Lutando contra o fascismo na academia feminista e antifa de artes marciais

Usufruindo da oportunidade de aproveitar um pôr-do-sol de verão antes de uma noite de sessão de boxe, as fundadoras da Solstar , Ella Gilbert e Paula Lamont trocam socos e esquivas à luz do dia em um parque ena zona norte de Londres. Mesmo sendo uma luta amigável, os golpes me dão arrepios. Vejo de canto de olho quatro caras rindo a uns metros de distância, mas as lutadoras estão focadas apenas uma na outra. Gilbert dispara um soco de direita que rapidamente acerta o nariz de Lamont, que surpresa, devolve com uma pancada no rabo de cavalo de Ella e elas riem juntas.

Como uma academia de boxe e artes marciais gerenciada por mulheres e com príncipios antifascistas, a Solstar é a primeira do tipo no Reino Unido. Quando abriu, em fevereiro de 2016, Gilbert e Lamont estavam determinadas a construir um espaço onde mulheres pudessem aprender habilidades práticas de luta sem a presença do machismo. Lamont já competiu em MMA, treinou boxe e jiu-jitsu, e foi a primeira mulher a conquistar uma faixa preta de taekwondo em sua academia. Gilbert, que iniciou seus treinamentos de boxe em 2012 na universidade, agora luta em nome da Islington Boxing Club e foi vencedora em sua categoria no prestigiado London Development Championships no ano passado.

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Gilbert é blasé ao recordar de sua primeira experiência em um clube de boxe amador: “Eu fui a primeira mulher em 100 anos e eles não tiveram mais nenhuma desde então. Mas eu fui teimosa, eu persisti e me recusei a ir embora, e eventualmente eles tiveram que me notar.” Ela continua, “É a cultura no geral. Mesmo na minha atual academia competitiva, que tem o maior grupo de mulheres do país, ainda há seis ou sete homens pra cada mulher.”

Solstar, embora seja um clube relativamente pequeno, ainda possui uma média de gênero meio a meio. As aulas acontecem em um centro comunitário local, com duas aulas por semana – boxe nas terças-feiras e Muay Thai nas quintas. Gilbert toma as rédeas nas aulas de terça enquanto a vencedora oficial do Wolrd Muay Thai Council, Anna Zucchelli, lidera as quintas. Às vezes compareciam 30 alunas, mas hoje o número médio é mais gerenciável, ficando entre 10 e 15.

Lamont se lembra da recepção nada amigável de um instrutor, que apenas reforçou seu desejo por uma academia mais inclusiva para mulheres. “Eu telefonei para o instrutor de uma academia assim que entrei para o MMA”, ela conta. “Ele foi muito indiferente comigo. Disse a ele que tinha experiência, que já tinha praticado antes e ele apenas não estava nem um pouco entusiasmado. Pra mim, se uma mulher pisa numa academia de luta, independente do nível dela, eles deveriam recebê-la com o dobro do entusiasmo.”



A academia Solstar se distingue das outras academias por seus princípios interseccionais feministas e antifascistas. “Nós nos descreveríamos como uma ‘red gym’, ou academia de esquerda,” explica Lamont. “É um espaço para as pessoas treinarem, sindicalistas, ativistas ou pessoas que se considerem politicamente progressistas.”

É sobre solidariedade, acrescenta Gilbert: “Existe um espírito de equipe quando você entra em uma sala e sabe que compartilha dos mesmos princípios que as pessoas com quem você treina.”

Embora existam outras academias com viés de esquerda no Reino Unido, as duas notaram que esses espaços nem sempre eram inclusivos. Nenhum deles liderado por mulheres. “Como você vai promover essas coisas para as pessoas, se você não as representa?” questiona Gilbert.

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Paula Lamont.

Lamont concorda acenando com a cabeça: “Eu acho que todos os movimentos progressistas deveriam ser liderados por mulheres. Deveria ao menos ser igualitário. Eu não sei como você pode se chamar de progressista se as mulheres não estão a frente de nada do que se diz de esquerda.”

Solstar está conectada a academias esquerdistas tanto no Reino Unido quanto mundialmente – as duas fundadoras, inclusive, voltaram recentemente de uma conferência de boxe antifascista em Ghent, na Bélgica. Academias de boxe e artes marciais são tradicionalmente antifascistas, explica Lamont, “porque se trata de treinar pessoas para ficarem atentas nas ruas. É sobre equipar as pessoas com a habilidade de defenderem a si mesmas.”

