Youssouf Barry carrega uma inocência no sorriso capaz de fazê-lo parecer mais jovem que os recém-completados 18 anos. Ele desliza fotos sobre a tela do celular e mostra o irmão mais velho, zagueiro de um time da terceira divisão francesa, e a irmã caçula, que ficou na Guiné. Ao passar o dedo outra vez para a esquerda, surge a foto da mãe. Ela veste um traje muçulmano típico do país africano. O garoto tenta disfarçar, mas seu rosto se entristece ao bater os olhos na imagem. Ele não vê a mãe há quase dois anos.
A saudade aperta nas solitárias tardes de domingo entre as paredes sem reboco do barraco de dois cômodos em que se refugiou na periferia de Santo André, região metropolitana de São Paulo. Robusto, com 1,63 metros, Yousoouf é lateral-direito do time amador do Alhambra. Vive um cenário bem distinto do que imaginou ao deixar sua terra natal durante a última Copa do Mundo no Brasil. “Eu vim para ser jogador profissional de futebol, mas fui enganado”, diz, nos campos de terra do Jardim Utinga, onde sua equipe joga.
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Um empresário transformou o sonho de Youssouf em pesadelo. O jovem chegou ao Brasil na madrugada de 25 de junho de 2014 depois de cruzar os mais de 5.000 quilômetros que separam a capital Conacri do Aeroporto Internacional de Guarulhos. Ao lado dele, passaram pela imigração outros cinco garotos guineenses entre 16 e 17 anos.
O grupo havia recebido a promessa de um suposto empresário, identificado como Walter Bangoura, de que seriam levados para treinar com o time juvenil do São Paulo e morar nas luxuosas instalações do centro de treinamento da base, em Cotia. Para isso, cada família pagou cerca de 9.000 dólares ao agente. “Meu pai juntou todas as suas economias para pagar a viagem. O maior sonho dele é ter um jogador famoso na família”, conta Youssouf.
Os garotos saíram da Guiné com honrarias. Foram recebidos no Palácio do Governo pelo presidente Alpha Condé, que recomendou empenho aos jogadores e deixou explícito o desejo de contar com eles na seleção sub-20 do país. Logo nos primeiros dias em terras paulistanas, porém, os meninos estranharam a rotina nada glamorosa que eram obrigados a cumprir.
Eles foram alojados em um cortiço no bairro da Água Funda, zona sul de São Paulo, onde passaram quatro semanas dormindo no chão e comendo apenas uma refeição por dia. “Assim que acordava, a gente comia pão e tomava um copo de leite. Depois, não tinha mais nada”, lembra Youssouf. Durante a manhã, eles treinavam numa escolinha do São Paulo na região. Foi assim até que o agente retornou para Conacri e desapareceu. Com a mensalidade vencida, os meninos foram dispensados da escolinha e largados no cortiço. Só então se deram conta de que haviam caído em um golpe do empresário.
“Meus amigos da Guiné me pedem para mandar camisas, imaginam que estou num clube grande. Mas minha realidade é muito diferente disso.”
Por falta de pagamento do aluguel, acabaram despejados. Na época, nenhum deles falava português. Foram acolhidos pelo ex-jogador Júnior Lima, que atuou com o irmão de um dos garotos no futebol da Indonésia. Ao tomar conhecimento da situação, ele buscou os meninos numa van e os abrigou temporariamente nos fundos de sua casa. Dias depois, policiais bateram à porta de Júnior para investigar uma denúncia anônima de cárcere privado.
O ex-jogador alegou que amparava os garotos a pedido de um familiar deles. O grupo foi levado para o Conselho Tutelar de Santo André, que acionou a Embaixada da Guiné em Brasília. A Polícia Civil apurou o caso, mas, como Walter Bangoura não foi encontrado, o processo acabou arquivado. Por sua vez, a diretoria do São Paulo afirmou que jamais manteve convênio com agentes da Guiné.
“Os meninos estavam abalados pelo tratamento que receberam do empresário, mas não queriam retornar a seu país sem antes tentar vaga em times brasileiros”, afirma a conselheira tutelar Eliana Fernandes. Havia a possibilidade deportação, mas as famílias assinaram documento conferindo a guarda provisória dos garotos a Júnior Lima, que passou a ser o responsável por eles no Brasil e os levou para fazer testes em clubes da Grande São Paulo.
Apesar da aflição causada pelo golpe do empresário, os pais tinham outro motivo além do futebol para tentar manter os filhos longe de casa. Naquele período, Guiné, nação com o sétimo pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do mundo, convivia com o fantasma do ebola. O vírus começou a se espalhar no fim de 2013 pelo interior do país, um dos mais afetados pelo surto que deixou mais de 11.000 mortos no continente africano. Somada a euforia pela realização da Copa e ao amadorismo do futebol local, a epidemia serviu para o empresário convencer os pais a mandarem os filhos para São Paulo.
Familiares processaram o empresário na Guiné, mas não conseguiram reaver o dinheiro. Um dos meninos, filho de um membro da diplomacia guineense no Canadá, rumou para o país da América do Norte. Outros três deixaram o Brasil no fim do ano passado. Sobraram Mahmoud, que agora tenta a sorte no interior do Paraná, e Youssouf, o único deles que permanece em Santo André. Em contato com a reportagem, a Embaixada da Guiné informou que “o presidente Alpha Condé não tem nenhum vínculo com Walter Bangoura”.
