A ilha de Itaparica foi o ponto de partida e chegada do BaianaSystem durante o processo que culminou no seu recém lançado disco O Futuro Não Demora, obra que faz diversas viagens no tempo para criar uma atmosfera que se conclui atemporal . A imersão da banda na região que pariu o escritor João Ubaldo Ribeiro se reflete por todo o disco. Desde a marcação marítima da faixa de abertura (“Água”) — lembrando o ritmo da travessia do ferry boat que leva e traz os passageiros pela Baía de Todos os Santos — aos temas que norteiam as letras das 13 faixas do disco.
Com menos explosão e mais melodia, o BaianaSystem produziu mais uma grande contribuição para a música brasileira. Junto a uma seleção pesada de participações, Russo destila toda sua coleção de flows e versos adquirida em soundsystems e na vivência de um sul-americano de Feira de Santana. A guitarra baiana, que virou marca da banda já no primeiro disco, aqui divide espaço com outros elementos também rebuscados da música baiana tradicional, como as composições de Antônio Carlos e Jocafi e o berimbau de mestre Lourimbal. Para além de buscar referências, o Baiana trilha um caminho de reverências aos antigos, contemporâneos e promissores.
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“Navio”, faixa que divide os lados Água e Fogo do disco, é um dos pontos altos da obra, com um samba-reggae que homenageia Mestre Moa do Katendê e se mostra providencial. Aqui o conceito do disco se mostra muito bem amarrado — ao mesmo tempo futurista e de resgate ou nostalgia do futuro, como eles costumam dizer. Dos shows, trouxeram na íntegra a frenética “Saci” — que vai gerar momentos de catarse nesse carnaval — e “CertoPeloCertoh”, com o rapper Vandal trazendo a crueza do vocabulário e violência das ruas da capital baiana em versos como “Fuck the police, corta a fantasia / dona desses corpos que tão lá no CIA” — se referindo a estrada da região metropolitana de Salvador conhecida como área de desova.
Em meio ao lançamento do disco e uma sequência intensa de shows que a banda vem mantendo, conversamos com o vocalista Russo Passapusso para se aprofundar nesse universo de urgência e esperança que eles criaram em O Futuro Não Demora.
Noisey: Qual a história do nome do disco? “O futuro não demora” me soou como um alerta, algo que remete à urgência dos dias atuais. Seria sobre isso?
Russo Passapusso: Essa frase tem realmente muito disso. Pode ser uma mensagem de esperança ou algo ameaçador. Mas é direcionada a uma situação atemporal, como uma guia de tirar essa distância do futuro e ter o entendimento da carga do passado, da importância disso pra construção do futuro e como isso é muito junto. A gente vive cada vez mais dentro de um processo que faz com que essa linha do tempo, essa relação com as memórias se sintetize. Esse é um trabalho feito a longo prazo e isso pra a gente acabou trazendo relações diferentes com o tempo, com essas ideias de futurismo, do que seria essa visão de futuro. E a gente acabou desconstruindo todas essas relações de tecnologia pra entender o que seria esse futuro, em termos de evolução. Eu acho que é mais sobre esses questionamentos da relação de esperança e de alerta, como você falou. E muito também de tirar esse pensamento de sonho distanciado na relação que se tem com o futuro.
A capa do disco tem chamado bastante atenção. Comenta sobre o conceito que vocês trabalharam nela dessa vez e aqueles elementos utilizados ali.
Essa capa é Filipe Cartaxo e Filipe Bezerra né. Pra mim fica até meio difícil falar, eu fico vendo de fora o processo absurdo de imersão que essa galera faz. Esse disco foi feito em um ano, viajando pra ilha, pesquisando, vendo coisas, estudando muito. A galera via muitas coisas de cartografia, das histórias da ilha, dos livros de João Ubaldo, a escrita das cartas antigas. Todo esse processo ajudou muito nesse entendimento espiritual, ancestral, de bússola que Cartaxo mergulhou absurdamente. Quando eu vi a capa, simbolicamente falando, com tudo que a gente tava caminhando nas pesquisas, ela me trouxe uma tradução cíclica, que foi nosso último aprendizado. Com dez anos de trabalho a gente chegou a esse entendimento de que nada mais é que uma relação cíclica (começo-meio-fim-começo) e acho que esse disco já passa isso. Como a gente construiu o disco nesses caminhos ilha-mar-salvador, a gente passou a entender esse ponto de partida que anteriormente era só Salvador.
Dessa vez vocês vêm acompanhados de muitas participações. São nomes soteropolitanos e internacionais, novos e antigos. Como você enxerga a importância disso para essa obra?
É um recorte natural de convivência, esse disco veio como uma ideia colaborativa. Vai no caminho oposto ao que a gente tava vendo até em relação a mercado, que é essa ideia de minimizar, sintetizar, home studio… A gente é apaixonado por música brasileira, ficha técnica, pessoas que fazem só arranjo de base… A gente acredita muito nessa soma, no entendimento de funções dentro de uma obra e não englobar tudo pra mim, que é essa coisa da modernidade, de uma pessoa só assumir várias coisas a fazer.
