A Guerra Civil Matou a Cultura do Vinil no Líbano

Ernesto Chahoud, dono da loja de discos Darsko, em Beirute. 

Embaixo de um emaranhado de fios elétricos numa rua estreita em Bourj Hamoud, um bairro armênio no leste de Beirute, um pequeno grupo de aposentados está sentado em cadeiras plásticas vermelhas do lado de fora de uma loja, fumando e ocasionalmente gritando um com o outro enquanto conversam.

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Motos e Mercedes velhas dos anos 60 competem com mulheres trazendo crianças para casa da escola e homens carregando uma mistura indescritível de sucata e madeira. No meio da monotonia diária, a melodia de “Idle Moments“, de Grant Green, emerge de uma loja indefinida, ensanduichada entre uma banca de falafel e uma loja de sapatos vendendo “Nikes” com o logo costurado ao contrário.

Lá dentro, um homem alto, usando uma camiseta ligeiramente pequena demais para ele, mexe num velho amplificador Sansui numa mesa entre os discos Gyrlz They Love Me, de Heavy D, Attic Thoughts, de Bo Hanson, e funk psicodélico turco dos anos 70. O disco de “Idle Moments” girando na vitrola é um Blue Note 1964 original. Cópias similares já foram vendidas no eBay por mais de US$ 950.

Seria fácil passar pela Darsko sem perceber. Eminentemente uma loja, ela também funciona como ponto de encontro para amigos, músicos locais, entusiastas dispostos a pagar caro e conhecedores procurando revender discos. A legislação arcaica de imóveis local fixou o aluguel do prédio no período anterior à guerra civil libanesa (1975-90); então, os pagamentos mensais para o proprietário são insignificantes.

Nos últimos meses, nomes como DJ Format, Ollie Teeba, do Herbaliser, e a lenda alemã Florian Keller passaram por aqui durante suas visitas a Beirute para tocar com o Beirut Groove Collective(BGC), um grupo de DJs que só toca vinil, colocando uma variedade de jazz, rhythm and blues, soul, funk, rare groove e hip-hop nos toca-discos. No dia primeiro de novembro, Mr Thing – duas vezes campeão do DMC World DJ Championship e produtor por trás do LP clássico Grown Man Business, do Yungun – também vem a Beirute para tocar com o coletivo.

Dono da Darsko e membro fundador do BGC, Ernesto Chahoud é um dos maiores colecionadores de vinil do Líbano, com mais de 10 mil deles desenterrados de mercados de pulgas, lojas antigas de discos, sótãos e lixeiras de Beirute e do Líbano desde o meio dos anos 90. Além de seu trabalho com o BGC, Chahoud tem ajudado a trazer artistas – incluindo o pioneiro guitarrista de jazz Ryo Kawasaki e o americano Melvin Sparks – para o país.

O Líbano pode não parecer o lugar ideal para entusiastas do vinil, mas qualquer lugar pode ser o paraíso na terra dos fuçadores de caixas de discos sob certas circunstâncias.

O período entre o final da ocupação francesa até o começo da guerra civil é considerado uma era de ouro no país. Durante essa época, impulsionado pelo fluxo de turistas ocidentais visitando o país nos anos 40, discos de vinil começaram a ser prensados aqui. Selos locais como Societe du Libanais du Disque adquiriram os direitos de distribuição de gravadoras europeias e americanas, enquanto outros, como o Dunya Phone, buscavam promover músicos locais e regionais. Durante esse período, nomes como Miles Davis, Dizzie Gillespie e Ella Fitzgerald estiveram no país, tocando em shows lotados no festival Baalbek entre algumas das mais incríveis ruínas romanas do mundo.

Apesar de o festival Baalbek ainda acontecer hoje, a guerra civil trouxe um final cruel para a era de prensagem de vinis no Líbano.

O espaço que a Darsko ocupa hoje era a fábrica de sapatos do avô de Chahoud. No entanto, em 1975, a família, simpatizante do partido comunista libanês, se mudou para o oeste da cidade, já que o leste estava cada vez mais dominado por milícias cristãs de direita. Depois da invasão israelense de 1982, eles se mudaram de novo, dessa vez para Rmeileh, um vilarejo nas montanhas perto de Sídon e, na época, um dos últimos redutos comunistas remanescentes no país.

“Um dia, no ônibus da escola, estávamos parados no trânsito. De repente, foguetes acertaram o carro do nosso lado”, diz Chahoud. “Tudo começou a pegar fogo, as pessoas estavam correndo e gritando. O motorista conseguiu dar meia volta e nos levar para casa. Acho que eu tinha uns cinco anos. Logo depois disso, meus pais saíram de Beirute.