Auto-defesa é algo que a Solstar está integrando em suas aulas, especificamente para o benefício das participantes mulheres. “Estamos ensinando as pessoas a sobreviverem, explica Gilbert.

Lamont diz que a melhor coisa que aprendeu praticando artes marciais não foi necessariamente como bater em alguém, mas sim como “levar porrada e não cair aos pedaços.”

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Gilbert e Lamont treinam no parque.

“Já ouvi tantos relatos de mulheres que foram sexualmente ou fisicamente assediadas que disseram ‘eu fiquei tão petrificada que congelei,’” ela diz. “Se pudermos acabar com isso e ensinar as pessoas a não caírem nesse estado mental, então acho que conseguimos alguma coisa.”

Elas não sentem medo de que a extrema direita se infiltre no espaço que elas lutaram tanto pra construir? “Eles sabem sobre a gente,” diz Gilbert. “Eles dizem que a esquerda está ficando organizada!”

As duas fundadoras têm um longo histórico de ativismo. Lamont esteve envolvida em movimentos de protesto desde os anos 90 e atualmente é sindicalista. Como sabotadora de caçadores, ela interrompe caças a raposas no Reino Unido. O trabalho diário de Gilbert é em ciência climática – ela estuda o derretimento das geleiras antárticas como parte de seu PhD. Em 2016, ela escapou por pouco da prisão por protestar contra a adição de uma terceira pista para expansão do Aeroporto Heathrow.

Lamont e Gilbert também fogem da ideia de que Solstar seja uma forma de protesto. “É uma forma de resistência, o oposto de uma forma de protesto,” Lamont diz firmemente. “Pra mim, protesto é uma reação à algo em particular, enquanto resistência é sobre criar uma força e construir algo na comunidade em que as pessoas possam confiar. É sobre unir mais as pessoas, é sobre tornar a esquerda mais forte, tanto física como mentalmente.

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Ella Gilbert.

O clube também conta com aliados inusitados da comunidade Turca e Curda. Solstar atualmente pratica suas atividades em um centro comunitário dirigido por Gik-Der, a Associação Cultural de Trabalhadores e Refugiados (RWCA) , uma organização fundada em 1991 “por imigrantes fugindo da perseguição política e racial em seus próprios países, Turquia e Curdistão.” Assim como Lamont e Gilbert, Gik-Der apoia a atual revolução democrática curda em Rojava.

Lamont é grata pelo suporte da comunidade local: “Essa é a parte realmente importante disso – nós trabalhamos em um centro de refúgio de imigrantes. Eles disseram venham e usem o espaço gratuitamente, ficaremos lisonjeados por utilizarem. Então nós tínhamos esse espaço que era de esquerda, antifascista, progressista e feminista, logo quisemos fazer algo que refletisse sua política assim como a nossa própria. “Membros da Solstar ajudam nos festivais da comunidade e com aulas de inglês e matemática para as crianças locais, e o clube ainda oferece aulas de artes marciais pra as mulheres locais. “Nós vamos levantar fundos para providenciar uma creche com uma babá, já que as mulheres turcas e curdas disseram não poder frequentar as aulas,” diz Lamont. “[O projeto] é realmente sobre enfrentar os obstáculos que estão impedindo as mulheres de treinar e remover esses obstáculos.”

Acessibilidade é tudo – as aulas custam apenas £5 por [uns R$ 25 na cotação atual] essa razão, e os alunos podem negociar caso não possam arcar com o custo. “Fizemos uma decisão no início,” diz Lamont. “Nós queremos ser um clube de artes marciais underground onde ninguém saiba quem somos e não postemos nossas fotos e nomes na internet? E então vimos que isso não condizia com todo o propósito – nós vamos ser totalmente abertas.”

“Eu acho que é importante para nós sermos vistas, pois estamos à frente de um movimento progressista,” afirma Gilbert. “Nós somos a primeira academia esquerdista liderada por mulheres e isso é importante deixar claro. Porque além de todo o resto, isso mostra que é possível – mulheres podem liderar academias de artes marciais.”

Artigo originalmente publicado na VICE US.

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