No mundo moderno as pessoas querem simplificar cada vez mais funções e acho que desse jeito algo se perde no processo de criação de obra. A gente acredita que esse feito colaborativo acaba gerando um outro movimento que é o que tinha na música brasileira, como os discos clássicos eram feitos. Você vê que teve muita gente envolvida na criação daqueles trabalhos. O Futuro Não Demora foi muito no conceito do diálogo.
Essas participações não são nada mais que pessoas que já conviviam com a gente, com exceção dos nomes do exterior — Adrian Sherwood e Manu Chao. A mãe de João faz um trabalho lá no quilombo do Samba de Lata de Tijuaçu, que participa da faixa “Redoma”. Antônio Carlos e Jocafi são da minha vida, a gente tem uma relação muito forte. Edgar, das últimas coisas que a gente foi fazer em São Paulo, foi a maior identidade e aprendizado que tivemos. Vandal é meu amigo pessoal, o público conhece, tá sempre nos shows, BNegão nem preciso falar. Maestro Bira vem trabalhando com Beto Barreto fazendo músicas pra sinfonia, sem nem pensar que isso iria desembocar no disco. São caminhos que foram feitos pela convivência, já tava internalizado e esse disco se fez dessa forma. Hoje, falando com você, é que eu tenho uma leitura de como se deu esse recorte e vejo que é um recorte muito forte de música baiana e brasileira.
Tudo isso foi algo que a gente colocou no disco de uma forma muito verdadeira e hoje eu vejo que é algo que pediu pra acontecer dentro desses relacionamentos que a gente tinha. Os próprios temas, a ordem das músicas. A gente foi para ilha durante quatro meses sem fazer música, aprendendo através da oralidade, se encontrando com as pessoas, lendo… Junto a isso as músicas surgiram e as participações apareceram com esses diálogos que a gente tinha por causa do tema. Por exemplo, em “Sonar” Curumin é esse mensageiro que vem num barco falando de relações celestiais (“entre portas e portais”) e como as pessoas se guiavam no mar pelas estrelas e Edgar responde ele do fundo do mar num orelhão falando sobre Tesla e que toda energia é pra ser de graça. A gente não fez as músicas e chamou as pessoas, a gente foi colaborando e compartilhando pesquisas da ilha e elas se sentiam dentro dessa relação toda, porque não era algo superficial. Foi muito de acordo com o campo de visão que esses músicos têm de cada tema e a coisa foi funcionando como um ímã mesmo.
O disco nasce em fevereiro, a duas semanas do carnaval. Qual a representatividade que você enxerga nisso?
Na real, o Baiana nasce em fevereiro. A nossa primeira tocada foi há dez anos num 2 de fevereiro. O Ministereo Público, soundsystem clássico daqui do qual também fiz parte, faz uma festa de largo todo 2 de fevereiro. A gente tem uma relação muito forte com essa data. Nosso principal laboratório é quando as pessoas saem pra rua, ocupam com as festas de largo, o carnaval. E a gente tem buscado isso.
Me conta sobre o processo de pesquisa e pré-produção. Como foi a imersão em Itaparica e todo esse aprofundamento na história da Bahia?
Vou te contar um fato: a gente foi fazer um show do Duas Cidades em Itaparica e eu com esse entendimento urbano e tudo mais cheguei lá e falei “a gente veio trazer a antropofagia” e uma pessoa de lá falou “não, a antropofagia nasceu aqui” e me ajustou em várias coisas que eu falei. Isso é algo que me marcou muito, levantou minha orelha e houve essa curiosidade de entender por que aqueles jovens eram tão maravilhosos. E é porque eles convivem com os historiadores de lá, a oralidade, os pescadores e têm um aprofundamento até intelectual dentro dessa convivência da ilha. Houve um êxodo inverso dessa vez: no Duas Cidades a gente foi a São Paulo e dessa vez Ganjaman (produtor do disco) foi a Itaparica. Foi tudo a partir da importância da ilha e isso foi algo de grande relevância nesse momento.
Qual aspecto você sente que se destaca mais no que há de diferente entre esse disco e Duas Cidades?
É colocar o local como prioridade em cima do global pra se ter uma relação de identidade mais forte, num momento em que a gente tá precisando muito disso: fincar o pé nas nossas identidades e raízes. O Duas Cidades fazia world music dentro de nossas referências mas agora a gente vem com uma carga brasileira muito mais forte.
O Baiana está completando dez anos. O que você acha que mudou de mais relevante na banda de lá pra cá?
Pra mim, essa coisa na banda de querer mudar formatos, construir outras coisas é algo que se mantém novo e eu levo mais em consideração esse espírito do que a coisa do tempo de uma forma mais física. Esse espírito está muito novo e cada vez mais intacto, eu me sinto bem com isso. Acho que o que mudou muito é que hoje a gente entende que nosso processo é cíclico, que a gente vai passar por vários momentos no processo de produção e pesquisa, de ficar um tempo se dedicando a um disco mesmo num mundo de imediaticidade. É sobre ter mais calma pra entrar nesse processo e também pra tradução dessas músicas para o show, acho que é mais maturidade mesmo.
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