Explicando o mundo bizarro da vida noturna britânica para um estrangeiro

Screenshot do documentário da VICE Locked Off.

A vida noturna na Inglaterra é uma coisa linda. Na forma atual, mesmo cada vez mais perseguida, a cena é maravilhosa, com festas caseiras gratuitas, noites grown and sexy, ônibus noturnos, trens noturnos, afrobeats, gabba, drogas da internet, shufflers, cassinos 24 horas, pubs irlandeses onde você pode cantar “Total Eclipse of the Heart” enquanto uma corrida de cavalos aleatória passa no mute na TV, rachas de corsa, o pessoal da lager, o pessoal da cerveja gourmet, minas Wavey Garms, óxido nitroso, pré-baladas, afterparties, nostalgia da rave, revival da rave, mártires da rave, Mães da Rave, sexo fácil, amor difícil, justiça de câmera de segurança, guerra de táxis, motoristas drogados, música universitária, colegas de bar xenofóbicos, política queer, zoeira no Snapchat, propriedades industriais e reclamações de barulho. E as ferramentas que você precisa pra entrar nessa são apenas o CityMapper, o Uber e — aparentemente — uma caralhada de pó.

Essa lista é familiar para os baladeiros da Grã-Bretanha, mas essa parafernália e polivalência podem confundir quem é de fora, gente que não entende muito bem o tribalismo, a curtição de beber na rua e as gírias. Como explicar a sensação do chuvisco gelado na sua nuca às 4 da manhã, quando você percebe que sim, tudo já fechou, e sim, o único jeito de continuar a noite é na casa daquele cara entranho que quer discutir sobre facas de caça e Brexit o resto da vida? A etiqueta de drogas totalmente incoerente? As tortuosas políticas do sexo casual?

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É por isso que um ianque confuso — o editor da VICE americana Zach Sokol — me enviou uma série de perguntas numa tentativa de entender um pouco dessa zona toda.

A contagem de palavras dessa matéria poderia chegar a dezenas de milhares, e nenhuma cartilha sobre a vida noturna britânica poderia ser realmente abrangente, mas, por enquanto, aqui vai uma visão geral desse sórdido e sublime mundo.

Foto por Bruno Bayley

Zach “Yank” Sokol: Qual a diferença entre um bar e um pub?
Fran “Brit” Garcia: A diferença pode parecer insignificante, mas é profunda. Por exemplo, se você entra num bar e fala em voz alta que está num pub, ninguém vai nem piscar. Mas se fizer a mesma coisa no pub errado, alguém pode acabar enfiando sua cabeça na privada. Outra diferença é a música — bares tendem a tocar músicas de luxúria, e pubs tocam mais músicas de amor, ou pelo menos celebrando a morte do amor. Sendo assim, quem frequenta pubs provavelmente é alcoólatra, e quem frequenta bares provavelmente é pervertido.

Na verdade, “bar” é um termo muito vago usado para descrever os fossos grudentos em que a maioria dos adolescentes britânicos experimenta a liberdade de uma identidade falsa, ou vivem cheios de funcionários de escritório perto da aposentadoria, que preenchem o abismo de sua alma com ale xenofóbica toda sexta. Talvez a diferença mais crucial é que cachorros não moram em bares.

Mas os pubs, bom, os pubs são o grande pilar que sustenta todo o edifício do “Britshness”. Eles estão em declínio, são muito idealizados e o conceito fica super vago quando você tenta explicar para um estrangeiro. Eles já foram lugares duradouros e perseguidos, cheios de clichê e mito. Eles lembram torcedores de futebol, locais jogando bilhar, máquinas de quiz ou dominó computadorizado, rodadas de cerveja escura com muita espuma e cachorros, que podem morar neles ou em cima deles, dependendo da robustez e do ângulo do telhado. Você bebe seu primeiro pint num pub e transa pela primeira vez num bar, geralmente na mesma noite.

Um encontro típico num típico pub britânico. Foto por Bruno Bayley.

Yank: Você já teve um encontro romântico num pub?
Brit: Depende da localização, da origem do encontro (Tinder = bar/ pub = levar sua namorada para sua cidade natal pela primeira vez) e a intensidade do encontro. Encontros casuais combinam mais com bares agressivamente iluminados do centro ou o bar de drinques mais próximo, mas pubs são para encontros de desejo desesperado. Nada diz mais “Te curto intensamente” do que uma pint de Caffrey’s em temperatura ambiente (o gosto é tipo um pão de forma líquido feito de moedas) e um saco de batata frita Taytos num local bem spit and sawdust [risca-faca].

