Este artigo foi publicado originalmente na VICE ES.
O Rafael van der Vaart publicou um vídeo no Twitter a mostrar-nos como está a passar quarentena: a dar toques de cabeça numa bola na sua piscina aquecida. Jesé fez o mesmo. Incentivou-nos a continuar a treinar e pediu para não nos esquecermos que não estamos de férias. No vídeo, aparecia a correr num jardim muito maior do que a minha casa que, por sua vez, é maior do que a casa de muita gente.
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Numa situação diferente, ver dois jogadores de futebol no seu entorno natural – aviões privados com bancos de pele, mansões com bancadas de mármore decoradas com um gosto um tanto questionável – não teria gerado a mínima revolta. Que os jogadores de futebol, como tantos outros profissionais e não profissionais de diferentes áreas, nos poderiam enterrar em dinheiro se lhes apetecesse é algo que já todos sabíamos.
Mas esta quarentena está a fazer-nos perceber que, entre outras coisas, as classes sociais, além de existirem, importam; que não é o mesmo passá-la em mansões de luxo com jardim do que em apartamentos minúsculos, com janelas tão pequenas que não entra quase luz. Que há quem a esteja a passar na rua. “Romantizar a quarentena é um privilégio de classe”, lê-se em cartazes pendurados nas varandas, em Espanha e em Itália. E é.
É paradoxal que seja precisamente quando somos forçados a isolar-nos, que nos apercebemos que o meme é verdade: VIVEMOS NUMA SOCIEDADE. Numa sociedade liberal e capitalista, concretamente. E apercebemo-nos disso agora porque a rua nos iguala. Quando fechamos a porta de casa atrás de nós, parecemos todos iguais. Fazemos mais ou menos as mesmas coisas, vestimos mais ou menos as mesmas roupas, falamos sobre mais ou menos as mesmas séries de merda e a nossa vida é, mais ou menos, uma concatenação de preparar Tupperwares e ir trabalhar e de ir trabalhar e preparar Tupperwares.
Mas as video-chamadas e os stories, as publicações durante a quarentena estão a tornar-nos mais conscientes do que nunca da importância de uma casa. De como as diferenças de classe se tornam evidentes sob a luz que entra pelas janelas, o cheias que estão as prateleiras do frigorífico e das bibliotecas, os metros quadrados, a decoração das paredes e até as loiças guardadas nas gavetas. A classe trabalhadora tem facas e garfos que nem sempre combinam, de vários faqueiros misturados e promoções de supermercados, mas há quem tenha até colheres próprias para o café.
Desde que nasci, há 28 anos e até ao dia de hoje, morei em 13 casas. 12 mudanças, cada uma por um motivo diferente. Tive quartos com varanda e casas com pátios e dividi um quarto com o meu irmão e os meus pais quando, depois do divórcio, tivemos que aprender a viver separados e com metade. Mas nunca pensei tanto sobre a importância de uma casa, de um lar, como agora; sobre como nem o alinhamento dos nossos dentes nem a maneira como falamos ou nos vestimos reflecte tão bem de onde vimos e o que somos.
Comecei a quarentena há quase duas semanas, no meu apartamento partilhado em Madrid, que tem duas casas-de-banho e quartos consideravelmente grandes, com janelas também consideravelmente grandes. Desde então, que não paro de pensar na minha família e nos meus amigos, se estão bem ou não e, com muita frequência, na casa em que vivem. Penso na minha mãe no seu rés-do-chão interior, imagino o meu pai a fumar cigarros na varanda à conversa com o vizinho do outro lado da rua e o meu avô no seu curral cheio de flores furioso “com Deus e com todos os santos” por terem fechado o lar de idosos. Penso na Cynthia, que mora com o namorado num apartamento minúsculo que custa 800 euros por mês e na minha prima Marta e na Sara, que têm um terraço quase maior do que a casa.
No outro dia, um amigo enviou-me uma fotografia dele e da irmã no jardim com piscina da casa de férias, a norte de Madrid, a fazerem exercício em dois colchões estendidos no chão. E lembrei-me da House Party que tinha feito dez minutos antes, com outros amigos, para fazermos cardio em video-chamada e da Cynthia na sua sala de estar, que é daquelas em que mal tens espaço para fazer uma prancha entre o sofá e a mesa. Lembrei-me de quando ela comprou essa mesa, que é desdobrável para poder ver a televisão, que só cabia mesmo atrás. Também me lembrei de quando, em 2008, o pai dela foi despedido do bar em que trabalhava e do dia em que ela me disse, com 18 anos, que se tinha preocupado mais por dinheiro nesse tempo do que muitas pessoas na vida inteira. E era verdade.
Nesta quarentena, estamos a dar-nos conta da importância de uma casa, de um lar, pela diferença que faz passar um mês trancado em 40 metros quadrados ou fazê-lo em 100. Estamos a tornar-nos conscientes do quanto as paredes entre as quais vivemos nos marcam e, ao mesmo tempo, reflectem o que somos. E estamos a começar a perceber que, nesta altura, existe uma relação inversamente proporcional entre a luz, os metros e o medo. Em casas com menos metros e menos luz, mais medo. Medo pelo pai que precisa de continuar a apanhar autocarros para ir trabalhar e medo do número na conta bancária, quando isto tudo passar.
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