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Uma análise da nossa obsessão sombria por armas bonitas nos videogames

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

Vivemos na era do tacticool, e os fuzis padrão AR-15 se tornaram a grande arma dessa era. Tacticool se tornou uma expressão estética generalizada associada ao tipo de hipermaculinidade militar que nos deu o Kickstarter do “protetor labial tático” e versões de todo tipo de coisa mundana, como carteiras e carregadores (tipo esse clipe de dinheiro com uma multiferramenta do 5.11, que tem uma “parceria de integração de produto” com a Ubisoft).

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É difícil definir precisamente como — apesar de você saber quando vê — mas o tacticool transformou armas de fogo e equipamento associado com acessórios funcionais em declarações elaboradas de identidade e crença. Suas origens estão intrinsecamente ligadas à cultura de armas moderna que cresceu em torno da AR-15, a versão civil do fuzil de infantaria padrão do exército americano — e uma cultura de videogames que se desenvolveu paralelamente a isso.

Como outros hobbies exclusivistas, decifrar o que é e o que não é tacticool em armas geralmente significa brigar com jargões que deixam pessoas de fora do hobby como muito ignorantes para pesar significativamente os fatos e regras governando essas ferramentas. Considere o caso curioso da baioneta motosserra, um acessório (aqui num exemplo de 2012) que apareceu num infográfico sobre acessórios de AR-15 do USA Today em novembro passado. Depois de respostas negativas sobre o absurdo de uma baioneta motosserra, o jornal teve que publicar uma nota esclarecendo que a baioneta motosserra não foi usada pelo atirador de Sutherland Springs quando ele matou 26 pessoas.

Como chegamos aqui? O tacticool é um subproduto de uma longa evolução do design de armas. Do primeiro arcabuz à última arma de fogo da infantaria, toda arma teve sempre um propósito fundamental em comum. Ainda assim, há algo distinto sobre a arma moderna, especialmente na família das armas baseadas na AR-15. Essas armas são, no cerne, ainda armas, mas também são bens personalizados, prontas para atualização e customizadas segundo os caprichos do proprietário. A história de como fuzis pessoais foram de produtos uniformes produzidos em massa para bases altamente customizáveis é tão interessante que vamos contá-la duas vezes: uma vez com armas físicas do mundo tangível, e outra com armas virtuais que vemos nos videogames.

Foto: Performance Executive Office Soldier/Divulgação.

Armas nos trilhos

Modificações de armas é algo tão antigo quanto as primeiras armas de fogo, com reparos e interações levando a novos designs e inovações. Baionetas, talvez a modificação de armas mais icônica, foram usadas pela primeira vez no século 17, e no século 18 baionetas de soquete substituíram baionetas de tampão, permitindo que infantarias armadas com mosquetes tivessem a mesma função que a infantaria de mosquete e espada tinha antes. Em grande parte, a padronização dos mosquetes equipados com baionetas refletia as necessidades de guerra da época, que exigiam comportamento idêntico das massas das infantarias.

Apesar do que a introdução de Fallout diz, as particularidades da guerra mudam o tempo todo. Enquanto a precisão melhorava, os comandantes tinham o mesmo poder de fogo com um punhado de combatentes com armas automáticas do que gerações anteriores com pelotões inteiros armados com mosquetes e os primeiros fuzis. Enquanto o poder de fogo individual aumentava, também cresceu a ênfase para que cada atirador tirasse o máximo de eficiência das armas que carregava. O que nos traz para o provável local de nascimento das armas com acessórios modernas: o final dos anos 1980.

Em 1989, o Pentágono começou a desenvolver o kit Special Operations Peculiar Modification (SOPMOD), para que oficiais especiais tirassem o máximo das armas de fogo que carregavam. Isso significava meios mais confiáveis de acrescentar acessórios que silver tape e braçadeiras, e para esse fim, o kit introduzia um sistema de trilhos de metal que o usuário podia prender ao barril. O sistema de trilhos se tornou o padrão para outros acessórios, indo de cabos especiais a miras múltiplas até lançadores de granadas e supressores. Batizado com o nome do Arsenal Picatinny de Nova Jersey e desenvolvido no começo dos anos 90, o Trilho Picatinny se tornou o trilho padrão para montagem de acessórios.

Em 1995, o Departamento de Defesa publicou um padrão militar específico para acessórios em trilhos, construído com base no modelo picatinny, que definia dimensões e funções. Quando os novos trilhos foram introduzidos para a plataforma da AR-15 (incluindo armas como o M16 e M4), os trilhos se tornaram outra ferramenta para uma comunidade de entusiastas de armas que já experimentava com — e um mercado para — modificações indo de mudanças no barril (para acomodar tipos diferentes de munição) a ejetores de cartucho modificados para proteger usuários canhotos dos cartuchos dispensados.

Foto: Performance Executive Office Soldier/Divulgação.

Com o trilho no lugar, a M4A1 padrão não era mais um simples fuzil de assalto: agora era a base para ferramentas personalizadas, uma arma de propósito geral adaptável e modificável para uma função específica.

