Aos sábados, Vânia Maria da Silva não precisava se levantar tão cedo como de costume para preparar o café da manhã. Denílson, o caçula da família, de 13 anos, se encarregava de lhe servir o banquete na cama. O ritual de mãe e filho terminou no último dia 9 de março. Denílson sofreu abusos sexuais de seu treinador de futebol e, ao tentar resistir, acabou brutalmente assassinado. O menino foi morto na periferia de São Lourenço da Mata, a menos de oito quilômetros da Arena Pernambuco, erguida para a Copa do Mundo. “Um filho num caixão. Esse é o legado que a Copa me deixou.”
No mesmo ano em que o Brasil sediou o Mundial foi firmado um pacto para prevenir atrocidades como a que abalou a família de Vânia. Em 27 de maio de 2014, às 12h40, o então presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), José Maria Marin, assinou um documento em que a entidade se comprometia com o Congresso Nacional a adotar 10 medidas para combater o abuso sexual e o tráfico infanto-juvenil em clubes e escolinhas. Entretanto, após mais de dois anos de sua assinatura, meninos continuam sendo abusados nas categorias de base e o pacto ainda está no papel. A confederação não cumpriu as principais medidas recomendadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, instalada pela Câmara dos Deputados em 2012 com o objetivo de criar políticas públicas de enfrentamento à exploração sexual no país.
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Às vésperas da Copa das Confederações, em 2013, a CPI abriu investigação especial para apurar denúncias de assédio e estupro de jovens jogadores publicadas pela revista Placar. Até então, a CBF argumentava que casos de abuso sexual no futebol não eram de sua alçada. Mas os deputados decidiram corresponsabilizar a entidade, que, no entendimento da comissão, deveria garantir direitos básicos de crianças e adolescentes que praticam a modalidade. A Copa era o pretexto para enquadrar clubes e cartolas nas diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê, além de outras normas de proteção a atletas menores de 18 anos, a inscrição de centros de formação que abrigam esses garotos em conselhos tutelares – órgãos municipais que monitoram o cumprimento dos direitos infanto-juvenis.
Entre os compromissos assumidos por José Maria Marin, que constam no relatório final de 674 páginas da CPI, divulgado em junho de 2014, estavam a implementação de uma ouvidoria na CBF para receber denúncias de abuso sexual, o auxílio na fiscalização de clubes e escolinhas e o financiamento de campanhas para alertar sobre a atuação de molestadores no futebol. Horas depois de a entidade anunciar a volta de Dunga ao comando da seleção brasileira, em 22 de julho de 2014, Marin editou uma portaria ordenando a criação de um grupo de trabalho na CBF para viabilizar as ações do pacto. A força-tarefa limitou-se a enviar um ofício às federações estaduais requisitando dados de crianças vinculadas a clubes e escolinhas, mas não chegou a consolidar um parecer com as respostas obtidas. O advogado Sandro Maurício de Abreu Trindade, que foi designado presidente do grupo por Marin, afirma que o próprio ex-mandatário dissolveu a equipe antes que qualquer medida fosse colocada em prática. “A presidência entendeu que poderia alcançar os resultados pretendidos de outra forma”, diz Trindade.
No entanto, regulamentos, documentos e procedimentos internos apontam que a confederação ignorou boa parte das providências prometidas. Quem pretende fazer uma denúncia de abuso sexual não encontra nenhum canal específico no site da CBF. A entidade conta com duas ouvidorias. Uma exclusiva a assuntos de arbitragem e outra dedicada às competições oficiais, que atende somente por e-mail e não retornou às mensagens da VICE Sports. Por telefone, a reportagem contatou ainda a secretaria da confederação, que, em duas oportunidades, alegou não receber esse tipo de ocorrência e repassou a ligação à ouvidoria do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), que, por sua vez, também afirmou não ter competência para averiguar casos de abuso sexual em categorias de base.
Somente duas propostas da CPI, referentes às cláusulas 1 e 3 do pacto, foram parcialmente cumpridas, segundo informações da CBF. Em 2014 e 2015, a entidade autorizou a difusão de uma campanha contra o trabalho infantil bancada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em algumas partidas do Campeonato Brasileiro. Mascotes e jogadores entraram em campo exibindo camisas e faixas fornecidas pelo MPT com mensagens educativas. Todavia, a ação não alertava para a especificidade do trabalho infantil em categorias de base, como estipulado pela CPI, e nem fazia menção à exploração sexual. A única campanha sobre o tema replicada no site da confederação foi ao ar cinco dias antes da assinatura do pacto, em 22 de maio de 2014. Tanto a iniciativa promovida pela ONG Promundo quanto a ação do MPT não contaram com recurso financeiro da CBF, dona de uma receita anual em torno de 500 milhões de reais e um fundo de legado superior a 300 milhões de reais destinado pela Fifa após a Copa.
