A queda livre existencial de Kevin Morby

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma Noisey.

“Este é o meu sítio”, diz Kevin Morby [que regressa a Portugal dia 13 de Julho, para uma actuação no Festival Super Bock Super Rock], enquanto se ajeita na sua cadeira forrada a vinil, numa tarde solarenga de Primavera. Está rodeado de flores já bem desenvolvidas e aves-do-paraíso aterram aos seus pés e pousam-lhe nos ombros.

Videos by VICE

É um daqueles cenários de aparente solidão no meio do caos, em que, ao mesmo tempo, te lembras e te esqueces que estás em Los Angeles. Foi em parte por isto que, em 2013, Morby se mudou de Nova Iorque para o bairro inclinado de Mount Washington onde vive. Amor, desgosto e uma queda livre existencial seguir-se-iam. O seu recém-descoberto isolamento a inspirar maratonas de escrita de canções em modo solitário, que haveriam de resultar em dois álbuns: o aclamado Singing Saw, de 2016, e o seu contraponto, City Music, lançado em Junho último, pela Dead Oceans.


Vê também: “Devoção, entusiasmo e loucura. Um documentário sobre o que é ser fã de música


“Nunca tinha passado tanto tempo sozinho”, explica o músico de 29 anos. Depois de uma infância itinerante pelo Midwest e uma entrada na vida adulta dividida entre Nova Iorque e as constantes digressões com as antigas bandas The Babies e Woods, Morby viu-se subitamente confrontado com a capacidade de passar períodos de dias a fio sem ver outras pessoas.

“Foi talvez a primeira vez na minha vida em que consegui simplesmente sentar-me e ter o tempo e o espaço para trabalhar”, salienta. E acrescenta: “Estava a ter sensações que nunca tinha tido antes e sentia-me bastante recluso, muito na minha cabeça. De certa forma, senti que estava a levar-me a mim próprio à loucura. Mas, por outro lado, estava a curtir muito ter essa liberdade”.

No seu reduto na colina, Morby procurou companhia no livro de memórias de Patti Smith, M Train, e em doses massivas de Nina Simone. O artigo de fundo do New York Times, “The Lonely Death of George Bell“, um olhar desolador e fascinante sobre a alienação da existência nas grandes cidades, marcou-o profundamente. “Deixou-me atónito, porque foi tipo ‘Isto é exactamente o ponto a que estou a chegar’. É um bocado marado: como é que alguém pode ser tão recluso num sítio em que está rodeado por tanto movimento?”, recorda.

Morby apercebeu-se rapidamente que estava a escrever dois discos diferentes. O autobiográfico Singing Saw é mais directamente ligado a este tempo em LA. Um disco introspectivo e triunfante, carregado de deixas sobre o amor, a desilusão e identidade americana. Por vezes, tudo isto ao mesmo tempo. City Music, por sua vez, é tanto o seu inverso temático, como o seu contraponto. Uma espécie de regresso espiritual a Nova Iorque, que capta aquela antecipação e solidão de andar sozinho pela cidade grande.

“É uma mix tape, um sonho febril, uma carta de amor dedicada àquelas cidades de que não me consigo livrar, aquelas cidades que estão dentro de mim”, explica Morby. Inspirado pelas ecléticas cassetes que ele e os seus amigos gravavam uns aos outros no liceu, o músico trocou os músicos de estúdio e as orquestrações polidas de Singing Saw pelo som de estrada da sua banda de digressão e atirou-se de cabeça às raízes punk.

City Music é, por isso, diverso. Numa das faixas, por exemplo, ouve-se apenas a cantora folk Meg Baird a ler uma passagem de Flannery O’Connor sobre um rapaz que, nunca tendo visto uma cidade, confunde o brilho do horizonte urbano com um incêndio. Outros temas vão do tom ambiental de “Come to Me Now”, logo na abertura, ao disparo de menos de dois minutos de “1234” à moda de Ramones/Jim Carroll, ou à terna e melancólica abordagem ao originalmente selvagem “Caught in My Eye“, dos The Germs.

Mas, todas as canções, num momento ou outro, regressam àquela corrente subterrânea de solidão. Todavia, de forma refrescante, Morby aborda essa solidão como algo que nem é mau, nem bom, mas sim uma condição da própria existência, uma experiência. “I once loved a boy so smart and true / We would walk home every day from the school,” canta sobre o seu primeiro melhor amigo em “Aboard My Train.” “He’d say, ‘I think we could walk forever’ (Oh no) / ‘How ’bout just a little while?’ (Okay) / He would make me laugh like the devil (Haha) / He would pick me up like the child that I was”.

É um sentimento agridoce que soa imediatamente familiar – aquele primeiro encantamento pelo outro, os momentos partilhados que gostávamos que durassem para sempre e o reconhecimento das memórias em que, ao invés, se tornam. Morby e o tal rapaz perderam o contacto depois de ele se mudar com a sua família; não vê o amigo desde os 10 anos. Pouco depois de terminar esta canção, descobriu que ele está preso, a cumpriri pena de prisão perpétua, na sequência de um acidente em que conduzia embriagado.

“Ele foi a minha primeira ideia de amar alguém e de me sentir próximo de outra pessoa, de partilhar experiências”, conta Morby. E salienta: “Quando soube da situação, foi muito estranho, porque, na verdade, não conheço esta pessoa, percebes? Mas era o meu melhor amigo. Era como se fosse meu irmão, entendes o que digo? não sei o que pensar disto. E pensar que só descobri porque escrevi uma canção sobre ele…”.

Por debaixo dos arranjos heterogéneos e da gravilha, City Music não é sobre um sítio, é sobre tempo – uma ode ao paradoxo da solidão e da antecipação que crescem e crescem. As ligações que fazemos, as ligações que perdemos e aquilo em que nos transformamos no processo.

Kevin Morby levanta-se da cadeira do jardim e dirige-se ao interior da casa. Dentro de poucas horas partirá para Kansas City, onde recentemente comprou uma casa. Por estes dias passa muito mais tempo por lá. Só está em LA há quatro anos, mas já sente que a cidade lhe dificulta cada vez mais a vida, tal como Nova Iorque – demasiada gente, demasiadas coisas para fazer. Meio a brincar, reflecte sobre se a normalização da vida urbana significa que os subúrbios se vão tornar agora mais alucinados e confessa que é provável que a dada altura tenha que fugir de LA, silenciosamente, para manter a paz de espírito.

Algumas semanas depois deste encontro, Morby tocaria ao vivo numa sala localizada no Arts District, na baixa de Los Angeles. Tocar ao vivo é o seu elemento e, sem pudores, a banda atira-se a uma versão de “Rock & Roll“, dos Velvet Underground. Frenética e intensa, indubitavelmente a versão de Morby, que se acerca do microfone com aquele inconfundível olhar ainda de jovem punk. No entanto, nem sequer a versão original de Lou Reed, baseada na emoção de ouvir Elvis na rádio em miúdo, é mesmo sua. Esta é a derradeira música citadina, uma ode ao desconhecido, aquela coisa sempre fora do alcance, a chamar por nós, apesar de tudo. No meio da multidão que assiste ao concerto, todos nos sentimos mais próximos uns dos outros.

Segue Andrea Domanick no Twitter.