Uma carta da Secretaria da 1ª Vara Criminal da Comarca de Uberaba, Minas Gerais, foi enviada ao Portal Rap Nacional no dia 11 de agosto deste ano, proibindo menção e veiculação de conteúdos do grupo de rap CTS Kamika-Z por um período de 90 dias. O motivo, segundo apuramos à época, era uma investigação em andamento com o objetivo de confirmar a ligação do grupo com facções criminosas no estado. Vai vendo…
Formada em 2002, a banda CTS Kamika-Z tem um histórico de rusgas com a polícia local, já que sempre se colocou como representante do gangsta rap na região, apresentando-se com máscaras e letras críticas à conduta dos policiais da cidade. Segundo o Noisey apurou junto a fontes próximas ao grupo (o Kamika-Z não está dando declarações oficiais à imprensa no momento), os caras já teriam sido intimidados diversas vezes por policiais nos últimos seis anos, desde o lançamento do clipe “Poesia de Ladrão”.
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Dessa vez, porém, a questão ficou mais acirrada com o lançamento do segundo álbum, Tá Lost, e a repercussão da música “Se Essa Rua Fosse Minha”. “O videoclipe foi um dos posts mais acessados no Portal Rap Nacional”, me disse o Willian “Mandrake” Domingues, diretor do site que lançou o clipe. “A divulgação do CTS Kamika-Z sempre chegou longe. A mensagem da banda repercutiu negativamente porque atingiu o criticado e ele, não aceitando, recorreu à justiça”, supõe. O refrão da letra diz: “Se essa rua, se essa rua fosse minha, não tinha pra G-Par. Se essa rua fosse minha, não tinha pra militar. Se essa rua fosse minha, eu comandava, eu comandava o ra-tá-tá”, enquanto uma das cenas mostra os integrantes diante de uma mesa repleta de drogas, armas, celulares e maços de dinheiro, com as mãos para trás, emulando um enquadro. Se liga:
O texto do Ofício nº 701.15.027.557-9/SRCN frisa num dos trechos que “não se trata de censura prévia, como bem assevera a autoridade policial e o Ministério Público, os atos a princípio e em tese, configuram delitos de tipos diferentes, em concurso, inclusive”. E argumenta: “Na difícil luta contra o crime organizado a ordem pública necessita de socorro imediato, sobretudo levando-se em conta a sensação de impunidade que, de um lado, aflige a sociedade, ofendendo a ordem, como de outro, estimula a ação de possíveis delinquentes”. Leia a íntegra da carta:
A polêmica cresceu quando, pouco tempo depois de expedida a determinação judicial, um vídeo foi publicado no YouTube, no dia 18 de agosto, com o registro de policiais assediando o rapper Ananias por conta de suas letras, e o coagindo a retificar as críticas e acusações à PM feitas nelas. De acordo com o próprio Ananias, sua suspeita era de que a determinação judicial da 1ª Vara Criminal de Uberaba teria partido do Comando Geral da Polícia Militar de Minas Gerais, com sede em Belo Horizonte, e o vídeo, sido feito pelos PMs com o fim de ser enviado ao comando. O vazamento do vídeo, exibindo o artista numa situação de completa vulnerabilidade, põe em xeque a natureza lícita de todo o contexto desse caso. “Ninguém aqui se esconde atrás da farda, não. Você é que se esconde atrás dessa musiquinha lixo”, diz um dos policiais enquanto grava as imagens. Assista:
Na avaliação de Cláudio José Langroiva Pereira, doutor e mestre em Direito Penal pela PUC/SP, a situação é “temerária”. Para ele, não só os PMs que gravaram o vídeo “extrapolam os limites da competência”, como “existe aí um razoável questionamento sobre os limites de jurisdição, se esses limites estão sendo cumpridos. Apesar de achar que existem questões de cautela, eu tenho dúvidas se o juiz poderia, a princípio, nos limites cautelares, estabelecer esse tipo de determinação [a determinação de retirada do conteúdo do ar]. Até porque, numa ação de investigação, você não tem processo do crime ainda.” E acrescenta: “Nós teríamos medidas específicas para isso em ação própria. Trata-se de investigação, não de ação penal. Não é denúncia, são medidas preliminares de uma investigação. Qual é o objetivo desta cautela? O que isso tem a ver com a divulgação nos meios de comunicação?”.
