Assim seria o Mundo sem Espanha [e sem Portugal]

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Espanha.

Imaginemos um Mundo sem paelha [Nota do Editor: o Arroz à Valenciana, pois claro]. Um Mundo sem cocktails de gin Larios bem aviados, ou sem Julio Iglesias, Bustamante ou Picasso. Imaginemos, por uns instantes, que Espanha não existe.

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O que teria acontecido se Espanha (e o conjunto da Península Ibérica) nunca tivesse existido? Foi o país [Nota do Editor: a Península. Já vão perceber mais adiante o motivo destas notas da VICE Portugal], assim tão importante no desenvolvimento da humanidade? Teria o Planeta evoluído bem sem nós? Imaginem um Mundo sem esse pedaço de terra. Imaginem que os franceses, ao cruzarem os Pirinéus, se deparavam com o vazio.

Seria lamentável que, retirando a Espanha da equação, a história da humanidade fosse exactamente igual, não sofresse qualquer alteração. Seria épico, esse momento em que os espanhóis descobrem que a sua importância não vale um chavo. Ou, se calhar, até poderia ser o oposto. Um Mundo sem Espanha teria sido um sítio muito pior – repleto de gente muito triste que se suicida aos 30 anos -, ou, pelo contrário, seria um paraíso ofuscante, habitado por seres diplomáticos, de rostos belíssimos, que viajam sobre unicórnios e que não entendem o significado da palavra “guerra”?

Façamos um exercício de auto-reconhecimento, a partir da inivisibilidade. Encontremos o peso da nossa própria importância através da ausência. Abortemos Espanha, para nos entedermos a nós próprios.

Imagem modificada via Google Maps

O NOVO TERRITÓRIO

Antes de reflectir sobre o desenvolvimento histórico, o básico é tentar saber o que aconteceria aos Continentes se Espanha nunca tivesse existido. Continuariam organizados da mesma forma? Não é apenas uma questão de apagar Espanha do mapa [Nota do editor: e Portugal, raios ta partam!] e de deixar uma enorme mancha vazia no Mediterrâneo [Nota do editor: e o Atlântico, pá??!!?] onde antes estávamos nós. Posso especular que as distintas placas que constituem a versão do Planeta pós-Pangeia, se teriam separado de maneira diferente, desenhando um Mapa Mundi peculiar e estranho.

Manuel Reguero, presidente do Ilustre Colegio Oficial de Geólogos, diz-me que “se não existisse Península Ibérica, que na realidade é um pedaço da placa, os outros continentes teríam tido uma formação igual”. Ainda assim, haveria coisas bastante diferentes. “Por exemplo, sem o choque contra a placa euroasiática não se teriam formado os Pirinéus e, sem o impacto da placa ibérica com África, não teríamos a cordilheira do Atlas. De qualquer maneira, certamente ter-se-iam formado outras montanhas devido à colisão da placa africana directamente contra França”.

“Sem Espanha provavelmente o Mediterrâneo não existiria”.

O ponto de maior destaque, assinala Reguero, é que, provavelmente o Mediterrâneo não existiria”. Não havendo nada que ‘fechasse’ a entrada do mar, França seria como uma espécie de grande golfo até Itália e teria uma espécie de Costa Azul, mas sem as montanhas”. Tendo em conta este panorama, o Atlântico ocuparia o espaço entre França e África e, por tanto, “o que agora é o Mediterrâneo seria considerado parte do Atlantico, que entraria até à Turquia”, garante o geólogo.

Outra possibilidade seria que a placa africana chegasse a chocar com o Continente europeu, fechando o Mediterrâneo. De acordo com Reguero, “é possível que, sem a Península Ibérica a reter o empurrão de África, esta conseguisse fechar o Adriático. Itália ficaria colada à Tunísia e, como o Cáspio, a zona Este do Mediterrâneo seria um mar fechado, tipo Mar Morto”.

Imagem modificada vía Google Maps

Sem a Península Ibérica teria sido impossível travar a colisão entre Itália e África; o Sul de Itália seriam os Pirinéus e o mais natural seria que Itália ficasse colada à Croácia, fechando-se de encontro aos Cárpatos (que já são o resultado da colisão, pelo que seriam uma espécie de super Cárpatos). Tudo isto seriam montanhas mais altas e, seguramente, não existiriam todos os mares até à Grécia. Talvez se formasse um Mediterrâneo pequenito, mas, é óbvio que, tal como o conhecemos, este mar não existiria.

UMA NARRATIVA HISTÓRICA SEM ESPANHÓIS [Nota do editor: espera lá que já levas!]

A primeira coisa em que pensei, com o meu limitado e erróneo conhecimento histórico, foi que, sem o Mediterrâneo a funcionar como canal de intercâmbio de mercadorias, cultura e conhecimentos, o Ocidente seria hoje completamente diferente. O que é que teria acontecido ao Império Romano, por exemplo?

Daniel Aznar, doutorado em História e investigador associado na Universidade Paris-Sorbonne – e comissário da exposição “Carlos de Borbón, de Barcelona a Nápoles” – concede-me uns apontamentos cruciais sobre o panorama de um Mundo sem Espanha.

“A primeira coisa que me chama a atenção na tua proposta, é que ignoras o facto de que Portugal também não existiria (o que é muito significativo da relação que nós, espanhóis, temos com os nossos vizinhos lusos). [Nota do editor: ALELUIA, foda-se, que estava dificíl!]. É importante destacar essa confusão entre Espanha e Península Ibérica. E é um ‘detalhe’ importante, porque o primeiro grande império transcontinental foi o português e, provavelmente, nesta ficção de um Mundo sem Espanha, talvez fosse Portugal a assumir a relevância na expansão transatlântica: e, consequentemente, a língua portuguesa teria substituído o castelhano, ou o espanhol, como queiras”, salienta.

