A ação policial realizada no último domingo (31) na Cracolândia, região central de São Paulo, deu muito pano pra manga e já parece render uma dor de cabeça para a gestão do prefeito João Doria. A truculência dos quase mil policiais destacados para desmontar o esquema de tráfico de drogas na região deixou moradores do fluxo feridos, dispersou usuários de crack pelo centro da cidade, deixou pelo menos três feridos após demolir um prédio supostamente desocupado, sobrecarregou toda a infraestrutura da assistência social da cidade e ainda pegou órgãos públicos — como a Promotoria do Estado de São Paulo e o Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) — de surpresa com a desocupação de imóveis no quadrilátero afetado.
No número 138 da Alameda Dino Bueno está localizado o primeiro prédio a ser demolido na região. No momento da demolição, notificada para ser realizada por volta das 14 horas, moradores avisaram que ainda havia pessoas dentro da construção. Ao ouvir os gritos, segundo o secretário municipal de Serviços e Obras de São Paulo, Marcos Penido, a retroescavadeira prontamente foi desligada. A prefeitura alega também que foi prestado o socorro às três pessoas feridas. Duas delas, no entanto, negaram o atendimento e uma foi encaminhada ao Pronto Socorro da Barra Funda para tratar de escoriações leves.
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Ao contrário do que foi noticiado, o Hotel Laide, construído em 1822, não foi o edifício demolido: ele tem a sua fachada tombada pelo Condephaat desde 2013. O Laide chegou a ser considerado um dos hotéis modelos do extinto programa Braços Abertos, da gestão Haddad. A construção também foi tema de documentário da diretora Debora Diniz e estava supostamente desocupado desde março, quando um incêndio destruiu parte do edifício.
As pessoas feridas na demolição estavam em um prédio que foi parcialmente destruído. Agora, o edifício encontra-se com faixas de isolamento. Segundo Penido, ninguém contava que havia uma entrada clandestina pelo estacionamento vizinho para as imediações do edifício, e por isso não foi prevista a presença de pessoas do local.
O edifício demolido não é tombado, caso do Hotel Laide e de algumas casas vizinhas, ainda que a construção que foi ao chão faça parte de uma área considerada “envoltória”, segundo apontados nas resoluções da Secretaria de Cultura, disponíveis para consulta consultar no site da pasta. No site do Conpresp, entretanto, no Cadastro de Imóveis Tombados (CIT) o imóvel consta como tombado.
Prédios tombados
Segundo Oksman, a região do bairro da Luz, em São Paulo, onde se encontra a Cracolândia, possui vários edifícios e casas tombados. A estação Júlio Prestes, edifícios dos Campos Elíseos (em grande parte as construções que datam do século XIX), o próprio parque da Luz e o Casarão Henrique Santos Dummont estão entre os pontos que foram tombados a fim de preservar o patrimônio cultural da cidade.
A área envoltória, segundo Silvio Oksman, arquiteto, conselheiro do Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) e professor da Escola da Cidade, é uma proteção à ambiência (que significa um espaço arquitetônico harmônico, organizado e integrado dos imóveis vizinhos) em torno do bem preservado. Segundo a Cartilha de Tombamento do Conpresp, qualquer reforma, demolição, colocação de anúncio, dentre outras atividades, deve ser notificada ao órgão competente e previamente aprovada. O mapa da área envoltória que compreende o prédio demolido na última terça-feira pode ser consultado aqui.
Pelo fato de o prédio demolido fazer parte de uma área protegida, Silvio diz que a diretriz sempre é acionar o Condephaat e o Conpresp para analisar se as mudanças consideráveis na área poderão ser realizadas. “Qualquer coisa que for feita nessa área deve passar pelos conselhos. Portanto a demolição de um edifício, seja interno ou na área externa, tem que passar pelo crivo desses conselhos”, explica Oksman.
O imóvel parcialmente demolido também era considerado integrante da chamada zona Z8-200, assim chamados os “imóveis de caráter histórico ou de excepcional valor artístico, cultural ou paisagístico, destinados à preservação”. Esse critério, no entanto, foi revogado em 2016 e foi rebatizado de ZEPEC (Zona Especial de Preservação Cultural) cuja demolição pode acarretar em penalidades. Além disso, o uso de locais enquadrados como ZEPECs, conforme a Lei Municipal nº 16.050, deverá cumprir a finalidade de ser voltado ao público, como promoção de atividades culturais, serviços públicos sociais ou habitação de interesse social.
