A Fome Está Sendo Usada Como Arma na Síria

Quatro dos 73 mortos por desnutrição no campo de refugiados Yarmouk, Damasco. (Foto via Stringer/Anadolu Agency/Getty Images.)

Em setembro passado, Rana, de um ano e meio, morreu de desnutrição em Mouadamiya, nos subúrbios de Damasco. Sua mãe, Um Bilal, viu a filha emagrecer durante meses, sem poder fazer nada para aliviar seu sofrimento. Ela considera a comunidade internacional e o regime sírio igualmente culpados pela morte da criança. “O mundo assiste aos crimes do regime que matou minha filha e não faz nada”, disse ela.

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Sitiada pelo regime do presidente sírio Bashar al-Assad desde novembro de 2012, Mouadamiya é vítima de bombardeios regulares e com artilharia pesada, morteiros e bombas despejadas de aeronaves do regime. Depois de mais de um ano dessa situação, a cidade já não tem quase nenhum prédio intacto e está ficando sem espaço para enterrar seus mortos. Apesar de tudo, até agora, a população de Mouadamiya tem se recusado a se render.

De todos os que sofrem com a sangrenta guerra civil síria, Mouadamiya tem experimentado a mais calamitosa falta de sorte. O local está situado entre a base militar Mezzeh no leste, a Guarda Republicana do regime a oeste e a quarta divisão blindada de elite (comandada por Maher, irmão de Assad) ao sul. Isso tornou fácil cercar e cortar os suprimentos da cidade. Consequentemente, quando o regime se cansou de tentar retomar a cidade de vários batalhões rebeldes e decidiu recorrer ao sítio, o resultado foi a fome em massa.

O regime sírio emprega táticas similares contra outros subúrbios de Damasco controlados pelos rebeldes. Depois de falhar várias vezes em reconquistar essas áreas estratégicas nos últimos 15 meses, e de já ter usado tudo disponível em seu arsenal — tanques, jatos e até o ataque com gás sarin no dia 21 de agosto do ano passado —, agora, o exército está tentando matar seus oponentes de fome.

A vítima mais recente do uso da fome como arma na Síria é Yarmouk, um bairro de refugiados palestinos ao sul de Damasco. O lugar está cercado há sete meses e sujeito ao mesmo tratamento de Mouadamiya, com 59 mortes por desnutrição, de acordo com Ahmed Awad do Fajer Press Center. Fotos e vídeos assustadores mostram cadáveres esqueléticos que parecem confirmar as alegações de Awad e de outros residentes locais. No dia 26 de janeiro, três idosas e dois idosos, todos com idades acima de 65, morreram de desnutrição no local, ainda segundo Awad.

“Comemos quase todos os gatos e agora estamos comendo grama”, Awad me disse.

Em 18 de janeiro, o regime de Assad e líderes de várias facções palestina em Yarmouk chegaram a um acordo, estipulando — por fim — a permissão para a entrada de alimentos na cidade faminta. Uma entrega inicial de sete mil caixas de alimentos e outros produtos de assistência humanitária aconteceu sob a condição de distribuição por uma facção pró-Assad — a Frente Popular para a Libertação da Palestina-Comando Geral (FPLP-CG) — e somente para civis.

No entanto, depois de promessas de entregas regulares, o regime rapidamente cortou o fornecimento de suprimentos. De acordo com o porta-voz Christopher Gunness, a UNRWA (a agência do Reino Unido que tenta prestar assistência aos refugiados palestinos) não teve mais permissão para levar alimentos para Yarmouk desde 22 de janeiro, apesar de tentativas diárias de entregas. Gunness acrescentou ainda que, nas poucas ocasiões em que o UNRWA teve permissão para prestar assistência, “o ritmo da distribuição foi tão lento que está derrotando o propósito humanitário”.

O acordo original foi fechado uma semana depois de mais um tombo das Relações Públicas do regime sobre as condições em Yarmouk, com centenas de histórias condenáveis emergindo na imprensa internacional. Isso também veio quatro dias antes do começo das negociações de paz em Genebra, onde o regime está ansioso para ser visto como misericordioso.

Tréguas similares foram tentadas em outras áreas em poder dos rebeldes em Damasco. Em Mouadamiya, por exemplo, um pequeno carregamento de alimentos pôde entrar recentemente em troca do hasteamento cerimonial da bandeira do regime sobre a cidade, e o evento filmado pela TV estatal síria. De acordo com Abu Adnan al Hourani, do Batalhão Verde de Engenharia Militar, o acordo também exigia que rebeldes da cidade entregassem seus veículos blindados e algumas armas leves. “O regime está extorquindo as pessoas de Mouadamiya com comida”, ele disse. De acordo com Qusai Zakarya, membro do conselho rebelde local, a entrega correspondeu a uma refeição por pessoa na cidade. “Estamos sobrevivendo pela graça de Deus, mas não sabemos por quanto tempo”, ele me disse.

Um acordo anterior com o regime em novembro passado levou à evacuação de mais de 1.800 pessoas de Mouadamiya. No entanto, algumas dessas pessoas — de acordo com a Reuters, foram 230 homens em idade militar, mas segundo ativistas de Damasco, o número foi muito maior e incluiu mulheres e crianças — foram imediatamente presas pela temida Inteligência da Força Aérea, que ainda mantém algumas dessas pessoas detidas. Aparentemente, os que não foram presos fugiram para áreas marginais mais seguras da Síria, enquanto outros estão refugiados em países vizinhos.

Uma das poucas coisas que permite a sobrevivência dos cerca de oito mil moradores restantes de Mouadamiya (de uma população de 50 mil antes da guerra), assim como em outras partes sitiadas da capital, é a corrupção. Um ativista de Damasco, que preferiu se manter anônimo, me disse: “Se não fosse pelas pessoas com dinheiro, dispostas a subornar os oficiais do exército [do regime] para deixar alguma comida entrar, dezenas de pessoas morreriam de fome todo dia”. O mesmo ativista relatou que as forças pró-regime atiram sempre que ele tenta entregar alimentos em áreas sitiadas.

Zakarya diz que a provisão de pequenas quantidades de ajuda é estratégica, para fazer os residentes se voltarem contra os oponentes do regime. “Assad quer mostrar que pode dar alimento e segurança às pessoas, basta que elas se rendam”, disse Zakarya. E ele acrescentou que, em alguns casos, a tática está dando certo.

Abu Malik, um residente de Mouadamiya que alimenta sua família de seis pessoas com um quilo de arroz por dia, disse que a entrega mais recente de alimentos na cidade fez os preços do mercado negro despencarem 90%. “O quilo do arroz custava $50 (cerca de R$120), mas agora está perto dos $10 (R$24).” Mas Malik acrescentou que não acha que a baixa nos preços vai durar. “O suprimento de comida só vai durar uma semana, depois as coisas voltarão ao normal”, ele disse. “Normal”, em Mouadamiya, significa que muita gente ainda vai morrer de desnutrição.

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