Alexandre de Maio é um parça que sempre foi da correria. Começou no jornalismo fazendo sua própria revista de rap, a Rap Brasil, em 1999, época em que a cobertura do hip hop ainda era escassa, e desde então tudo com o que ele se envolve traz algum aspecto inaugural. Ao lado do escritor Ferréz, ajudou a abrir caminhos no meio editorial para as HQs de temática urbana, com os álbuns Os Inimigos Não Mandam Flores (2006) e Desterro (2013), além de ter ilustrado Génération Favela, de Marie Naudascher e Héléne Seingier, lançado na França em 2016. Nesse meio tempo, inovou na linguagem jornalística, produzindo, em coautoria com a jornalista Andrea Dip, a reportagem em quadrinhos Meninas em Jogo (2014), que trata do turismo sexual em Fortaleza. A obra foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez.
Raul, sua nova criação, trata-se do primeiro trampo solo no campo do jornalismo em quadrinhos. A palavra “Raul”, para quem não sabe, é o nome que se dá no trato das ruas aos caras que aplicam golpes e fraudes bancárias. O Alê conheceu o “Rafa”, protagonista da história, ainda na época da Rap Brasil. Rafa é um nome fictício, sua verdadeira identidade não é revelada. O cara começa dando golpes, mas, apaixonado por música, acaba virando rapper e se torna um grande nome no circuito. Na época, tirando alguns bate-cabeças, o rap falava mais de política e temas da comunidade, quando Rafa chegou novidadeiro com sons que tematizavam festas, diversão, romances e reflexões pessoais. Não só isso, investia pesado na produção, no marketing e na infraestrutura de sua carreira. Rafa esteve prestes a viver do próprio sonho. Os caminhos da vida, no entanto, foram Raul com ele, que tomou um golpe do destino e acabou pondo tudo a perder.
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Por meio de traços soturnos e diálogos precisos, De Maio desenrola uma narrativa equilibrada entre os dramas vividos pelo personagem e informações que entrariam na pauta de qualquer repórter de cidades, tipo o lance de descobrir e revelar ao leitor como funcionam as trapaças de Raul. Esse tipo de informação é algo inédito que De Maio trouxe nos meandros da história, ao contar, cronologicamente, como se davam lá no começo e como foram evoluindo as diversas táticas de golpes do cartão. Assim, o livro assume todos os elementos de um thriller policial, beneficiado pela correção do apuro jornalístico.
O autor colou pessoalmente na VICE pra gente trocar uma ideia.
VICE: Este é o seu primeiro livro em que tanto a arte como o texto e a apuração são seus. Qual é a treta de produzir na total independência criativa?
Alexandre de Maio: O mais foda é você não ter alguém que… Tipo, tinha alguns amigos, como o Ferréz, pra quem eu queria mostrar e tal, mas é não ter ninguém pra estar junto no projeto. Isso é bom e ruim, porque por um lado você faz do seu jeito, com as suas ideias, no seu ritmo. Quando tem mais de uma pessoa, ainda mais num livro, que é tipo um filho, você precisa coordenar muita coisa junto ali, de tempo e tal. Nos dias de hoje, mesmo com os melhores parceiros, é uma dificuldade ter tempo de ficar junto fazendo um projeto. Poder fazer no seu timing agiliza muito. É a melhor parte. Você faz do jeito que planejou e não precisa negociar com ninguém algumas coisas. Já a parte ruim é o lance de não ter troca, a não ser em algumas etapas, mas você está sozinho naquela aventura ali. E como eu não tinha nem editor, estava literalmente sozinho.
Por que você escolheu fazer uma reportagem no primeiro trabalho solo?
Tem algumas coisas que eu achava que precisava fazer. E essa é mais uma etapa do que eu pensei pra divulgar os quadrinhos no Brasil. Eu sabia que precisava fazer um livro, e faria de qualquer jeito. Achei importante ter primeiro publicado em outros veículos para agora lançar um livro. E eu já tinha na minha ideia que tipo de livro seria e tal. Quando eu passeava pelas feiras de quadrinhos, tinha só um livro de jornalismo em quadrinhos, que era o do Robson Vilalba, então achei que era o momento mesmo.
Pode-se dizer que você é um dos pioneiros desse formato aqui no Brasil?
Acho que quando comecei, lá em 2010, não tinha ninguém fazendo. Nenhum jornalista trabalhava com isso, esse pessoal acabou aparecendo um pouquinho depois, principalmente o Robson, que tem esse livro sobre a ditadura. Mas pra mim era muito trincheira. Porque tinha as duas coisas que eu gostava muito, o jornalismo e os quadrinhos. E eu já tinha a experiência do rap, que é a do fazer acontecer. Igual quando as pessoas não sabiam o que era hip hop, e aí a gente fazia revista explicando os quatro elementos. Então tem todo um processo de aprendizado de quando você quer que a coisa se expanda e surge muito pra se fazer.