“Selvageria”
Após a repercussão da primeira demolição, a gestão Doria se pronunciou afirmando que irão construir, no local, moradias populares e que o cadastramento de usuários da região já estaria sendo feito por funcionários das secretarias da Saúde e Assistência Social.
Por outro lado, há relatos de que moradores dos prédios apontados como “invadidos” pela Prefeitura foram retirados dos espaços às pressas. O juiz Luiz Manuel Fonseca Filho, titular da 3ª Vara da Fazenda Pública, concedeu uma liminar, a pedido da Defensoria Pública, impedindo demolições compulsórias e a retirada de usuários sem encaminhamento prévio para programas de saúde e habitação.
A ação policial na Cracolândia teve uma repercussão negativa. O promotor da área da saúde Arthur Pinto Filho se referiu à ela como uma “selvageria sem paralelo” em uma entrevista à Folha de S. Paulo. Filho se mostrou surpreso com a ação, visto que mantinha negociações com a gestão Doria para decidir a melhor forma de encaminhar os moradores do fluxo e usuários cadastrados nos programas sociais da região.
Roberto Luís de Oliveira Pimentel, 4ª promotor Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, pediu esclarecimentos à Prefeitura sobre a desocupação dos hotéis pertencentes ao programa Braços Abertos. “A promotoria quer esclarecimentos sobre a modalidade de desapropriação pretendida, se tais desapropriações ocorrerão por necessidade pública, utilidade pública ou interesse social. Solicita, ainda, cópias dos decretos expropriatórios, caso haja, além de outras informações especificadas no ofício”, disse à VICE a assessoria do Ministério Público de São Paulo por e-mail.
“É importante observar, além disso, que o Código de Obras do Município, na hipótese de risco na estabilidade, segurança ou insalubridade de imóvel particular, contém regulamentação que impõe a interdição do imóvel pela prefeitura e a intimação do proprietário para que no prazo de cinco dias adote as medidas necessárias para regularização, sendo que o não cumprimento da intimação implica a responsabilidade exclusiva do proprietário por eventuais danos”, esclarece a nota do MP.
No fim da quarta (24), a Promotoria de Justiça do Meio Ambiente instaurou um inquérito civil para investigar os danos causados pela Prefeitura à fachada do Hotel Laide “supostamente tombada”. A promotora de justiça Teresa Franceschi, responsável por mover a ação civil, disse por e-mail à VICE que
“caso se constate que houve dano ao prédio da Alameda Dino Bueno, nº 138 e que ele faz parte de área envoltória de bem tombado, que é protegido em razão de resolução de tombamento, por estar situado em ZEPEC ou por possui relevante valor histórico, arquitetônico ou cultural, certamente também será objeto de investigação, com ampliação do objeto do inquérito civil ontem instaurado para abranger esse imóvel ou com instauração de outro inquérito civil”.
A Prefeitura, por outro lado, negou qualquer erro na demolição de terça-feira e anunciou que o projeto Redenção não terá “nenhuma possibilidade de recuo”.
No ambicioso projeto de revitalização da chamada “Nova Luz”, um papo invocado desde a gestão de Gilberto Kassab em 2005, pouco planejamento foi feito de fato para abrigar os dependentes químicos da região, cuja condição é reconhecida pela própria OMS. “Nesse momento, falar de preservação do patrimônio e não falar da violência brutal que está acontecendo na região acaba se tornando uma discussão frágil”, pontua Oksman sobre as recentes notícias.
ATUALIZAÇÃO
A Prefeitura de São Paulo, por meio de sua assessoria de imprensa, respondeu os questionamentos da VICE com a seguinte nota:
“A Prefeitura Municipal de São Paulo respeita todas as normas e tombamentos vigentes com relação ao patrimônio cultural e histórico. As fachadas dos imóveis em questão serão preservadas. A Secretaria Municipal de Justiça reitera que as ações de demolição ocorrem de acordo com a legislação, em razão do iminente perigo público, conforme prevê o artigo 5º da Constituição, no inciso XXV.”