Por meio do projeto “CBF Social”, lançado em junho de 2015, a confederação atendeu parte da terceira recomendação do pacto ao realizar quatro encontros com professores de escolinhas este ano (Rio de Janeiro, Brasília, Goiânia e Manaus) sobre futebol na infância e adolescência, em que discutiu temas como exploração infanto-juvenil e tráfico de pessoas. Os palestrantes, contudo, afirmaram à reportagem que não foram instruídos pela entidade a falar sobre ações preventivas ao abuso sexual. Assim como diretores e técnicos das seleções de base brasileiras, eles desconhecem o termo firmado com a CPI. “Em nenhum momento a CBF se referiu aos pontos desse pacto”, diz Monica Alkmim, coordenadora da ONG Projeto Legal, que palestrou no encontro de iniciação de futebol em julho, no Rio de Janeiro.
Em fevereiro deste ano, a CBF instaurou o Comitê de Reformas, responsável por elaborar propostas de modernização do futebol brasileiro, incluindo as categorias de base. Os 18 integrantes do comitê aprovaram em junho uma metodologia de ensino do futebol para crianças em clubes e escolas. A reportagem teve acesso às atas das seis reuniões realizadas pelo grupo. Em nenhuma delas abordou-se o tema do abuso e exploração sexual. O curso de treinadores da CBF também não trata do assunto em suas disciplinas. Oito profissionais ouvidos pela VICE Sports e formados nas últimas duas turmas das licenças B e C, voltadas para técnicos de categorias de base e escolinhas, disseram que as aulas não tiveram conteúdo relacionado à prevenção do abuso sexual de crianças atletas. “O curso focou mais na parte técnica e tática do futebol do que na social”, afirma o treinador Jorge Efrahim Berto, que tirou a licença C em 2014.
Desde 2012, a confederação emprega o Certificado de Clube Formador. É um selo concedido a clubes que preenchem requisitos mínimos para a manutenção de categorias de base, como atendimento médico e odontológico aos jogadores. O certificado confere amparo jurídico aos clubes para fechar contrato com atletas a partir de 14 anos e garantir um percentual de seus direitos econômicos em negociações futuras. Nenhuma das exigências, porém, obriga as equipes a ter cadastro em conselhos tutelares ou a orientar seus profissionais sobre o abuso sexual. O regulamento de competições da CBF não impede que equipes sem o selo ou sem cadastro em conselho tutelar disputem campeonatos oficiais na base e negociem revelações. A CPI, inclusive, formulou o projeto de lei 8038/2014 para forçar escolas de formação a se registrarem nos conselhos, mas a proposta ainda está sendo apreciada pelo Congresso.
Dos 776 clubes profissionais filiados à confederação, só 36 possuem o certificado. Desses, apenas 11 têm registro no conselho tutelar de suas respectivas cidades. Entre os 96 clubes das quatro divisões do Campeonato Brasileiro que mantêm categorias de base, um terço deles é registrado nos conselhos por determinação do Ministério Público ou de forma voluntária. O caso do Rio de Janeiro é emblemático. Embora seja o único entre os quatro grandes cariocas com cadastro válido no conselho tutelar, o Vasco da Gama é também o único deles que não tem o Certificado de Clube Formador. Dirigentes de todos os 32 clubes cadastrados revelam nunca ter recebido orientação da CBF para se registrar em conselhos, promover campanhas de prevenção ao abuso sexual e reuniões com pais de atletas para esclarecer as condições às quais os filhos são submetidos no futebol ou agregar escolinhas por meio de parcerias e licenciamento da marca.
“Desrespeito ao Congresso e às vítimas”
A CPI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes tentou por duas vezes convocar José Maria Marin para audiências na Câmara dos Deputados, porém o então mandatário da confederação não compareceu. Em uma das ocasiões, enviou o antigo diretor de registro e transferência, Luiz Gustavo Vieira de Castro, como representante. A ex-deputada federal Liliam Sá, candidata a vereadora do Rio de Janeiro pelo Democratas, era a relatora da CPI. Foi ela quem se reuniu com José Maria Marin e Marco Polo Del Nero, que assumiu a presidência da CBF no ano passado, para a assinatura do pacto na sede da entidade. No encontro, a relatora elogiou a gestão de Marin: “O senhor está deixando um grande legado na sua administração”. Em 27 de maio de 2015, exatamente um ano depois da reunião, o ex-presidente da CBF foi preso pelo FBI na Suíça e responde a processo nos Estados Unidos por suposto recebimento de propina em sua passagem pela confederação.