Por e-mail, encaminhamos algumas perguntas para os doutores Flávio Alves e Renan Delilian, do escritório Advocacia Alves & Delilian, responsáveis pela defesa do CTS Kamika-Z, em busca de detalhes sobre o desenrolar do processo. Acompanhe:
Noisey: Na conversa que tive com o Ananias logo que o caso apareceu na mídia, ele suspeitava que a investigação em andamento, que obrigou a retirada do conteúdo da banda do ar, teria partido do Comando da Polícia Militar de Minas em Belo Horizonte. Vocês conseguiram averiguar esse fato para saber de onde exatamente partiu tudo isso?
Advocacia Alves & Delilian: Quanto à origem de toda essa situação, o gatilho foi a grande repercussão do clipe “Se Essa Rua Fosse Minha”. Tal produção foi um marco na carreira do grupo. Ocorre que, no clipe desta música, o grupo usa a simbologia do “palhaço”, tanto em imagens bem como na letra. O “palhaço” também é reconhecido em algumas localidades como “assassino de policiais”; contudo, tal simbologia foi utilizada no duplo sentido. O músico Ananias, utilizando do seu talento nato para produzir rimas, usou a simbologia do “palhaço” em analogia ao tema do disco, “O circo pegando fogo”, em que o “circo” seria a sociedade brasileira, e, os palhaços, a população brasileira e o próprio grupo, com foco na falta de “gerência” que anda o país (somos palhaços por aceitar tal situação). A ambiguidade do significado do palhaço foi utilizada para chamar a atenção da sociedade. Deu certo, inclusive em proporções que o grupo jamais poderia ter previsto. O sucesso do clipe foi tanto que chamou a atenção, também, da Policia Militar em Belo Horizonte (MG). Com o grande alcance do vídeo, o CTS sem querer cruzou com alguns com temas delicados para as autoridades mineiras. O momento do “estouro” da música foi na mesma época em que a criminalidade aumentou muito em Minas Gerais; e, também, de maneira significativa na cidade de Uberaba. E a situação tornou-se delicada quando as autoridades em Belo Horizonte tomaram conhecimento de que o clipe fora gravado a próximo à Delegacia Regional de Policia Civil de Uberaba, fato que foi visto como afronta aos policiais, quando, na verdade não foi.
Passado o embargo de 90 dias, as questões do julgamento da banda por suposta ligação com facções criminosas no estado foram provadas inconsistentes? Já está liberada a veiculação do conteúdo musical do CTS Kamika-Z nas redes?
Quanto à liberação do conteúdo musical, a liberação foi obtida antes dos 90 dias. Quando o grupo procurou nosso escritório, tratamos como prioridade a elaboração de um pedido liminar junto ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O principal fundamento do pedido foi a liberdade de expressão garantida pela Constituição Federal. O Tribunal acatou o pedido, exceto para duas músicas: “Se Essa Rua Fosse Minha” e “Milionário em Risco”. A manutenção destas músicas se deu pelo fato de que a Policia Civil e o Ministério Publico insistiram na tese de que tais letras e vídeos fazem apologia ao crime organizado. Porém, o recurso cabível ainda está em analise, até porque o conteúdo ali veiculado é comum para a sociedade. Primeiramente no dia a dia (infelizmente) e também no cinema e televisão, basta lembrar de filmes como Cidade Baixa, Alemão, Tropa de Elite e etc; que também abordam a rotina do crime organizado, porém, não como apologia, mas sim como trabalho artístico.
