A Luta de uma Velocista para Provar que É Mulher

Em apenas dois meses, a velocista indiana Dutee Chand, hoje com 19 anos, foi de futura medalhista olímpica da Índia à cobradora de trem.

O declínio de sua carreira começou em julho do ano passado, alguns dias antes do embarque da delegação indiana para os Jogos da Comunidade Britânica em Glasgow, na Escócia. Chand, então com 18 anos e campeã nacional de 100 metros rasos, fora expulsa da equipe sem muitas explicações.

Videos by VICE

Mais tarde se soube que ela não havia sido pega no teste anti-doping, como alguns suspeitaram; sua forma física e desempenho eram os mesmos de sempre – ótimos e naturalmente saudáveis, diga-se. Na verdade, Chand fora proibida de competir contra outras mulheres por ter sido reprovada num “teste de gênero”.

A indiana estava em momento vitorioso. Ela conquistara medalha em quase todos as competições de atletismo entre 2012 e 2014. Em 2013, tornou-se a primeira indiana a chegar na final da competição de 100 metros rasos do Campeonato Mundial de Juniores e, no mesmo ano, também ganhou a medalha de bronze na prova de 200 metros rasos do Campeonato Asiático e faturou o ouro na prova de 100 metros rasos no Campeonato Nacional de Atletismo da Índia. No ano seguinte, em junho, ela subiu no pódio do Campeonato Asiático de Juniores para receber mais duas medalhas de ouro.

Crédito: Agdashloo, WikiMedia Commons

Mas alguém estava desconfiado: uma pessoa não-identificada viu Chand competir no Campeonato Asiático de Juniores e solicitou que a Federação de Atletismo da Índia testasse a atleta. Chand foi obrigada a dar amostras de sangue e urina e, depois, passou por uma bateria de testes. Os médicos não explicaram o motivo dos exames. As associações também se calaram. A atleta indiana então se perguntava por que os médicos teriam pedido ultrassom. “Isso não faz parte do teste anti-doping”, ela pensou.

O suspense permaneceu até o dia em que Chand viu uma notícia curiosa na TV. Ela não estava sendo acusada de doping — a reportagem afirmava que ela havia sido reprovada no teste de gênero. “Você não é uma mulher”, dizia a TV. E o IAAF, a Associação Internacional de Federações de Atletismo, dizia a mesma coisa: Chand havia sido proibida de competir com outras mulheres.

Os pais de Chand, Chakradhar e Akhuji Chand, se viram no meio de uma enorme polêmica. Repórteres e cinegrafistas cercavam sua casa. Os vizinhos fofoqueiros e a comunidade conservadora transformaram suas vidas em um pesadelo. Todos queriam fazer a mesma pergunta horrível: “Dutee é um menino ou uma menina?”

Os pais de Chand, dois tecelões, viveram com cerca de oito dólares semanais durante boa parte de suas vidas. Seus setes filhos foram criados em um pequeno casebre. Durante muito tempo, os membros da família tinham que andar quase dois quilômetros até o banheiro comunal mais próximo. Mas nenhuma dessas dificuldades os preparou para esse momento: estranhos e vizinhos de longa data na porta de sua casa para questionar a identidade de sua filha.

“Ninguém sabe mais do que uma mãe”, disse Akhuji a um repórter num breve momento de coragem. “Mandei minha filha para o treinamento. Como eles podem dizer que ela é um homem?”

Chand se trancou em seu quarto e chorou durante três dias; enquanto isso, seus colegas de equipe se preparavam para a competição em Glasgow. Ela havia passado de atleta celebrada — acostumada com honrarias nos aeroportos, prêmios em dinheiro e elogios da imprensa — a uma adolescente rejeitada pela mesma instituição que a havia apoiado.

“Várias perguntas estranhas ocupavam minha mente”, disse Chand a VICE Sports pelo telefone. “É claro que eu sou mulher, sempre fui”, ela afirmava para si mesma e para seus amigos. “Nem consigo pensar sobre essa época.”