A convite de Marin, Liliam Sá havia sido chefe da delegação de futebol feminino da CBF na Olimpíada de Londres, em 2012. Questionada sobre um possível conflito de interesses, Liliam Sá diz não ver problema em ter sido incumbida de costurar o pacto com uma entidade para a qual havia trabalhado dois anos antes. “Eu conheci o [José Maria] Marin na Olimpíada. Depois do encontro na CBF, não tive mais contato com ele. Sua prisão foi uma surpresa para mim. Achava que ele era uma pessoa idônea. Mas prefiro não fazer juízo de valor.”
O pacto proposto pela CPI não previa mecanismos de fiscalização governamental ou parlamentar à CBF que assegurassem o cumprimento dos termos, tampouco estipulava prazos e montantes orçamentários para efetivar as ações de combate ao abuso sexual. “Talvez tenha sido uma falha nossa”, afirma Liliam Sá. “Mas não poderíamos obrigar, porque a CBF é empresa privada. Confiamos na boa vontade dos dirigentes.” Presidente da CPI, a deputada federal Érika Kokay, do PT no Distrito Federal, explica que, como a comissão foi encerrada em junho de 2014, seus membros não puderam inspecionar a aplicação das medidas. Ela pretende convocar uma audiência pública ainda este ano para solicitar a prestação de contas da confederação sobre os compromissos assumidos. “O fato de a CBF descumprir o pacto significa um desrespeito ao Congresso Nacional e, consequentemente, às vítimas de abuso sexual no futebol. A CBF é parte do problema, mas se nega a contribuir com o enfrentamento desse crime tão cruel”, diz Kokay.
A VICE Sports questionou a CBF sobre o descumprimento do pacto. O departamento jurídico da entidade destacou por e-mail a campanha da ONG Promundo contra exploração sexual que ajudou a divulgar em seu site antes do acordo parlamentar e ações estreladas por jogadores da seleção, mas que não foram promovidas pela CBF. Apesar de não mencionar nenhuma medida efetiva, a diretoria “reafirma seu total comprometimento com as questões [da CPI]”. Perguntas também foram repassadas ao assessor jurídico da confederação Maurício Rodrigues Amparo, ex-membro do grupo de trabalho formado por Marin, mas não tiveram retorno. “Nunca ouvi falar”, respondeu o secretário-geral e presidente do Comitê de Reformas, Walter Feldman, ao ser indagado a respeito do pacto. Marin está em prisão domiciliar em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Advogados informam que ele não dá entrevistas, assim como Marco Polo Del Nero, atual presidente da CBF e igualmente investigado por suspeita de corrupção pelo FBI.
Abusadores impunes
Denílson Antônio Teixeira da Silva era goleiro. Sonhava defender o Sport Club do Recife, do ídolo Magrão. Com a esperança de vingar no futebol, ele passou a integrar um time treinado por José Luciano do Nascimento no bairro da Muribara. Em 9 de março, o técnico marcou um encontro com Denílson, em que prometia entregar-lhe um par de chuteiras e um jogo de uniforme. Preocupada com a demora do filho, a doceira Vânia ligou para o seu celular. Denílson atendeu aos berros: “Socorro, mainha!”. E a ligação caiu.
O corpo do garoto foi encontrado pela polícia à beira de um riacho, na zona rural de São Lourenço da Mata. Havia sinais de socos, pontapés e golpes na cabeça, mas ele morreu por afogamento. Depois de ser espancado, Denílson foi atirado na água por José Luciano e Edílson Batista Barbosa, o Déda, que teria ajudado o treinador a cometer os abusos. Ambos foram presos e indiciados pelo assassinato. Outras quatro crianças estão desaparecidas na região da Muribara, três delas meninos com menos de 12 anos. A polícia investiga se José Luciano e Déda também estariam envolvidos nesses desaparecimentos.
Histórias semelhantes à de Denílson proliferam pelo país. A VICE Sports fez um levantamento de casos de abuso sexual de crianças e adolescentes relacionados ao futebol (veja o mapa abaixo). Nos últimos cinco anos, foram 82 registros, sendo que 41 deles aconteceram depois do pacto entre CBF e Congresso – 11 na primeira metade de 2016. A maioria das vítimas tem entre oito e 15 anos e sofreu abusos de treinadores, preparadores físicos, dirigentes, empresários, olheiros e até árbitros. Como o apanhado da reportagem considera somente ocorrências que resultaram em inquérito policial ou processos judiciais, o número de abusos sexuais em clubes e escolinhas no Brasil pode ser bem maior.