Os integrantes do grupo sofreram ameaças ou assédios ao longo ou antes desse processo todo?
Sim, sofreram ameaças e assédios. Embora trate-se de um tema delicado, seria indiferente manter silêncio, até porque foram veiculados nas redes sociais vídeos e fotos registrando momentos lamentáveis da atuação policial. Contudo, oportunamente, é importante registrar que tratou-se de fato isolado que não se generalizou devido a “diálogo” com os envolvidos. Posteriormente, o grupo optou por focar as medidas judiciais tão somente na liberação do material e trabalho do grupo na mídia para, depois, analisar “se” e quais medidas tomariam quanto ao assédio suportado.
Em que pontos-chave vocês estão construindo a defesa?
Liberdade de expressão, pois o trabalho é totalmente artístico, não contém qualquer ligação com a criminalidade. São pessoas de bem, e talvez as autoridades não tenham notado, mas estamos lidando com músicos.
O vídeo gravado que vazou na net, dos PMs coagindo o Ananias a se retificar, tem chances de desembocar numa indenização ao artista pelo fato de os policiais terem extrapolado claramente os limites da competência?
Sim, a situação ali vivida configurou claramente um abuso de autoridade e é passível de reparação através de uma ação de danos morais.
Vocês mencionaram que o conteúdo de “Se Essa Rua Fosse Minha” ainda está sendo julgado. Qual é a argumentação contrária e o que pode acontecer? O vídeo tem chances de ser censurado?
A defesa acredita que não há possibilidade de censura ao vídeo, até porque, como dito anteriormente, existem trabalhos com o mesmo teor ainda em veiculação na mídia brasileira, tais como filmes e novelas. Seria estranho proibir determinado grupo musical de produzir material sobre a realidade vivida por determinadas classes sociais existente no Brasil; e, ao mesmo tempo, permitir uma novela de uma grande emissora de TV fazer a mesma retratação.
Até quando vocês preveem que essa história vai se arrastar?
É difícil prever, pois existem atos que não dependem da defesa do grupo. É preciso ver quando o inquérito será concluído, bem como a possível ação para julgamento da censura ou não. Lembrando que as autoridades promoveram apenas o Inquérito Policial. Tal procedimento ainda não se converteu em ação judicial. O judiciário foi provocado pela defesa (no pedido liminar ao TJMG) para “aparar” os excessos cometidos pelas autoridades mineiras. Após a conclusão do inquérito pela policia civil é que saberemos se haverá ou não ação sobre o tema.
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O Noisey encaminhou o vídeo do assédio sofrido por Ananias para a Polícia Militar de Minas Gerais e entrou em contato por telefone e e-mail com a assessoria de imprensa do órgão pedindo um posicionamento da polícia a respeito da gravação, bem como detalhes sobre a mencionada investigação em andamento que motivou a determinação judicial. Porém, até o fechamento da pauta, ainda que tenhamos informado sobre sua veiculação na data desta sexta (11), não obtivemos retorno com um pronunciamento oficial das autoridades.
***ATUALIZAÇÃO***
Após a publicação desta matéria, que foi ao ar às 16h, recebemos a seguinte declaração da assessoria da Polícia Militar, às 16h49:
“Em resposta a PMMG informa que:
1. Em relação à ação penal junto ao Poder Judiciário, esta foi demandada a partir de Inquérito Policial de iniciativa da Polícia Civil de MG, e é este órgão que deve ser consultado. Em relação à decisão judicial, esta não deve ser questionada, apenas cumprida.
2. O Comando da 5 RPM, na região de Uberaba, não conhecia o teor do vídeo apresentado em anexo e até o presente momento não foi procurado por qualquer pessoa ou órgão a respeito do mesmo. Oficialmente, a PMMG desconhece o teor e a autoria do mencionado vídeo.
Centro de Jornalismo Policial”