Gopalpur, Odisha, Índia. Crédito: Jagadhatri, WikiMedia Commons

Em 2011, o IAAF introduziu em seu regulamento uma regra sobre o hiperandrogenismo (HA). A regra determina que, caso o corpo de uma mulher produza um nível de testosterona considerado fora do normal, ela será proibida de competir em provas femininas. Uma medida parecida foi adotada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) antes das Olimpíadas de Londres de 2012. A justificativa é simples: a testosterona incentiva o crescimento da massa muscular, o que tornaria o excesso do hormônio uma “vantagem injusta”, mesmo que seja produzido naturalmente.

O COI chegou a anunciar, em comunicado sobre as Olimpíadas de Londres, que caso as mulheres com excesso hormonal quisessem, elas poderiam se escrever nas modalidades masculinas. É, convenhamos, uma sugestão bizarra, já que a testosterona não é o único fator que diferencia as perfomances atléticas femininas das masculinas.

“Se alguém nasce como uma mulher, é criado como mulher, vive como mulher a vida inteira e é treinada dentro de uma modalidade feminina, o mais natural é deixá-la competir como mulher”, diz Alice Dreger, professora do programa de bioética da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos. “Deveríamos reconhecer que essas são categorias de gênero, não de sexo. Devemos manter essas categorias de gênero — uma categoria social, não biológica — e não tentar impor um corte biológico numa categoria que depende de auto-identidade.”

Eric Vilain, um geneticista da Universidade da Califórnia de Los Angeles (UCLA), que trabalhou na formulação das regras sobre hiperandrogenismo da IOC, admitiu diversas vezes que o sistema não é perfeito. Mas, segundo ele, para uma competição profissional, é preciso traçar um limite. Para o IOC e para a IAAF, esse limite — que define quem pode competir na categoria feminina — é a quantidade de testosterona.

“Se concordarmos que homens e mulheres devem competir separadamente — não que essa seja a única forma de divisão, é claro — a próxima pergunta seria como dividir homens e mulheres nessas duas categorias”, disse Vilain em um telefonema. “Uma possibilidade seria perguntar. Isso pode ser feito, mas então teríamos problemas com homens que dizem ser mulheres,ou com atletas transexuais que se identificam como mulheres e que ainda não passaram pela transição. Biologicamente, eles poderiam competir como homens — mas eles se identificam como mulheres. Seria justo, então, que eles competissem com outras mulheres?”

Muitos argumentam que existem outros problemas no regulamento, como o fato de que ele prejudica exclusivamente as atletas femininas. Segundo o regulamento do IOC, só mulheres precisam provar seu gênero. Não existe nenhuma regra sobre “vantagem injusta” para os atletas homens. E se os níveis de testosterona de um atleta forem significantemente maiores do que a média? Não existe nenhuma regra que desqualifique homens com base em seus níveis de testosterona.

“Onde nós os colocaríamos?”, rebate Vilain. “Não existe uma terceira categoria — mulheres, homens e superhomens.”

Outros acreditam que a ideia de manter um limite de testosterona é ridícula. Dreger, que também trabalhou como consultor na criação do regulamento do IOC, acredita que a regra que limita a quantidade de testosterona é “não-científica e machista”.

Quando a IAAF e o IOC anunciaram a nova regra, ainda não haviam decidido qual seria o limite máximo de testosterona. Caso alguma atleta quisesse ser testada em particular, de modo a evitar a humilhação pública de um teste de hiperandrogenismo, seu pedido seria recusado. As insitituições decidiram que o limite seria definido quando os casos começassem a surgir. O limite mínimo da testosterona masculina é, segundo essas duas instituições, 10 nanomols por litro. Caso uma mulher tenha uma concentração hormonal maior, ela é impedida de jogar até diminuir sua taxa — muitas vezes por meio de métodos invasivos.

“As mulheres têm um limite de testosterona, mas os homens podem ter a concentração que eles bem quiserem. O regulamento não explica porque os androgênios são considerados uma característica masculina quando, na realidade, as mulheres também os produzem” , diz Dreger. “Não existe um limite para a concentração de testosterona masculina. Só as mulheres sofrem essa sanção, e isso é claramente machista.”

