De Stephen Hawkings a Renato Russo, um punhado de artistas, autores autoajuda, cientistas fodões, fãs de sci-fi, filósofos, jornalistas, políticos, religiosos e afins dedicaram horas e mais horas para pensar essa dimensão que nos é tão cara: o tempo.
O tempo passa, é um presente, é tudo, é relativo, é dinheiro. Bom, não desta vez.
“Tempo não é dinheiro, é vida”, sintetiza Thais Maschio, 27, idealizadora do Banco de Tempo Florianópolis (BTF) ao lado de Geovana Madeira Narcizo.
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A iniciativa, idealizada em setembro de 2015 num encontro do coletivo catarinense Zeitgeist, parte de movimento internacional de sustentabilidade, promove a troca de talentos, serviços e produtos por “horas”, que funcionam como uma moeda: uma hora de ioga pode render uma hora de aula de inglês, que pode ser trocada por uma sessão de fotos ou shiatsu; uma fornada de cookies veganos vale uma aula de tribal fusion, que vira um Uber para pet, que quer uma consultoria de dragon dreaming, aula de castanholas, acupuntura auricular e por aí vai.
Nos últimos anos se popularizaram diversos projetos de economia criativa e consumo colaborativo no Brasil: troca de talentos, permuta, feira de brinquedos, escambo e clube de trocas solidárias, que se articulam em negociações feitas em sites/apps (Bliive, LivraLivro, Descolaí, Trocaki, TimeRepublik, por exemplo) e páginas no Facebook. A diferença do BTF foi firmar regras (rígidas, até) e estabelecer uma unidade de troca: 60 minutos.
Lucro, juros e dívidas não existem no vocabulário do BTF. Ninguém gasta ou ganha nenhum real. Segundo as regras do “banco”, abrigado no Facebook e estruturado por planilhas de contabilidade no Google Drive, é proibido capitalizar as transações: block & ban para quem fizer cobranças mistas (dividindo dinheiro e tempo), vendas casadas (uma consulta paga em hora, outras em reais) e revenda dos produtos artesanais. Também é preciso morar na ilha de Santa Catarina para poder participar do toma-lá-dá-cá 2.0.
A inspiração para o modelo bancário alternativo veio da Europa: em Portugal há 28 “agências” do Banco de Tempo, concentradas no litoral e a norte do Rio Tejo, somando 1.900 integrantes no país — entre eles, 74% são mulheres. Presente também na Espanha e na Itália, o projeto português foi encampado pelo movimento internacional de mulheres Graal, com apoio do Programa Grundtvig, da União Europeia.
Na capital catarinense, onde vivem cerca de 485 mil habitantes, o BTF movimenta mais de 3 mil membros cadastrados e ativos (fora os 19 mil participantes da página) –a maioria também é feminina, na faixa de 20 a 40 anos. É bastante gente, principalmente diante de cidades maiores como Porto Alegre (onde há 187 participantes), São Paulo (348) e Brasília (780).
Thais, que faz malabares entre ser mãe de dois pequenos, gerente de uma fábrica de alimentos gluten-free e administradora do BTF, ajuda interessados a implantar um Banco de Tempo nas suas cidades.
“Mas não somos uma empresa. Não queremos lançar um BT nacional. Tudo está disponível, não há nenhum copyright. Só queremos espalhar esse movimento de consciência”, ressalva Thais. “Apesar de levar a expressão ‘banco’, o que propomos é uma quebra de paradigma do capitalismo, uma busca por um sistema mais justo. Assim, o tempo não é só uma moeda alternativa, é uma filosofia. Isso quer dizer que o tempo de uma faxineira vale o mesmo que o tempo de um médico, por exemplo. Empoderamento é a palavra”, define.
“A gente acorda cedo, passa tempo no trânsito, trabalha e fica esperando o fim de semana pra beber e esquecer que na segunda vai começar tudo de novo. Na economia solidária, o grande lance é repensar o valor do tempo.”
Embora fluida, a filosofia do BTF abarca duas expressões teóricas: os opostos “paradigma da escassez” e “lógica da abundância”. A escassez pressupõe que não tem tudo para todos, logo precisamos competir para garantir uma fatia — se possível, uma fatia gorda. Por outro lado, a abundância parte do princípio que tem, sim, pra todo mundo, mas é preciso cooperar para garantir que ninguém fique sem seu pedaço de bolo.