“A vida em Rmeileh no final dos anos 80 era normal. A cidade estava cheia de homens armados e bêbados. Sabe, como aquele filme de Sam Peckinpah Meu Ódio Será Sua Herança. Era o final da guerra, aquele tempo latente entre o fim de uma era e o começo de outra. Na verdade, eu sonhava em voltar para Beirute – principalmente porque eles não tinha pinball em Rmeileh. E eu também queria sair com garotas.”

No começo dos anos 90, Chahoud retornou para o leste de Beirute com os pais enquanto a cidade e seus cidadãos tentavam se reerguer depois de 15 anos de conflito.

“Comecei a andar com um grupo mais velho que eu – tipos hippies e do rock ‘n’ roll. Eles estavam ouvindo Doors, Rolling Stones, Iron Maiden, Led Zeppelin, Deep Purple, etc. A gente comprava fitas cassete em lojas que não tinham nada, só uma mesa, uma cadeira e milhares de fitas empilhadas contra a parede. As fitas só tinham o nome do artista e do disco na capa, não a lista das faixas. A gente nunca sabia o nome de cada música”, lembra Chahoud.

“Um dia, comprei um conjunto de cinco fitas, que incluía uma das primeiras coisas do Fleetwood Mac com o Peter Green, uma do Bob Dylan e uma do Crosby, Stills, Nash & Young. Lembro de tê-las ouvido quando cheguei em casa naquele dia e pensar: ‘Caralho, isso é alguma coisa’. Cerca de um ano depois, comecei a comprar vinil.

“No começo dos anos 90, as pessoas voltaram para suas casas depois da guerra e começaram a reformar e vender coisas. Todo mundo estava jogando seus vinis fora, especialmente por causa da ascensão do CD. Eu costumava ir ao mercado de pulgas nos arredores de Beirute todo final de semana. Eram caixas e mais caixas, e eu pagava cerca de 500, mil libras libanesas (R$ 75, R$ 1,50 por disco). Meus pais acharam que eu tinha ficado louco.”

Apesar de ainda ser possível tropeçar num tesouro, a maioria dos discos de valor prensados no Líbano já foi comida pelos colecionadores. Os negociantes também ficaram mais espertos sobre o valor potencial de disco raros e nem tão raros assim, com o apetite feroz de Chahoud servindo praticamente sozinho para elevar os preços do mercado.

Ernesto na King’s. 

Na King’s, uma loja de discos a dez minutos de caminhada da Darsko, Chahoud discutiu durante meia hora com o dono sobre a disponibilidade de um disco do Deep Purple. Uma foto de King tendo a bochecha apertada por Julio Iglesias fica pendurada na parede atrás do balcão, e um peixe voador de pelúcia fica em cima do caixa. No meio dos anos 90, Chahoud comprou uma caixa de vinil de King por reles 40 mil libras (R$ 64). A caixa tinha alguns álbuns raros de soul e disco. Ele diz que King se arrepende disso até hoje.

Hoje, o LP do Deep Purple não está à venda. Chahoud sai da loja cabisbaixo enquanto King volta ao trabalho que estava fazendo antes: colocar DVDs pornôs piratas em capinhas de plástico com uma folha de papel com imagens picantes explicando o enredo.

“Foda-se”, diz Chahoud, saindo da loja e relembrando um show de Larry Corryell em Beirute alguns anos atrás.

“Acabei nos bastidores e perguntei a Corryell sobre a sessão quase mítica que ele teria gravado com Miles Davis na época”, ele lembra. “Ele olhou pra mim, sem acreditar, e disse: ‘Como você sabe disso?’. Depois, ele disse que era verdade, mas que a família de Davis nunca permitiu o lançamento. Ele não sabia dizer por que, mas acrescentou: ‘Vou te falar uma coisa: Miles me fez tocar como nunca toquei antes’.”

Falando com Chahoud, fica claro que ele queria muito ter estado em Beirute durante a era de ouro, quando vinis eram prensados aqui e alguns dos maiores nomes do jazz e do soul agraciavam o palco do Baalbek.

“Deve ter sido incrível”, opinou Chahoud. “Muitas pessoas aqui não têm medo do ISIS. Durante a guerra civil, fizemos coisas tão ruins quanto eles. Decapitar pessoas, colecionar orelhas cortadas, amarrar um homem em dois carros e rasgá-lo no meio… muitas coisas loucas. Só não existia o YouTube.

“Meu sonho é que um dia Beirute volte a ser a cidade que era: reconhecida como um centro cultural próspero não só no Oriente Médio, mas por gente do mundo todo.”

@martnbeirut

Tradução: Marina Schnoor