Uma representação da molécula de testosterona . Crédito: WikiMedia Commons

Segundo Dreger, um outro problema é o fato de que nem toda atleta passa pelo teste. As investigações são irregulares e seletivas. Em português mais claro, as atletas são escolhidas com base em características externas. Como nem todas estão sob o mesmo nível de suspeita, o regulamento não se aplica às mulheres que não exibem características físicas comumente atribuídas à alta concentração de testosterona — que, em alguns casos, podem ser mascaradas por meio de intervenções médicas feitas ainda na adolescência. É possível, afirma Dreger, que atletas do primeiro mundo, onde o acesso à medicina cosmética é maior, tenham mais facilidade em fugir da vigilância.

Chand e seus defensores afirmam que esse é exatamente o problema. “Esses casos sempre acontecem com atletas de países periféricos. Nunca soube de uma atleta do primeiro mundo que tenha sido banida por esse motivo”, diz Jiji Thomson, ex-diretor geral da Entidade de Esportes da Índia. “O processo é claramente discriminatório em relação aos atletas do terceiro mundo.”

Dreger entende por que algumas pessoas acreditam nisso. “Sabemos muito bem que as garotas nascidas e criadas em países desenvolvidos tem mais acesso à saúde, à nutrição e à serviços médicos em geral”, diz.

“Não excluímos atletas por causa de outras vantagens biológicas como altura, melhor processamento de oxigênio ou maior desenvolvimento muscular. Não acreditamos que essas vantagens prejudicam as outras atletas”, afirma. “Então é particularmente irônico que as atletas do terceiro mundo sejam expulsas por terem uma vantagem natural, quando, na realidade, elas possuem uma série de desvantagens biológicas.”

O treinador de Chand, N. Ramesh, afirma que sua atleta também acredita nisso. Além disso, ela sente que teve que treinar muito para compensar suas desvantagens. “Ela costuma dizer que um elefante pode ser mais forte do que um cavalo, mas ele nunca será mais rápido. Afinal, o cavalo foi treinado para correr, e é isso que ela faz, ela treina todos os dias”, disse Ramesh em uma ligação feita de Hyderabad, na Índia.

Quando sua expulsão foi anunciada, as vidas de Chand e de seus familiares dependiam de sua carreira esportiva. Ela paga a escola de duas irmãs mais nova e planejava usar parte de sua renda para rebocar a casa de sua família. Sair do esporte significaria desistir de tudo que ela havia lutado para conseguir.

“Desde que me lembro, correr é a minha vida. Tudo o que tenho veio do atletismo. Quando as garotas tem três ou quatro anos, elas estudam. Eu só corria”, diz Chand.

Chand lembra da época em que andava mais de três quilômetros para chegar até a escola. Correr era a única distração que ela e sua irmã mais velha Saraswati tinham durante a infância em Gopalpur, uma vila no estado de Odisha, no leste da Índia. Nada de televisão, jogos ou Barbies.

“Não tínhamos bicicletas ou carros para ir à escola”, diz. “Então transformávamos o caminho em um jogo.”Chand e quatro de suas amigas apostavam corrida todos os dias depois da escola. Quem chegasse primeiro em casa ganhava. Na época, Chand já era rápida.

Foi isso que levou Saraswati a levar sua irmã mais nova, na época com nove anos, para conhecer o treinador Ramesh. Dali em diante, Chand começou a viver em hostels e a cuidar de si mesma. Ela não precisava mais da ajuda de Saraswati.

Mas agora tudo mudou. Quando soube da notícia, Chand ligou para casa aos prantos, descrevendo os olhares, cochichos e comentários maldosos sobre seu porte, seus músculos e sua estrutura física. Saraswati e Ramesh tentaram animá-la contando histórias sobre a vida e os desafios de líderes como Madre Teresa de Calcutá e Mahatma Gandhi. Saraswati lhe narrou a história de Rama, um deus Hindu que foi exilado logo antes de sua coroação.

“Dissemos para ela que se isso acontece com deuses, também pode acontecer com nós, meros mortais”, conta Ramesh.

Embora Saraswati procurasse animar sua irmã, ela também estava preocupada com a repercussão daquelas notícias em sua comunidade. “Como alguém vive como uma garota durante 17 anos e 11 meses e de repente se torna um garoto no seu aniversário de 18 anos?”, disse ela à The Indian Express.