Foto via Wikipedia

E Aznar continua: “Sem Espanha na História, a História da América seria completamente diferente. No Continente americano, a situação dos indígenas teria sido outra e, provavelmente, (apesar da crença comum), muito pior. Espanha e os seus sucessivos monarcas, promulgaram leis para a protecção dos indíos, favorecendo também que a Santa Sé os dotasse de alma (privilégio de que os negros, por exemplo, não gozaram no século XVI). Portugal, por sua vez, adoptou uma postura muito diferente em relação a este tema“.

“Para além da América hispânica, que teria sido portuguesa, locais tão emblemáticos – e cinematográficos -, como Los Angeles, Califórnia, São Francisco, Flórida, Texas, ou as Córdobas e Toledos espalhadas pelos Estados Unidos, não existiriam. Podemos, inclusivamente, perguntar-nos se os Estados Unidos existiriam, já que a ajuda económica e militar espanhola (juntamente com a francesa) foi indispensável para que as 13 colónias conseguissem a independência da Coroa Britânica”, explica o especialista.

“As Filipinas tão pouco teriam esse nome (talvez fossem as Ilhas Joaninas, devido ao monarca português contemporâneo de Filipe II, que está na origem do seu nome)”, lembra ainda Aznar.

E adianta: “Sem Espanha na História, o Direito marítimo não existiria (ou, pelo menos, seria completamente diferente), porque foi desenvolvido pelos catalães no tempo da Coroa de Aragón. Tal como aconteceria com o Direito Internacional, sem a Escola de Salamanca Francisco de Vitoria, criador do Ivs Gentivm e do conceito de soberania das nações. Ou ainda Córdoba, o seu califado e todo o esplendor cultural e científico em redor de uma das maiores cidades do Mundo na sua época”.

Imagem via utilizador Flickr 21819552@N08

“No campo religioso, o catolicismo talvez não tivesse conseguido atingir o alcance planetário. Itália teria ficado submergida numa hegemónica influência francesa e cidades como Nápoles ou Roma, seriam totalmente diferentes do que são hoje, sem os seus bairros espanhóis, ou as suas igrejas dedicadas à Imaculada Concepção”, continua a dissertar Aznar.

“As polis gregas, por sua vez, claro que teriam existido com esse novo mapa que me apresentas, mas o mundo romano seria muito mais limitado. Tarraco (actual Tarragona), que foi a capital imperial durante os cinco anos em que nela viveu o Imperador Augusto, não teria existido, tal como os imperadores Trajano, Adriano ou Teodósio. O Mediterrâneo catalão-aragonês não existiria e talvez até a Acrópole de Atenas, não teria chegado aos nossos dias sem as obras de restauro que nela levou a cabo Pedro III, “O Cerimonioso”, que foi Duque de Atenas e Neopatria, além de Rei de Aragão e Conde de Barcelona”, conclui o historiador.

UM MUNDO SEM A MARCA ESPANHA

Continuemos com as anotações indispensáveis do doutorado em História, Daniel Aznar, mas centremo-nos agora em grandes nomes e invenções de Espanha. Para começar, diz, “na história da filosofia e do pensamento, teria faltado Séneca e Averroes, Baltasar Gracián e Ortega y Gasset”.

“Sem Espanha, quem teria descoberto que o sangue circula pelo corpo? Desde logo, o aragonês Miguel Servet não teria sido”, dispara Aznar. E acrescenta: “Sem Espanha, provavelmente o chá e o café ter-se-iam imposto de forma hegemónica, deixando o chocolate – trazido da América, mas “inventado” na forma de consumo que hoje conhecemos, em Espanha e desde aqui difundido para o Mundo através da influência e cultura espanholas – sob domínio da Casa de Áustria.

Foto via utilizador de Flickr rinzewind

“A guitarra também não existiria, já que tem origem andaluz e desenvolvimento espanhol até à perfeição atingida no século XVII. E o que dizer da raça pura espanhola de cavalos, de origem anterior ao cavalo árabe (o cavalo de Espanha de que falam os romanos) e aperfeiçoada durante séculos por emires e reis espanhóis?. No campo da gastronomia, teríamos também de lamentar a inexistência do presunto espetec, do pan con tomate e de outros tantos pilares gastronómicos da nossa cultura”, considera o historiador

E acrescenta: “Personagens universais, como Quixote, Don Juan, ou Fígaro, não teriam existido. Mozart jamais teria dedicado uma ópera a Don Giovanni, ou outra às bodas de Fígaro, nem Rossini ao barbeiro de Sevilha, Bizet não teria escrito Carmen (consequentemente, não saberíamos que “l’Amour est un oisseau rebelle que nul ne peut apprivoiser“), nem Schiller Don Carlos. Enfim, sem Espanha, as pessoas davam cabo das costas a esfregar o chão de joelhos, porque não existiriam esfregonas. Tão pouco existiria o Chupa Chups, mas não sei bem que tragédia é que isto poderia provocar”.

As placas oceânicas mudam completamente o significado do que é o Mundo actual. Um leve gesto, um descuido subtil pode alterar o destino de toda a humanidade, de tudo o que existe. Toda a história teria sido distinta e nós não existiríamos, nem o Mundo seria como o que vemos agora.

Muito de quando em vez, olhamos para o nosso próprio país com terror e vergonha alheia [Nota do editor: a nós também nos costumava acontecer isso, mas depois fomos Campeões da Europa, ganhámos a Eurovisão, criámos a Geringonça, temos cá a Madonna a viver e passou-nos!], mas é bom que, de vez em quando, vejamos que até temos algumas coisas importantes. Que parte disto que nos rodeia, para o bem e, inclusivamente, para o mal, é fruto da nossa existência.

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