Primeiro, o trilho tornava qualquer arma um equipamento muito mais flexível, possibilitando para atiradores uniformizados ou não atender melhor suas necessidades. Segundo, o trilho era uma plataforma abastecendo um mercado para acessórios melhores e trilhos melhores. E isso ia além de fuzis e carabinas, com a criação de trilhos de acessórios para pistolas e espingardas. Os trilhos até permitem que você coloque uma espingarda numa carabina M4.

E aí entra o “tacticool”. De onde isso veio? Não conseguimos encontrar o primeiro uso (a palavra só aparece impressa na virada do século), mas no final dos anos 2000, a expressão era amplamente debatida em fóruns online, com usuários discutindo quais tipos de acessórios para armas eram tácticos e quais eram simplesmente tacticool.

Em geral, “tacticool” descreve escolhas estilísticas em modificação de armas que são praticamente irrelevantes na função da arma, e às vezes até comprometem a funcionalidade em nome de dar ao armamento uma aparência mais esteticamente agradável (mesmo que isso signifique um foda-se para proteção de ombro). Com acessórios de trilho entrando no mainstream, as adições para combate a novidades para hobbistas talvez seja melhor refletidas na seção “tacticool” do site nerd ThinkGeek, onde você pode comprar canetas laser estilo trilho picatinny.

Assim chegamos ao presente, onde os trilhos, originalmente criados para que soldados especiais não precisassem prender lanternas em suas armas com silver tape, agora são tão lugar-comum para donos de armas mostrarem suas ferramentas personalizadas que já tem pelo menos duas empresas vendendo testículos para trilhos.

‘Morder Warfare 2’. Imagem: Activision/Reprodução.

Videogames, atendendo a pedidos

Videogames de temática militar existem há décadas, mas a ênfase pesada na fidelidade e customização é uma tendência surpreendentemente recente. Depois do 11 de Setembro, com as guerras americanas subsequentes no Afeganistão e Iraque se estendendo e ampliando, os videogames começaram a ter um visual diferente — os cinzas e marrons tediosos do “jogo de tiro militar moderno” foram substituídos pelos vermelhos e azuis vívidos de Duke Nukem 3D e outros. As armas de pregos e lançadores de foguete de Quake cederam espaço para a AK-47 e o M16.

Parte disso foi orgânico, refletindo a mudança cultural americana óbvia causada pelas guerras. Os jogos se tornaram um jeito — para bem ou mal — para uma nova geração contextualizar a guerra. Onde nossos pais digeriram a Guerra do Vietnã através de filmes como Platoon e O Franco Atirador, nós tivemos Medal of Honor e os jogos do Tom Clancy como Rainbow Six e Ghost Recon.

Em 2007, Call of Duty 4: Modern Warfare introduziu um sistema de níveis aos populares modos multiplayer da série, e com isso vieram armas e acessórios destraváveis. E mesmo às vezes vindo com nomes errados, as armas de Modern Warfare eram meticulosamente baseadas em armas de fogo reais como a Beretta 92SB e a Desert Eagle Mark XIX. Naquele mesmo ano saiu Tom Clancy’s Rainbow Six: Vegas, que permitia ao jogador usar 22 armas customizáveis como a espingarda Benelli M3 Super 90 e o fuzil XM8 da Heckler & Koch.

Foi por volta dessa época que passamos para as armas de videogames modernas. Até esse ponto, cada arma era uma entidade distinta e vinha como era na vida real. Você tinha um fuzil de franco-atirador com uma mira, uma espingarda, um ou talvez dois fuzis de assalto. Agora você podia misturar suas opções favoritas para seu fuzil preferido colocando um ACOG numa UMP 40, ou acrescentando uma mira laser à sua M4.

‘Army of Two’. Imagem: Electronic Arts/Divulgação.

A customização de armas continuou crescendo em popularidade. Army of Two de 2010 permitia que os jogadores trocassem de munição, usassem magazines de alta capacidade e acrescentassem lançadores de granadas e espingardas às armas. Mas Army of Two também incluía opções para — e o jogo usava mesmo esse termo — “pimpar” armas com skins rococós e acrescentando platinados dourados e diamantes ao arsenal dos jogadores.

Deixando de lado a questão de “pimpar” armas por um momento, a fascinação do jogo com armas e acessórios hiper-realistas não era apenas resultado de uma preocupação natural da sociedade com a guerra moderna. Fabricantes de armas identificaram gamers como clientes em potencial, e em 2013 começaram um esforço para colocar seus produtos em videogames famosos. Da mesma maneira como fábricas automotivas como a Toyota e Chevrolet licenciaram seus carros para games de corrida, fabricantes de armas começaram a vender os direitos de usar seus produtos nos jogos de tiro militares modernos.

Barrett Rifles é uma empresa de armas do Tennessee que faz o fuzil sniper calibre 50 Modelo 82A1, que já apareceu em incontáveis jogos, de Fallout 2 a Battlefield 4.