Na época, Jiji Thomson e a Secretaria de Esportes da Índia deram um importante passo para acabar com todas as fofocas e publicaram um comunicado que dizia que o que estava em questão não era o gênero de Chand. O informe mudou o tom da cobertura do caso na mídia indiana.

Mas ainda havia outro problema: como trazer Dutee de volta para as pistas de atletismo?

Chand começou a se inspirar nas histórias motivacionais de Ramesh e Saraswati. Naquele momento, um dos lemas do movimento de independência da Índia lhe veio à mente. Nos anos 40, Subhas Chandra Bose, um dos líderes do movimento, incitou o povo com a seguinte frase: “Se vocês me derem seu sangue, eu lhe darei a liberdade”. Ramesh diz que Chand modificou o lema: “Se vocês me derem apoio, eu lhe darei uma medalha olímpica”.

A única forma de voltar para o esporte era mudando seu corpo. Essa opção parecia absurda, mas, para competir novamente, era preciso agir.

Thomson e Dra. Payoshni Mitra, feminista e ativista do ramo esportivo, foram os primeiros a oferecer ajuda. Juntos, eles se encontraram com Chand para discutir suas opções. Uma das formas de entrar no padrão da IAAF seria passando por uma terapia de supressão hormonal de longo prazo. Mas isso não era o suficiente.

Um famoso estudo publicado no The Journal of Clinical Endocrinology and Metabolism descreve quatro atletas, entre 18 e 21 anos de idade, originárias de “regiões montanhosas de países em desenvolvimento” que teriam sido diagnosticadas com hiperandrogenismo durante as Olimpíadas de 2012. As atletas eram altas, musculosas e apresentavam pouco desenvolvimento mamário, mas não exibiam nenhum sinal de “comportamento masculino”.

O estudo não expõe o nome das atletas, mas informa que elas passaram por uma série de exames em um hospital francês a fim de ter suas gônodas removidas — de forma que elas pudessem voltar a competir na categoria feminina. Em seguida, elas passaram por tratamentos cosméticos desnecessários e criticados, como a remoção parcial do clitóris e uma “vaginoplastia femininizante”, o que deixa claro que ter a aparência de uma mulher “normal” também faz parte do critério da IAAF. Resumindo, os hormônios não eram o único problema.

“Quando eu soube que meu problema tinha tratamento, pensei que teria que tomar um remédio, algo como um analgésico”, Chand disse para Mint. “Mas quando soube que teria que mudar meu corpo, recusei.”

Em vez de mudar seu corpo, Chand decidiu defender seu direito de competir. Ela é a primeira atleta a entrar com um recurso contra uma expulsão por hiperandrogenismo na Corte de Arbitração de Esportes (CAS), orgão semi-judicial que é considerado a maior autoridade do mundo dos esportes.

A decisão ao seu favor tem o potencial de mudar as vidas de várias atletas que são obrigadas a fazer o que muitas já fizeram antes: se sujeitar a cirurgias invasivas para poder competir.

No dia 18 de dezembro de 2014, o CAS aceitou seu pedido para competir em eventos nacionais. Chand estava louca para sair do pequeno quarto do hostel onde ela estava treinando para virar cobradora de trem; pela primeira vez na sua vida, suas unhas estavam longas. Quando ela retornou à pista de atletismo, em janeiro, seu sorriso voltou a brilhar. Em fevereiro, nos Jogos Nacionais de 2015, ela ganhou a medalha de 100 metros rasos. “Ela mostrou para todo mundo que a Dutee ainda é a Dutee”, disse Ramesh.

Ramesh diz que ela deu tudo de si na prova, crente que aquela poderia ser sua última competição: “É como se ela estivesse parada num semáforo. A luz amarela se acendeu quando ela conseguiu a permissão para competir nacionalmente. Agora ela está esperando o sinal abrir.”

Mas as pistas da Índia não são seu destino final. Em julho deste ano, o Tribunal Arbitral dos Esportes suspendeu por dois anos as regras da IAAF sobre o hiperandrogenismo. Ate 2017, Chand estará correndo entre as mulheres.

Tradução: Ananda Pieratti