A Queima de Coimbra e outras considerações



Tive o prazer de passar o ano de 2013 a beber estudar em Coimbra e devo dizer que é verdade o que dizem sobre aquela cena da cidade ter mais encanto na hora da despedida. No meu caso foi assim porque tive de voltar para Lisboa. Enquanto estive na cidade dos estudantes diverti-me bastante e tive a minha boa dose de aventuras, mas como alfacinha assumido que sou sempre me pareceu que faltava qualquer coisa em Coimbra, nomeadamente, tudo. Malta do “espírito académico”, se já vos chegou a revolta, fiquem para ler o resto.



VIDA DE DOUTOR


Acordei um bocado tonto porque na noite anterior tinha ido beber café às nove da noite e, aparentemente, em Coimbra tal acto era um código para chegar a casa às quatro da manhã. Vivia num pequeno quarto recentemente remodelado para albergar estudantes, numa espécie de residencial. Na noite anterior tinha-me esquecido de fechar as portadas das janelas, daí ter acordado às nove da manhã com luz e frio, o que não era muito comum dado que era estudante e já tinha um certo hábito em acordar pelo meio-dia. Peguei na pasta e na escova de dentes. Enfiei-as no bolso, abri a porta e dirigi-me descalço pelo corredor ritmado de portas de outros quartos. O piso em réguas de madeira conservado pela remodelação era agradável mas quando dei por mim estava a andar sobre espuma do extintor que alguém tinha descarregado na noite anterior com a bebedeira. No terraço espreguicei-me. De lá conseguia ver tanto a estátua do D. João III como o “Queimódromo”, cujo nome sempre me fez imaginar um sítio onde o pessoal ia fumar ganzas. Uma senhora no edifício da frente estendia roupa e dois estudantes asiáticos discutiam na rua. Estava um bom dia.



SERENATAS E CENAS

Na noite da Serenata decidi ir à baixa beber um café e passei em frente à Sé Velha onde já estavam uns quantos alunos de Medicina a acampar na calçada com garrafas de vinho barato misturado com a secção de bebidas espirituosas do supermercado. Grupos de turistas passavam e tiravam fotos como se de um safari se tratasse. Depois do café e de alguns finos apercebi-me que já era meia-noite. Serpenteei pelas ruas acima a desviar as pessoas com as mãos, braços e pés. Com alguma dificuldade meti-me com um pessoal mesmo lá à frente ao pé da malta de Medicina que tinha encontrado de tarde. Cheirava a vómito. Tinha começado a serenata monumental — mas com o barulho não parecia. Uma doutora meteu-se com um amigo meu e desapareceram os dois, entretanto cantavam a música final, que era do 5.º ano Jurídico ou do 6.º Médico — que são os únicos cursos na Universidade — e as doutoras em pé nas escadas choravam porque estavam a sentir a cena e era tradição. Apareceu o meu amigo outra vez, aparentemente a doutora tinha-lhe vomitado para cima.



CARRINHOS ALEGÓRICOS

Durante a semana académica de Coimbra não há aulas, portanto é uma boa altura para pôr os estudos em dia — coisa que nunca acontece. Estava agora no cortejo, que é uma outra tradição que assim por alto exige que cada curso gaste à volta de quatro mil euros num carro alegórico para depois deitar fora — foram à volta de 80 carros — talvez estes 320 mil euros por ano fossem melhor gastos a pagar as dívidas da Associação Académica de Coimbra ou para abater na dívida do país. Não sei, é a tradição. 



Pelas ruas já estavam uns tantos doutores e doutoras pelo chão. Estava um com a cabeça rachada porque lhe deram com a bengala na cartola com mais força do que aquela que era suposto. A cerveja escorria pelas ruas e levava o sangue. Chegado à baixa de Coimbra vi que os carros alegóricos seguiam para algures e os doutores e doutoras esperneiam-se e atiram-se ao Mondego. No rio repousam carrinhos de supermercado que, mais uma vez, muito tradicionalmente são roubados e atirados à água todos os anos, na esperança de criar uma espécie de recife artificial — ser verde está na moda.



O “QUEIMÓDROMO”

Atravessei a ponte para a outra margem do rio onde me posicionei perto da entrada à espera que um amigo viesse cá fora dar-me um bilhete — para quê pagar quando tudo o que é preciso é ter amigos na AAC — a Sicília das academias. Estava a chover mas não fazia mal porque Hardwell (metia mais os braços no ar do que nos pratos) compensava com uma azeitalhada electrónica de níveis monumentais. De realçar, pela positiva, a Estudantina Universitária de Coimbra, que tocou no final alguma coisa que cheirava a tradição. Felizmente (ou infelizmente) o pessoal já tinha cagado porque preferiu as tendas eletrónicas onde podia curtir o Michel Teló.




DURA PRAXIS SED PRAXIS, IRREVERÊNCIA E OUTRAS CONSIDERAÇÕES

O que um caloiro gasta em vestimentas e festas académicas durante um ano é capaz de dar para pagar metade da propina anual. Mas valeu a pena. Os papás gostam de mostrar as fotos a terceiros e exclamar: “olhó meu filho, já é doutor!” Pior que ser da praxe só mesmo ser anti-praxe. A malta anti-praxe tanto nos está a contar as terríveis maldades da praxe como a seguir nos está a tentar convencer que os animais deviam ter direito ao voto. A esquerda universitária tem uma espécie de concurso informal onde ganha quem conseguir ser mais de esquerda e seguir as últimas modas do politicamente correcto — quase como o país, mas com menos nível.

A determinada altura do ano começa a surgir a palavra “irreverência” por Coimbra. As listas que concorrem à Associação Académica de Coimbra, para onde os jotinhas vão brincar à política, estão em campanha. Todo o acontecimento dá uma espécie de micro-premonição do futuro político de Portugal. Normalmente querem todos trazer a irreverência atribuída em tempos passados à comunidade estudantil de Coimbra, os doutores e as doutoras querem ser irreverentes, ter uma aura de rebeldia light adquirida após muitas noites a beber traçadinho e a ouvir música pimba. Talvez faça falta começarem a fazer algumas peregrinações para verem os azulejos  que estão escondidos nos jardins da AAC junto ao “lago” para re-descobrirem a irreverência e tradição.



De consolo só me serve a certeza de que o “espirito académico” (seja lá o que isso for) em Coimbra é o melhor em Portugal. Nas outras cidades mais parece que copiaram uma tradição só porque não tinham mais nada para fazer. Como dizia José Cid: Acho que Coimbra tem um ambiente estudantil giríssimo. Um bocado pimbalhão, culturalmente muito pobrezinho. Digamos que 20 por cento dos estudantes tem uma atitude cultural muito interessante, o resto é pimbalhada, que só pensa em álcool e em Quim Barreiros. Mas depois há uma parte interessante.” 

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Como extra ficam aqui duas perguntas para saberes se deves ou não estar na extensão do secundário:

Gostas de ler?

Leste algum livro por iniciativa própria no último semestre relacionado com o teu curso?


Se respondeste não a estas duas perguntas talvez devas responder à seguinte:

O que é que estás a fazer na Universidade?


Fotografia por 
Ricardo J. Martins