Ainda segundo a Embaixada, um staff diplomático foi enviado a Santo André em 2014 para acompanhar a situação do grupo, mas, como se tratava de “negociação particular” entre empresário e as famílias, o governo do país diz não ter responsabilidade pelos meninos.
Por outro lado, os garotos afirmam que, pelo fato de o presidente Alpha Condé ter chancelado a viagem em uma cerimônia oficial, seus pais se sentiram seguros para fechar o negócio. De acordo com eles, Walter Bangoura também prometera às famílias se responsabilizar pela educação dos filhos. Para viajar, Youssouf teve de interromper os estudos antes de cursar o ensino superior. Com o visto vencido e a falta de documentação para comprovar escolaridade, ele não pode nem prestar vestibular. Também não conseguiu tirar a carteira de identidade para estrangeiros.
Há dois meses, Youssouf arranjou um emprego próximo à estação da Luz, no centro de São Paulo – obviamente, sem carteira assinada. Ele recebe 830 reais para limpar e carregar máquinas de costura. “O governo da Guiné não me ajudou em nada. O único apoio que tive aqui foi de brasileiros que me deram abrigo quando fomos despejados.” Walter Bangoura não foi localizado pela reportagem para comentar as acusações.
garimpo de jogadores na África
Youssouf e companhia foram vítimas de prática recorrente no Brasil. O tráfico internacional de pessoas envolvendo o futebol faz do continente africano o maior alvo. Antes, esse comércio clandestino de jovens talentos se limitava à rota África-Europa, tendo a França como destino prioritário devido à língua oficial comum a muitos países fornecedores de “pé de obra” a baixo custo, como Guiné, Camarões, Costa do Marfim e Senegal. No entanto, com as restrições de imigração impostas pela Europa, clubes da América do Sul e principalmente do Brasil se tornaram a alternativa para os empresários. Quando as promessas não vingam, elas acabam sendo exploradas em clubes amadores ou obrigadas a trabalhar em troca de comida e abrigo.
Por se tratar de um continente em que milhares crianças vivem em situação de extrema pobreza, sob constante ameaça de conflitos violentos e surtos de enfermidades, a África se tornou mina de ouro para agentes. Um empresário brasileiro, que já importou jogadores africanos para o Brasil mas diz não operar mais no continente, descreve à VICE Sports o processo de captação de talentos. “Como o futebol de lá não dá futuro e paga mal, os pais preferem que seus filhos saíam em busca de uma vida melhor. Raramente oferecem alguma resistência”, diz o empresário, em condição de anonimato. Ele também revela a facilidade encontrada para entrar no Brasil com jogadores estrangeiros. “O visto de estudante ou de turista já é suficiente. Apenas uma vez me pediram a autorização dos pais de um garoto na imigração. Se o menino vem para jogar futebol, que mal tem?”
O regulamento de transferências da Fifa não permite a transferência de menores de 18 anos para outros países. No caso de meninos do continente africano, a exceção é se a família tiver se mudado para o mesmo país do clube contratante por motivos não relacionados ao futebol. A legislação considera nulo qualquer tipo de procuração assinada pelos pais. Recentemente, Barcelona, Real Madrid e Atlético de Madri foram punidos pela Fifa por recrutar jogadores africanos com menos de 16 anos de idade.
Por aqui, os clubes se especializaram em burlar a regra. O angolano Geraldo, revelado pelo Coritiba, e o camaronês Joel chegaram ao país ainda adolescentes. O atacante do Santos foi trazido por um empresário aos 15 anos e teve de treinar como amador por três temporadas até poder assinar um contrato profissional com o Londrina.
Joel é tido como um exemplo de superação para Youssouf, que, apesar do golpe sofrido, segue em busca de um lugar ao sol no futebol brasileiro. Disputando campeonatos de várzea com o Alhambra, ele consegue faturar até 80 reais por jogo e, vez ou outra, ganha uma cesta básica dos dirigentes. Fã do ex-lateral e pentacampeão do mundo Cafu, ele já se comunica bem em português e é querido pelos colegas de time. Reconhece, porém, que a aventura até aqui lhe muito mais dissabores do que conquistas. “Meus amigos da Guiné me pedem para mandar camisas, imaginam que estou num clube grande. Mas minha realidade é muito diferente disso.”
Segundo ele, Walter Bangoura teria retomado contato com sua família no início deste ano. O agente informou que levaria outros 15 jogadores da Guiné para um time de Brasília e estava disposto a incluir Youssouf no grupo. “Nunca mais aceito nada dele. O que fez comigo não tem perdão”, afirma. Voltar para Conacri não está em seus planos.
Em dezembro do ano passado, a Guiné anunciou o fim da epidemia de ebola no país, mas um novo registro do vírus em abril causou oito mortes e tornou a alarmar a população. Quando bate a saudade, Youssouf recorre ao celular e à foto da mãe. Na várzea de Santo André, a esperança ainda reside num par de chuteiras e persevera por dentro da camisa amarela em reverência ao país que ele ainda não pode chamar de pátria.