Veja só Zidane dando uma cabeça em Marco Materazzi. É algo que, sinceramente, arrepia. Pausa e volta: repare como ele muda de “é, isso aí, beleza mermão” pra de repente agredir o cara em três passos. A forma como ele planta a perna esquerda no chão antes de partir pro golpe. A viradinha, o pivô, a mudança de ritmo: dependendo de como você encara tudo, dar aquela cabeçada em Marco foi um dos mais graciosos movimentos atléticos já desempenhados por Zidane num campo de futebol. E, no papel de um dos mais elegantes jogadores a entrar em campo, rapaz, isso quer dizer muita coisa. Fora isso tudo, tem a força da cacetada, bem ali no esterno. O que estou dizendo é que essa cabeçada doeu de verdade, tirou a quilha do cara. Foi uma cabeçada que mais se assemelhou a um tiro de um atirador de elite ou um cavalo dando coice ou, quem sabe, um caminhão vindo à milhão e arrebentando uma parede de concreto. E aí, meus amigos, temos o contexto de como tudo se deu.
Zinedine Zidane deu uma cabeçada em Marco Materazzi numa FINAL DE COPA.
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Não bastasse ser uma FINAL DE COPA, seria ainda o ÚLTIMO JOGO de Zidane como profissional.
As cortinas se fecharam para uma das mais brilhantes carreiras no futebol desse jeito: com uma cabeçada no peito de um ex-zagueiro do Everton, arruinando a última chance do seu país conseguir o segundo caneco em uma geração. E o pior: acho que o coração de Zidane nem mesmo acelerou na hora.
Meio que acaba perdida a informação de quão bom jogador Zinedine Zidane era. Seu auge se deu em tempos eletrizantes do futebol mundial – o Ronaldo original estava em alta, Ronaldinho mais ainda, tínhamos ainda Luis Figo, Vieira, Henry, Michael Owen (lembram de quando ele era bom?), uma equipe holandesa impossível com Kluivert, Bergkamp e Davids, a loucura de compra passes do final dos anos 90 na Série A (Vieri, Veron, Vieri de novo, Crespo, Mendieta, Buffon).
Que Zidane tenha chego a duas finais de Copas do Mundo com oito anos de diferença – em dois estágios completamente diferentes de sua carreira – é prova cabal de sua qualidade enquanto jogador.
Em 1998, ele foi uma das principais peças de uma máquina perfeita, o catalisador pelo qual cada jogada françesa passou. Em 2006, com suas pernas já em declínio, Zidane se mostrou ainda mais forte: ao passo em que os restos da lateral francesa se desfaziam ao seu redor, ele os carregava como um vira-lata podre salvando um bebê de um incêndio, metendo umas faltas brutais e de alguma forma metendo medo na defesa vacilante atrás dele só com a força de sua PERSONALIDADE. Em 98, Zidane ganhou a final da Copa com duas cabeçadas simplesmente porque jogava pra caralho. Em 2006, ele levou sua seleção à final simplesmente por ser um desgraçado.
A final de 2006 não foi grandes coisas até a chegada do 110º minuto. Zidane e Materazzi já rosnavam um para o outro desde o começo: o zagueiro italiano acabou por dar a Zidane a falta que acabaria virando gol naquele que era o melhor goleiro do mundo naquele momento, na expressão mais pura de poder do tipo “Este é meu último jogo e eu sou Zinedine Zidane” que já se viu – isso é, até ele METER A CABEÇA NO PEITO de Materazzi – numa jogada tão desgraçadamente esnobe que poderia ganhar um concurso de dança em Nova York nos 70, uma jogada tão egoísta que poderia começar uma revista de bem-estar sobre si mesma (como dito pelo comentarista de YouTube “Tommy Too Turnt Up”: uma jogada tão corajosa que você precisaria ter bolas do tamanho da lua).
A seleção ao lado de Zidane era composta pelos envelhecidos remanescentes da Copa de 98 e uns e outros de 2000, o que ficava claro em alguns momentos: quando a Itália aumentou a pressão, mais de uma vez Lilian Thuram salvava com seus carrinhos e Barthez também fez defesas espetaculares em diversos momentos. Tudo que acontecia passava por Zidane: dos tiros de meta aos escanteios, surgindo sempre em meio a cada investida, com aquela careca lustrosa que parecia manter o time francês no lugar. Mas a Itália partiu pra cima, conseguindo um escanteio perfeito batido por Pirlo, em que Materazzi finalizou com, veja só, uma cabeça. Empate. Dali em diante parecia que a partida havia se dissipado de alguma forma.