Os veículos de imprensa ainda não são totalmente confortáveis com a ideia de publicar reportagens em quadrinhos. Você pode estar começando a abrir portas para isso, né?
O Gilberto [Dimenstein], que trampa comigo [no Catraca Livre], falou uma coisa legal: “Não dá pra ser inovador e popular ao mesmo tempo”. Acho que é isso, se você quer fazer um trabalho de jornalismo em quadrinhos, saiba que é algo novo. Então eu não faço esperando que seja fácil. Tudo o que já publiquei foi ali, batendo na porta de tudo quanto era veículo, editora… Muitas vezes foi de tentar e não conseguir, a cada 50 portas que você bate, três se abrem.
Quais veículos já publicaram suas HQs jornalísticas?
A Fórum foi um veículo legal, que abriu as portas, e eu achava que era por ali. Acho que os veículos alternativos são os que abrem o espaço pra surgir alguma coisa desse tipo. Depois da Fórum, fiz a Pública, pra só depois os grandes veículos se ligarem. É ali que o pessoal aceita ideias novas mais facilmente, aceita arriscar alguma coisa.
Quais são as suas influências narrativas?
É uma mistura de influências, mas eu gosto muito do Katsuhiro Otomo, de Akira. É a minha principal referência, como mestre da narrativa visual, de como se contar uma história. O quadrinho japonês sempre me chamou a atenção, mas o Katsuhiro em particular, porque é muito gueto, história urbana, muito real, próximo. Me influenciou não no estilo de desenho, mas no jeito de imprimir algumas imagens, abordar uma história, ter menos diálogo. Gosto muito dessa coisa do quadrinho japonês de ter pouco diálogo, apesar de ser difícil de desenvolver.
E as referências visuais, de onde vêm?
José Muñoz. Pra mim uma das grandes referências visuais é o Frank Miller, mas tem um cara antes dele, que é o José Muñoz. O estilo dele é incrível. Esse lance do preto e branco é uma coisa que eu ficava de olho. Só que é uma técnica muito difícil, esse lance de não ter traço. Fui por aí procurando um estilo meu. E tem uma coisa que sempre me chamou atenção, o jornalismo literário. Acho que o jornalismo em quadrinhos está muito ali, vivendo hoje o que o Gay Talese viveu lá atrás.
Como você conheceu o protagonista do livro Raul?
Eu editava uma revista de rap [Rap Brasil], e toda terça-feira tinha a festa da revista numa balada parceira. Conheci ele um dia nessa festa. Um pessoal do rap que era amigo colou lá e ele colou junto, cantou com eles e tal. Nessa época ele já estava gravando um segundo disco e inserido no rap, abrindo shows pra artistas maiores, já tinha o grupo dele com outras pessoas e ajudava a lançar uma outra menina, tinha empresário. Era uma época muito efervescente do rap, tinha muita gente acontecendo ao mesmo tempo. Criolo é dessa época, um pouquinho antes do Emicida. Era 2004-05, essa fase aí. Cabal estava fazendo sucesso. Estavam aparecendo os primeiros raps de festa, música rap de balada era uma inovação. Era o auge do CD, os artistas vendiam 100 mil cópias.
E logo nas primeiras ideias o cara foi pegando confiança em você pra revelar a história?
Foi aos poucos. Como eu tinha a revista de rap, acabei fazendo uma matéria com ele. Nos trombamos em diversos tipos de situação, porque ele era de um núcleo próximo aos meus amigos do rap. O cara tinha muita gana de fazer algo novo, era superinteligente, trocava um monte de ideia. Ele queria pôr a coisa pra andar, fazer música, as melhores produções, tinha aquela energia. Ele era de uma banca com uns 20 caras.
Desde o começo você já estava ligado que ele era Raul?
Nessa época o pessoal já comentava. Na periferia e nas festas de rap, principalmente, a gente sempre sabia se um cara era Raul, porque era um cara que gastava 400 contos na balada. Os Rauls são caras gente boa porque isso faz até parte da vida deles, então são caras super articulados. Mas eu só fui achar que era uma boa história muito mais pra frente, quando ele foi preso. Ele estava numa boa ascendente, já seria o terceiro disco solo, com uma puta produção, muito parecida com o que os rappers estão fazendo hoje, era muito pra frente, e tinha um produtor bom, videoclipe, empresário pra abrir shows, música na rádio. Ele foi preso uma semana antes de lançar o disco.
Como foi a retomada de contato com o cara, sendo que ele estava preso?
