O excesso de turismo costuma identificar-se com um excesso de ruído que pode ser comparado ao ruído branco de por uma rádio mal sintonizada.
Entre outras fontes, o som provém das rodas das malas no pavimento dos passeios, do barulho dos hóspedes nos apartamentos turísticos, do zunzum constante da massificação dos centros urbanos e da poluição sonora e ambiental dos meios de transporte turístico.
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Estudar o impacto da turistificação nos ambientes sonoros urbanos — utilizando a cidade de Lisboa como caso de estudo — é a finalidade de Sounds of Tourism. Neste projecto de investigação, que arrancou no final de 2018, participaram investigadoras e investigadores de diversos países e bagagens profissionais.
A irrupção da Covid-19 afectou de forma muito especial o nosso objecto de estudo — a cidade turística —, o que nos permitiu colocar novas questões perante um cenário futuro ainda incerto.
O terramoto turístico e as suas réplicas
Antes das restrições impostas para travar a propagação do coronavírus, Lisboa era um destino turístico em plena expansão. Sem ir mais longe, os World Travel Awards de 2019 escolheram a capital portuguesa como melhor destino de escapadelas urbanas do mundo pelo terceiro ano consecutivo.
Nesse mesmo ano, a cidade recebeu quase 5 milhões de turistas, o que representa um rácio de 9 visitantes por cada habitante, ultrapassando cidades como Londres ou Barcelona.
O recente sucesso de Lisboa como destino turístico é, em grande parte, resultado das medidas económicas aplicadas pelo Governo português para sair da crise financeira de 2010, que consistiram numa combinação de desenvolvimento imobiliário, aposta no turismo como motor económico e incentivos fiscais orientados para atrair capital estrangeiro.
A metamorfose de Lisboa como cidade turística traduziu-se em mudanças profundas no ambiente construído e nas dinâmicas socioeconómicas da cidade. Neste sentido, o colectivo Left Hand Rotation criou o termo «terramoturismo» para denunciar os efeitos negativos desta bolha turística.
A Covid-19 silencia o turismo
A metáfora do terramoto serviu para destacar as mudanças materiais causadas pelo boom turístico. Tal como uma onda sísmica, a ressonância do turismo fazia-se sentir com força em todos os cantos da Lisboa pré Covid-19.
É interessante estender esta metáfora à sua dimensão acústica para, deste modo, acolher também as mudanças que tiveram lugar nos ambientes sonoros da cidade após a eclosão da pandemia. Esta não travou apenas a espiral de crescimento turístico de Lisboa – a ausência de turismo também transformou, como não podia deixar de ser, a paisagem sonora da cidade.
Continuando com as metáforas sísmicas, poderíamos dizer que a réplica que se seguiu ao «terramoturismo» foi um tremor marcado por um silêncio inquietante.
Os sons de uma cidade turística… sem turistas
Para tentar responder à pergunta que dá título a este artigo, alguns membros da nossa equipa foram para as ruas, equipados de máscaras, para fazerem o trabalho de campo. Observaram vários lugares turísticos da cidade durante o confinamento.
Com base nestas observações, criámos uma série de postais sonoros que capturam a atmosfera espectral de uma cidade turística sem turistas. O resultado é Sound postcards from Lisbon, um testemunho do autêntico poder afectivo das paisagens sonoras do turismo. Em vez de sugerir tranquilidade, a placidez que transmitem evoca uma certa sensação de inquietação, de irrealidade e até de ameaça.
A pandemia revelou uma inusual imagem sonora da Lisboa turística. Com os aviões em terra, o ruído contínuo que produzem ao sobrevoar a cidade na sua aproximação ao aeroporto — uma verdadeira sinédoque sonora da pressão implacável do turismo de massa — desapareceu de repente.
Sem aviões no céu, os cantos dos pássaros e outros sons da natureza apoderaram-se da paisagem sonora da cidade. Durante o confinamento, esta adquiriu uma certa tonalidade de «alta fidelidade».
Ao nível do chão, o bulício dos restaurantes e das esplanadas das zonas turísticas foi substituído pelo ralenti dos ares condicionados e dos sistemas de extracção. O encerramento de lojas e cafés transformou a vibrante zona comercial do Chiado num lugar deserto.
A população local foi-se apropriando gradualmente de lugares que tinham sido tomados pelo turismo. Os cidadãos deram-lhes, desta forma, uma nova sonoridade: de crianças a jogar à bola no Largo do Carmo, pessoas a fazerem desporto nas imediações da Torre de Belém, ou de grupos de jovens a desfrutarem do Miradouro da Senhora do Monte ao entardecer.
Por outro lado, o silêncio apoderou-se das ruas e praças vazias dos bairros populares do centro da cidade. Esta quietude fala-nos tanto do cumprimento estrito das medidas de confinamento por parte da população local, como da falta de vida quotidiana. O despovoamento de bairros como o Castelo, Alfama ou a Mouraria foi proporcional ao aumento do número de apartamentos turísticos, e com eles a substituição de residentes permanentes por turistas.
Para além disso, algumas marcas sonoras que poderíamos associar ao universo dos trabalhos precários, sobre os quais se alicerçou o sucesso turístico de Lisboa, passaram a ocupar um lugar de destaque na paisagem da pandemia. É o caso dos sons da construção — actividade que não se deteve durante o confinamento — ou dos riders da Uber Eats e da Glovo e das suas motas barulhentas a atravessar uma cidade quase sem trânsito.
No entanto, outros trabalhadores precários (empregadas de limpeza, seguranças, etc.) que se mantiveram activos durante o confinamento, não usufruíram de uma presença semelhante: os seus ecos foram absorvidos pelas máscaras protectoras que estavam obrigados a usar e continuaram a ser tão invisíveis como já eram antes da pandemia.
Recordações sonoras para o mundo pós-COVID-19
Abordar a ressonância do turismo permite-nos perceber melhor os múltiplos impactos que a turistificação tem na paisagem de uma cidade como Lisboa. Não só em termos da sua ecologia acústica, mas também dos seus impactos financeiros, comerciais, sociais, políticos e urbanos.
Pelo contrário, a adaptação do ouvido ao novo ambiente sonoro de uma cidade turística sem turistas pode conduzir a um refinamento da escuta, a uma melhor recepção dos sons mais fracos ou directamente eliminados por fenómenos como o despovoamento ou a descaracterização dos bairros populares do centro da cidade. Definitivamente, a uma sintonização mais forte com o nosso ambiente sonoro mais imediato.
O projecto Sound postcards from Lisbon surgiu tendo como objectivo a memória. Estamos convencidos da importância de ouvir e prestar atenção à multiplicidade de seres que escutam e se fazem ouvir como parte dos processos de turistificação, incluindo os que são silenciados pelos mesmos.
O arquivo sonoro que estamos a construir sob o signo da pandemia poderá funcionar, eventualmente, no mundo pós Covid-19 como memória performativa. Permite-nos revelar as diversas camadas de sons que compõem a turistificação sonora de Lisboa, juntamente com os seus significados políticos, económicos e sociais.
Iñigo Sánchez-Fuarros é investigador no Instituto de Ciencias del Patrimonio (Incipit -CSIC) em Santiago de Compostela (Espanha); Daniel André Fernandes Paiva é investigador no Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa.
Este artigo foi publicado originalmente em Espanhol na The Conversation e traduzido para português por Rita Custódio e Àlex Tarradellas. Podes ler a versão original aqui.
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