“É difícil dizer em que extensão as vendas de fuzis aumentaram como resultado de aparecerem em videogames”, disse Ralph Vaughn, que negocia acordos de direitos de imagem para a Barrett, em uma matéria de 2013 para o Eurogamer. “Mas videogames expõem nossa marca para um público jovem de potenciais futuros proprietários.”

‘Ghost Recon: Wildlands’. Imagem: Ubisoft/Divulgação.

Vaughn também é citado em A Brief History of Video Games de Richard Stanton: “Queremos saber explicitamente como um fuzil é usado, garantindo que somos mostrados sob uma luz positiva”, ele disse.

Enquanto o trilho picatinny redefinia o significado de “legal” na cultura de armas dos EUA e fornecia uma plataforma para customização no mercado, videogames estavam sendo alistados como uma nova ferramenta de marketing para armas de fogo e seus acessórios. O trilho, e a família de armas AR-15, estão em vários jogos hoje. Elas aparecem em PlayerUnknown’s Battlegrounds, que em grande parte é um jogo sobre encontrar novos acessórios para trilho para suas armas. Tom Clancy’s Rainbow Six: Siege te deixa customizar dezenas de armas reais usando o trilho picatinny.

E as opções de customização de armas em Siege não começam ou terminam com acessórios reais. Como muitos jogos hoje, Siege também deixa o jogador acrescentar skins e detalhes a suas armas no jogo. Se a customização de armas em videogames começou como um jeito de fazer propaganda de armas e acessórios, a personalização de armas em games agora é um fim em si: “investimentos recorrente de jogadores” representaram $374 milhões — mais de 20% — da renda anual da Ubisoft em 2016-2017.

Em agosto de 2013, a Valve lançou o Arms Deal Update para Counter-Strike: Global Offensive. O jogo já tinha sido lançado há um ano e não tinha ido bem — na verdade, CS: GO não conseguiu nem superar os títulos anteriores de CS. Tudo isso mudou com o Arms Deal Update, que acrescentou skins cosméticas para armas que os jogadores recebiam aleatoriamente no jogo. A compra de chaves para destravar caixas de armas virtuais financiou torneios de busca de prêmios para CS:GO, e assistir esses torneios era outra chance de ganhar uma skin de “suvenir” no jogo.

A popularidade de CS:GO explodiu depois do Arms Deal Update. Depois de um primeiro ano anêmico onde o número de jogadores era de no máximo 50 mil, agora CS:GO normalmente tem mais de meio milhão de jogadores diariamente.

Como o trilho picatinny fez pelas armas na vida real, skins de armas criaram toda uma economia de capitalização nos jogos. Dá pra fazer muita grana criando skins, e a skin Dragon Lore para o fuzil AWP, lançada durante o torneio Boston Majors, recentemente foi vendida por mais de $61 mil num site de revenda de skins (o mercado do Steam de skins tem itens listados em $400).

O meu fuzil

É um pouco fácil demais dizer que customização de armas é apenas um marketing inteligente tirado da indústria de armas, mas as similaridades são difíceis de ignorar. Jogos como Gears of War 3, Destiny 2 e até Rainbow Six Siege incluíam designs de skin mais extravagantes que os acessórios tacticool que você veria num estande de tiro. E nos videogames, as skins comunicam informação adicional: dedicação ao jogo por horas jogadas, torcedores de um time esportivo em particular, ou o jogador ter participado de um evento no jogo, ou testemunhado um certo torneio.

Mas os fabricantes de armas e estúdios de videogame já identificaram as armas como um tipo de tela para autoexpressão dos donos de armas e jogadores. Em jogos competitivos como Counter-Strike, a arma personalizada de um jogador tem alta visibilidade; quando um jogador é abatido durante uma rodada, seu ponto de vista geralmente passa para a de um jogador ainda de pé, com todos os olhos eventualmente sobre o último sobrevivente. Ter uma skin rara ou cara durante um desses momentos de alta pressão pode te fazer sentir mais memorável, mais competente, mais de elite. E como diz o gerente de produção da Riot Games Adriaan Noordzij: “A vaidade não tem um limite de preço”.

O que é a arma moderna? É um avatar do usuário, construída considerando conforto, capacidade e estética, seja um barril cheio de bugigangas pouco funcionais ou uma skin bonita significando tempo gasto no jogo. Através da customização, armas passam de máquinas intercambiáveis funcionais para artefatos personalizados individuais. O tacticool ainda pode existir nos estandes de tiro, mas os videogames adotaram a mesma mentalidade para fazer algo próprio – um culto estranho e materialista de partes frias e misantrópicas, criado com um objetivo em mente: parecer de elite.

Da perspectiva humana — a perspectiva de um alvo em potencial — essas armas com que todos nós ficamos fascinados têm apenas uma função. Como Vonnegut escreveu sobre o revólver calibre 38: “era uma ferramenta com o único propósito de fazer buracos em seres humanos”.

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