Em muitos casos, como o do falso olheiro Ronildo Borges de Souza, o Batata, que levava garotos do Pará para São Paulo, onde os molestava em um casebre, o abuso sexual vem a reboque do tráfico de pessoas, que também foi tema de uma CPI no Congresso. Batata já tinha passagens pela polícia por crimes do gênero, tal qual José Luciano, que havia sido condenado a 12 anos de prisão por estupro de vulnerável no Mato Grosso, em 2007, mas cumpriu só quatro anos da pena.
Apesar disso, segundo dona Vânia, o treinador era voluntário no Colégio Municipal Ministro Apolônio Sales, onde o filho estudava. Foi lá, inclusive, que ele teria convidado Denílson para sua equipe. “Um homem condenado, que já tinha abusado de criança, trabalhava com meninos aqui em São Lourenço como se nada tivesse acontecido. E ninguém nunca investigou o passado dele”, diz Vânia. A prefeitura da cidade informou que José Luciano não tinha vínculo com a Secretaria de Educação e nunca deu aulas na escola. Ele chegou a procurar Denílson na portaria, mas foi barrado.
“Tenho certeza que a morte do meu filho poderia ter sido evitada. Achava que o futebol era uma diversão para as crianças, mas, na verdade, é uma ameaça.” Vânia Maria da Silva, mãe de Denílson
Dos 82 casos identificados pela VICE Sports, 29 envolvem abusadores reincidentes. No ano passado, em Juiz de Fora, zona da mata mineira, o técnico Valtencir dos Reis confessou ter abusado de três crianças. Ele treinava meninos de sete a 12 anos em sua escolinha. “Eu brincava com elas [vítimas], uma brincadeira de sexo. Tenho esse problema. É uma fraqueza da mente”, disse Valtencir em depoimento à polícia. Ele admitiu que usava o futebol para praticar abusos sexuais há mais de duas décadas.
O treinador já tinha ficha criminal pelo mesmo delito, mas jamais passou por avaliação psiquiátrica que pudesse diagnosticar um possível transtorno de pedofilia. A CPI da Exploração Sexual elaborou o projeto de lei 8035/2014, que obriga a apresentação de certidão negativa de antecedentes criminais para os profissionais que trabalham com crianças. A proposta tramita na Câmara dos Deputados e não tem prazo para ser votada em plenário.
Em Caratinga, também em Minas Gerais, Cláudio Rogério Alves, o “Maguila”, comandava um time mantido pela prefeitura e recrutava adolescentes para testes em clubes do Rio de Janeiro. Ele os hospedava na casa do cantor Agnaldo Timóteo e, segundo a polícia, liderava uma quadrilha de exploração sexual na região. Foi condenado em 2012 a mais de dez anos, mas saiu da prisão em um ano e meio após conseguir um recurso que abrandou a pena. Por medo de retaliações, as vítimas se recusaram a depor, o que contribuiu para o arquivamento do processo. À Justiça, Maguila afirmou ser inocente das acusações, embora a interceptação de mensagens e escutas telefônicas feitas pela polícia ao longo da investigação comprovem o aliciamento. Ele continua trabalhando com crianças no campo dos Rodoviários e levando jogadores para testes em clubes como Atlético-MG, Botafogo e Vasco.
A impunidade respinga em equipes que abrigam abusadores. O regulamento de registro e transferência da CBF permite que clubes garimpem jogadores em outros estados e os inscrevam nas federações sem exigir que esses garotos sejam acompanhados por conselhos tutelares, contrariando uma das cláusulas do acordo para prevenir o tráfico interno de atletas. Nos últimos dois anos, as categorias de base de Portuguesa Santista, Velo Clube, Atlético Araçatuba, Barcelona Capela, Esportivo de Passos, Contagem e Central de Caruaru, clubes filiados à CBF, foram alvo de ações judiciais por maus-tratos e abuso sexual de crianças e adolescentes. Mesmo depois da conclusão da CPI, nenhum deles foi punido nem sequer investigado pela confederação, conforme previsto no pacto. O secretário-geral Walter Feldman, que assumiu o cargo em abril de 2015, confirma que a entidade não fez as apurações e diz que exploração e abusos sexuais deverão ser tratados em reuniões futuras do Comitê de Reformas sobre categorias de base.