Nesta linha, Thais, Geovana e equipe dedicam algumas horas de seus dias para gerir digitalmente o BTF, com especial “investimento” em ações coletivas: eventos (como piqueniques e saraus), encontros periódicos (ioga e pilates, por exemplo) e projetos sociais (aulas de idiomas nas associações de moradores do Campeche, mutirões de limpeza nas praias e na Ilha das Vinhas). Compõem a equipe de administradores a socióloga Viviane Bassi Marques, o psicólogo Clayton Dos Reis Marques, a bióloga Adriana Klin, e Francielle Luiz e Luciana Cury, que trabalham com tecnologia.
“No sul da ilha, as pessoas têm uma visão vibrante do paradigma da abundância, uma valorização do olho no olho, das relações humanizadas. O foco nos projetos é o que eu tenho mais carinho. Tive depressão e só consegui fazer terapia, do início ao fim, por tempo. Quero lançar um projeto para quem não pode pagar. Há muita gente disponível para reiki, ayurveda, arte-terapias. O valor é sentimental”, diz.
Eixo SC-SP de economia alternativa
A química Marcela Baena, 26, estava prestes a mudar para Florianópolis, para “ter tempo, acordar cedo, aprender a surfar, fazer ioga e tudo mais”. Não deu certo.
De volta a São Paulo, Marcela se envolveu na formação do Instituto Feira Livre, um espaço de produtos orgânicos a preço justo que deve abrir nos próximos dias, pertinho da Praça Roosevelt. “Estamos pensando como melhorar nosso entorno. E entender como funciona nosso sistema político e econômico é importante para pesar escolhas e olhar para outras vias, como a economia solidária”, diz Marcela. “O que a gente faz? A gente acorda cedo, passa tempo no trânsito, trabalha demais, e fica esperando chegar o fim de semana pra beber e esquecer que na segunda-feira vai começar tudo de novo. Na economia solidária, o grande lance é repensar o valor do tempo.”
Em São Paulo, outro projeto faz sucesso: o Escambo de Talentos, da jornalista e produtora de conteúdo Livia Deodato, 34. Fundado em janeiro de 2017, o grupo reúne 18 mil membros —73% são mulheres; 17,5 mil moram no Brasil, mas há uns punhados pingados nos Estados Unidos e na Europa.
“Escambo” quer dizer troca de mercadorias ou serviços sem dinheiro na jogada. “É um modo antigo de se fazer ‘negócio’, mas, no nosso caso, priorizamos hobbies e habilidades. Num momento de crise econômica, tanta gente desempregada, será que não é interessante trocar talentos com os outros? É fazer o que eu gosto para alguém que precisa”, diz Livia, lembrando os primeiros tempos do Escambo.
“As trocas resgatam a solidariedade, a confiança no outro e a autoconfiança. Rendem intercâmbio de conhecimento e muitas trocas afetivas. Ao fim e ao cabo, isso é o que importa”, afirma.
Diferentemente do BTF, o projeto de SP não tem uma unidade de medida. Livia diz que procurou não fechar a questão, pois “depende muito do olhar e da expectativa de cada; não tem medida, é muito subjetivo.”
Do escambo de talentos ao banco de horas, cartel ou disputa não tem vez nesses círculos cambiantes. Os grupos adotam métodos diferentes, experimentais, cada um no seu nicho de “mercado”.
Num contexto de crise, eles arriscam alternativas sem necessariamente se auto-atribuir tags de “inovação”, “incubadora” ou “startup” que quer estampar revista de negócios.
Nem tudo são flores nesses troca-trocas. Para os novatos, não-iniciados no esquema, os administradores do BTF precisam frisar informações básicas, dar indicações e às vezes um puxão de orelha — por falta de familiaridade com a prática, expectativas podem ficar frustradas no início.
Há um tópico com normas numeradas, um tipo de estatuto pra todo mundo brincar direitinho seguindo as regras do jogo novo. É um paradoxo interessante: de um lado, regras estruturadas e planilhas para contabilizar créditos (horas); de outro, uma filosofia leve (não amarrada a um discurso duro e/ou militante), oferta de milhares de atividades tilelê, ajuda cotidiana e muita #gratidão.
Thais atribui o crescimento surpreendente do BTF a um sentimento de insatisfação das pessoas com o sistema atual e uma busca por bem-estar, valorizando o próprio potencial e usufruindo das possibilidades que o outro oferece. “É um processo orgânico. Nos primeiros meses, fomos elaborando as regras diante das demandas, das dúvidas que encontramos. A cada vez que nós, administradores, nos reunimos, fazemos um balanço. É uma história que a gente está escrevendo.”