Depois de um ano que ele foi preso, a gente começou a se falar pelo MSN. Comecei a trocar ideia com ele mesmo estando dentro da cadeia. E quando o cara está preso, tem mais tempo pra trocar ideia. Conversávamos sobre rap e tal. Aí ele saiu e falou por chat que estava na rua respondendo em liberdade. Passou uns meses, ele estava em Amsterdã, depois em Cancun, França, Itália. Essa reviravolta da vida dele, eu comecei a olhar e falei: “Nossa, é uma puta história.” Então ele foi preso de novo, as reviravoltas continuaram acontecendo, e ele tinha essa coisa dos altos e baixos. O cara se preparou a vida inteira, lançou quase 200 músicas.
Aproveitando que você comentou da sua época como editor da revista Rap Brasil, conta um pouco dessa fase. O que havia de mais legal nessa experiência?
O legal da época da revista era poder ver grupos pequenos conseguirem se colocar no mercado, viver daquilo e mudar de vida. Você pegava um SNJ, de Guarulhos, gravava uma música, fazia o corre nas rádios comunitárias pra distribuir CD, dali quatro meses a música estava estourada; um ano depois, vinha o primeiro disco, mais três anos, já tinha vendido 100 mil discos, e melhorado a vida deles, da família. Vi isso acontecer muitas vezes e foi muito legal.
E tem mil histórias cabreiras, de coisas que vi. Sei lá, teve vez que o MV Bill foi capa da revista e fui levar ele no hotel, no dia das mães. Eu tinha um Corsa. A polícia parou a gente, eu saí do carro, e o MV Bill, no banco de trás, foi se apoiar no banco pra levantar e os caras já estavam engatilhando a arma pra atirar nele. Aí tinha um outro mano com a gente que começou a chamar os policiais de racista, o pessoal ficou meio cabreiro. O policial chamou a corregedoria, parou a São João, rolou o maior debate no meio da avenida. Do nada foi indo todo mundo embora, largaram a gente lá.
Já teve vez da gente parar o ônibus na estrada, indo pra Porto Alegre, todo mundo descer pra ir comer alguma coisa, a mina olhar as pessoas vindo e correr pra trancar a porta. Literalmente, quando tinha pouca grana e estava na rua fazendo matéria, quase todo dia a gente era enquadrado. Por fazer revista de rap comecei a vivenciar isso. Era algo que me mostrava o país onde estamos. Não é discurso, é realidade.
Lembra de mais histórias boas de bastidores das pautas?
A gente fez a capa do Facção Central. Facção é talvez o grupo mais contundente do rap nacional, tem as letras mais fortes sobre violência policial. Eles fizeram um clipe que foi censurado de passar na MTV, e a gente produziu uma capa com eles algemados, que era “Pode me prender, pode me matar, a guerra não vai acabar”. Isso, bem no começo da revista. Passou uns dois anos, o Facção saiu de um grupo iniciante pra quase do naipe dos Racionais, com um público gigante, era o disco que mais vendia. Fomos então fazer uma nova capa do lançamento. Tivemos a ideia de uma foto deles dentro de uma viatura, algemados. Descolamos um rastafári que era DJ e policial e colava nas festas nossas. Era um cara meio amigo de todo mundo ali. Ele acabou conseguindo a viatura pra gente. Tínhamos que colar na delegacia às seis horas da manhã porque os caras chegavam às oito. Era entrar rápido, tirar a foto e sair fora. E aí rolou.
Teve também a matéria do Brown. Esperei pra fazer a matéria com o Brown na edição de cinco anos. Fomos lá pro Capão, fizemos a matéria, passou cinco dias, ele foi preso. Aí ele me ligou e tivemos que fazer toda a entrevista de novo. Uma entrevista de quatro horas, só pra pegar o fato e as ideias dele.
Muito louco…
E teve a vez que chamamos o Wu Tan Clan pra fazer o Anhembi. Na época cabia dez mil no Anhembi e deu 40 mil pessoas. Aí todo mundo invadiu. Uma vez a gente alugou o Palmeiras, tinha RZO, Xis, os principais grupos da época. Ficaram cinco mil pessoas pra fora. Aí invadiram, a tropa de choque veio. Era a época em que grupos de rap vendiam 100 mil cópias sem muita dificuldade.
Fechou. Agora tem um período aí de divulgação desse livro, né, e o que mais você traz na manga pro futuro?
O próximo trabalho será uma história com arte minha e texto do Ferréz sobre um um pessoal de periferia que desenvolve o poder de voar. Chama-se Voadores o livro, nós ainda estamos procurando editora. As pessoas começam a voar e isso causa indignação na mídia, entre os mais ricos, que passam a questionar por quê só quem é da periferia pode voar. É essa história meio de realismo fantástico.