Não era a primeira vez que acontecia. Em 94, a Itália foi pra cima do Brasil e tudo acabou sendo decidido nos pênaltis; em 2002, Ronaldo meteu um 2 x 0 pro Brasil contra Alemanha; em 2010, a Espanha levou um 1 x 0 nos acréscimos; em 2014 a Alemanha fez o mesmo. Finais são tensas demais porque cada átomo de seu corpo quer vencer ali, no maior palco do mundo, e ninguém quer ser o cara que faz cagada perdendo (ou levando) um gol, então cada partida acaba virando uma espécie de esgrima futebolística. Em 2006, parecia que a Itália tinha as manhas de derrubar a França, mas num empate tudo pode acontecer – na maioria das vezes um gol ou uma vitória dramática nos penâltis. Dessa vez foi Zidane batendo seu melão no tórax de Materazzi.
Preciso falar pra vocês que dar uma cabeça num cara dentro de um campo de futebol é uma coisa absurda de se fazer. Violência dentro das quatro linhas é um acontecimento tão raro que acaba entrando pra história; violência acidental faz parte do jogo (encontrões com goleiros ou trombadas num ala), mas violência semi-pensada é algo que sempre lembramos. Cá estou tentando lembrar de outra ocasião, mas sinceramente não consigo pensar em nenhum momento que envolva cabeçadas em finais de Copa do Mundo, antes ou depois desta em especial. O fato de ter Zidane ter considerado fazer isso já é loucura por si só; o fato de ele ter pensado em fazer isso durante a maior partida possível dentro do esporte é coisa de gente ruim das ideias; tê-lo feito com toda a calma de um atirador de elite europeu possivelmente é um dos atos de maior insanidade já cometidos por um ser humano.
Fotos ilustrando as passadas de Zidane se afastando da cabeçada e passando pelo troféu daquele ano retratam agonia, angústia e desespero. Mas observe Zidane naqueles breves segundos pós-agressão e você encontrará um homem calmo como Buda, demonstrando certa surpresa ao conversar com o juiz e perceber que está sendo expulso. Sei que é perverso glorificar um homem por conta de sua violência, mas veja bem, se você já não adorava Zidane antes da cabeçada em Materazzi, seria difícil não amá-lo depois. Há toda uma complexidade na pura falta de emoção (e noção) que envolveu aquele momento. Zidane parecia francamente surpreso com o fato de que não se pode sair dando cabeçada nos outros.
Na hora, o ato tornou-se icônico, um dos primeiros proto-memes da história, um gif remixado milhares de vezes, distribuído naquelas páginas bizarras que existiam antes das redes sociais. Triste a constatação de que jamais conheceremos o real potencial memético da cabeçada de Zidane; IMAGINA SE ROLA EM 2018, PENSE NOS TUÍTES!
A história por trás da cabeçada é que Zidane teria sido incitado à agressão porque o zagueiro italiano teria “insultado sua irmã”, mas olha, não sei não. O cara tinha 33 anos na época e tinha passado boa parte da vida no campo, então ele já tinha ouvido os mais variados impropérios serem direcionados a sua irmã, mãe, pai e irmão – a família inteira. O que eu estou querendo dizer é que não acredito que alguém seja capaz de me dizer algo durante a Copa do Mundo que vai me fazer dar uma cabeçada nessa pessoa, deixando-a quase em coma.
Mas aí temos as frustrações que acompanham ser uma grande força que aos poucos se esvai. Ao passo em que as pernas de Zidane o traíram e seu ritmo diminuiu, como se cada cigarro que ele tivesse fumado na vida tivesse resolvido dar o troco, ele sabia que esta seria a última fez que jogaria com os melhores. Ele viu ali uma seleção francesa incrível, mas que tmabém estava envelhecida, escorregando numa poça logo atrás dele. A Itália tinha a vantagem e por mais que eu não esteja querendo dizer que essa foi a razão por trás da cabeçada – não se enfia a cabeça em Marco Materazzi porque o jogo está empatado há 80 minutos – deve rolar uma frustração ali; Zidane, uma carreira gloriosa chegando ao fim, em uma última oportunidade durante a final da maior competição do mundo, uma a qual ele já conhecia o gosto da vitória, acompanhada do fantasma do fracasso, do fim, da morte de sua carreira.
Então é hora de botar a força naquela perna e dar uma cabeça em Marco Materazzi. Dar adeus ao mundo. Se fosse um roteiro hollywodiano, Zidane teria ficado ali, batido o penâlti da vitória, gritando feito um retardado junto de seus parceiros mais uma vez. Mas não é Hollywood, é a vida. A vida dá uma cabeçada tão forte em Materazzi que ele grita. De certa forma, eis uma maneira de encerrar uma carreira mais adequada do que uma vitória ou sucesso jamais seriam.
Matéria originalmente publicada na VICE Reino Unido.
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