nesse sentido, além da observação sobre o enraizamento do sexismo nos vídeo games a partir dos anos 90. “Agora está bem melhor do que era dez anos atrás, mas tem muito chão ainda” e comenta também sobre uma dicotomia que encontrou em World of Warcraft:”Uma armadura que ficava Nice em um personagem masculino, A MESMA ARMADURA, tinha decote e barriga exposta nos avatares femininos. E isso me deixava puta para caralho, por que não é uma exposição proporcional”. Marina também comenta que “aos poucos está melhorando, a própria Lara já tem proporções mais humanas nos jogos mais recentes. É uma mudança que não vai acontecer de repente só porque alguém começou a questionar”. Se referindo ao caso da Anita Sarkeesian e à crescente atenção das mulheres para estas questões nos vídeo games ela declarou: “Tem muito ainda o que discutir para entender que uma parcela do público pode estar sendo ignorada ou até mesmo se sendo ofendida com algumas coisas. Isso não significa que o jogo é necessariamente ruim, nem que é uma polícia do politicamente correto, é só pra questionar o que realmente seria justificável dentro do contexto do jogo e se, talvez, outra abordagem não conseguisse impactar uma parcela maior do público”.

Conversando com as meninas também pedi algumas indicações de jogos que elas acham que tratam a figura feminina de maneira mais razoável do que a clássica princesa em perigo ou heroína sexualizada. Amora me falou de um título lançado pela Atlus, chamado Catherine, onde a questão da sexualidade é tratada de maneira mais madura do que na maioria dos jogos, assim como me indicou vários outros jogos onde a mulher aparece de maneira mais interessante do que apenas uma versão de um personagem masculino com um lacinho na cabeça, como Mirror’s Edge, Beyond Good and Evil, Towerfall e o recente Alien: Isolation. Este último também foi citado por Thais por um motivo simples que ela defende sobre o tratamento da mulher nos jogos: “Acho que o novo Alien trata isso bem. Por tratar bem quero dizer: ela é mulher e foda-se, não tem diferença nenhuma. Pessoalmente, eu gosto quando o sexo, orientação sexual e raça ou não são tratadas ou estão lá para dar características ao personagem, não para ser uma muleta no gameplay e no storytelling do jogo”. Curiosamente já ouvi dizer que o filme Alien foi uma das principais referências para o desenvolvimento do universo da série Metroid, e sua protagonista Ellen Ripley foi a primeira personagem feminina introduzida no machíssimo (mas não machista) jogo Broforce.

A questão da mulher no universo dos jogos eletrônicos, quando não vira uma briga de foice no escuro, ataques anônimos e uma extremização segregadora que impede a criação de pontes para o diálogo das várias partes, parece estar se desenvolvendo bem, o simples fato da sexualização extrema dos vídeo games das últimas décadas me parece um sinal positivo nesse sentido. Nos últimos meses só estou esperando essa coisa de Gamergate acabar para o pessoal voltar a falar como gente grande.

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