A cultura do estupro no futebol
No quarto acanhado onde Denílson dormia, dona Vânia esfrega as mãos sobre o rosto diante das medalhas do filho penduradas na parede. É a esse canto da casa que ela recorre todas as noites quando sente saudade. Aquele vazio no cômodo martela o coração da família. O avô de Vânia morreu no dia seguinte ao enterro de Denílson. “Foi de tanto desgosto”, conta a mãe. “Ele era muito apegado ao meu menino.”
São Lourenço da Mata, que fica na região metropolitana de Recife, foi a cidade-sede mais pobre da Copa, com 0,65 ponto de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), um indicador da ONU em escala de 0 a 1 – a média brasileira é de 0,76. O município ainda é o sétimo mais violento de Pernambuco: 38 homicídios por 100 mil habitantes/ano. A arena construída para o Mundial, com custo total de quase 650 milhões de reais e sem as obras de urbanização prometidas, se tornou uma isca para aliciadores em bairros vizinhos e carentes como o da Muribara. Moradores relatam que golpistas como José Luciano estão migrando de outros estados para abordar crianças e adolescentes seduzidos por promessas de um futuro próspero no futebol. Eles se passam por olheiros e oferecem, além de chuteiras, dinheiro e testes em grandes clubes, ingressos para jogos no estádio com o intuito de ganhar a confiança dos garotos. A conduta é uma praxe em vários casos de norte a sul do país, sobretudo em regiões pobres.
Por se tratarem de vítimas do sexo masculino, o tabu ao redor da homossexualidade contribui para abafar denúncias, acobertando a ação dos abusadores. E assim se perpetua a cultura do estupro no futebol. “Nossa sociedade é machista e patriarcal. Existe uma estigmatização de garotos que sofrem abuso sexual”, afirma Flávio Debique, gerente técnico de proteção infantil e incidência política da ONG Plan International Brasil, que atua na prevenção de violência contra crianças. “É como se o abuso retirasse a masculinidade do menino. Com receio de o filho ser visto como homossexual, a família não denuncia.” De acordo com o relatório anual do Disque 100, das 17.583 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes recebidas pelo serviço em 2015, menos de 30% referiam-se a vítimas do sexo masculino. Para Debique, o pacto que a CBF deixou de honrar ajudaria a evitar que jovens boleiros se calassem diante dos abusos. “Campanhas alertando sobre os cuidados necessários com crianças no futebol e uma ouvidoria especializada nesse tipo de violência sexual contra os atletas seriam fundamentais para inibir abusadores, conscientizar as pessoas dos riscos em categorias de base e fazer com que as vítimas saibam a quem recorrer.”
Não bastasse a invisibilidade, ainda perdura no meio do futebol a visão preconceituosa de que o abuso sexual tem a ver com homossexualidade, e não com uma prática criminosa. Até mesmo durante audiências da CPI do Tráfico de Pessoas, alguns parlamentares associavam a orientação sexual a molestadores. Em uma das sessões de 2014, por exemplo, o deputado Severino Ninho chegou a questionar um olheiro, que havia sido denunciado por dopar e estuprar adolescentes em Aracaju, se ele era homossexual.
Passados mais de dois anos da Copa do Mundo sediada no país, meninos que sonham se tornar uma estrela como Neymar seguem à mercê de abusos em clubes e escolinhas. Na reunião da CPI, que poderia ter representado um divisor de águas para o combate à violência sexual no futebol, José Maria Marin divagou sobre valores familiares antes de assinar o pacto: “O grande valor que eu considero para o ser humano é aquilo que nós damos à nossa família. Considero o maior patrimônio do ser humano o valor que ele dá à sua família.” Mas o discurso do cartola preso hoje se contrapõe às omissões da entidade que ele comandava diante de famílias despedaçadas por abusos em torno da bola.
Enquanto isso, Dona Vânia faz preces para que atitudes sejam tomadas antes que outros sonhos sucumbam a abusadores, antes que outras mães chorem por um “novo Denílson”. “Diziam que São Lourenço da Mata era a cidade da Copa, mas, para mim, é a cidade que não cuida das nossas crianças. Ninguém sabe o que é a dor de uma mãe que perde um filho. Espero que família nenhuma passe por essa tristeza.”
*Esta reportagem foi produzida como parte do programa de desenvolvimento profissional para jornalistas da Fundação Thomson Reuters, “Jornalismo investigativo no âmbito do esporte”, em parceria com a VICE Sports.