Yank: Como tudo começa? Com que idade os britânicos começam a encher a cara?
Brit: Na adolescência, em diferentes idades e com níveis variados de entusiasmo. Ou, pelo menos, essa foi a minha experiência: garrafões de cidra de marca genérica compartilhados por moleques hiperativos, cínicos e ligeiramente assustados, em parques e pontos de ônibus, em conjuntos habitacionais e na frente de lojas de conveniência. Esses são os points eternos dos ritos de adolescência britânicos. Hoje em dia, muitos moleques de 15 anos entram na vida noturna através de raves ilegais de gabba em abatedouros metropolitanos reformados, como Christianes F. dos subúrbios de Londres — mas para mim, foi o antigo combo de bebida vagabunda e tédio adolescente.

É mais ou menos universal que o processo ocorre entre os 12 e 17 anos, o que transforma até o Tom, Dick ou Harriet mais espinhento num especialista em duplicidade. É uma rede emaranhada de mentiras sobre dormir na casa do amigo, quedas da janela do quarto, jaquetas que vão ser marinadas em fumaça de cigarro e depois banhadas em latinhas inteiras de desodorante AXE. Como você já deve imaginar, esse é um tipo de mentira que até os pais mais ingênuos desmascaram logo, levando aos famosos “anos difíceis” entre pais e rebentos, imortalizados no país desde o sucesso de “Yakety Yak“.

Os ingleses começam a mergulhar na vida noturna mais ou menos nessa idade. Foto por Emma McKay.

Yank: Quais são os ritos adolescentes que você falou, e como eles são diferentes do que acontece nos EUA, por exemplo?
Brit: Bom, algumas coisas são unicamente britânicas. A transgressão adolescente tende a começar com um jogo de futebol com garotos mais velhos da escola, que inexplicavelmente não tem nenhum amigo do seu próprio ano. (Julgando pelo que vi na cultura pop americana, vocês substituem o elemento do futebol por jogar rolos de papel higiênico na casa dos outros e tacar fogo em animais na floresta). E esses garotos mais velhos da escola estão sempre roubando uns cigarros da mãe.

Aí você experimenta um desses cigarros da mãe. E passa mal. Aí vocês rodam a vizinhança batendo na porta dos cidadãos locais até que algum velho fique puto e realmente te persiga. Você continua fazendo isso até pegarem o Ricky e alguém precisar ligar pra mãe dele. O Ricky é proibido de sair de casa para sempre. Você começa a tomar das garrafas ou latas que esses garotos mais velhos roubam do pai. Você passa mal de novo. Você repara que é um desses moleques igualmente abençoados e amaldiçoados que consegue ter barba aos 14 anos, e assim vira o provedor de goró. Você vai até a loja da esquina comprar uns 50 paus de cerveja e cigarros comunitários todo final de semana. Você é um deus, você é intocável. Todo final de semana você chega em casa às 11 da noite, briga com a sua mãe e manda mensagens desesperadas para uma certa mina da sua classe de biologia. As virgindades vão sendo gradualmente ejetadas, a lealdade das gangues é construída e destruída, festas acontecem, você nunca dança e fica com os olhos vermelhos de fumar a “maconha” escandalosamente cara que vendem por aí.

A polícia te pega num final de semana e você diz que esqueceu sua identidade no carro. Eles perguntam onde você estacionou. Você entra em pânico e diz que ele foi roubado. Eles riem e dizem que conhecem sua mãe. Eles te levam pra casa e você fica de castigo até fazer 18.

Pelo menos era assim na minha época, mas acho que não mudou muita coisa.

Foto por Fran Garcia

Yank: Beber na rua é legal na Inglaterra, certo? Acho que os londrinos não fazem de beber na rua um evento, como acontece em outras cidades da União Europeia, como Berlim. Você também acha? As pessoas se reúnem de propósito num parque para “virar um litrão” e falar merda?
Brit: Sim, é legal, e sim, é um evento, mas talvez não tanto como para os berlinenses ou parisienses. Cresci em Londres, então nunca vi nada de anormal em beber na rua. Nos raros dias quentes de verão, todo mundo ia para o espaço verde mais próximo tomar as latinhas da cerveja mais baratas do supermercado. Isso ainda existe hoje, só que mais pessoas estão baforando bexigas de NOS, e se isso for proibido em Londres algum dia, é sinal de que a cidade morreu enquanto conceito.

Dito isso, longe do brilho irreal da capital, você está num território muito diferente. Morei muito tempo na Escócia, onde estranhamente beber na rua é a) ilegal e b) um problema de saúde pública. Apesar do risco de ser multado pela polícia, todo dia — ainda mais raro — de sol, leva legiões de moleques a estarem sempre prontos a destruir qualquer gramado na nobre busca por chapar o coco.

Foto por Adrian Choa.

Yank: Qual o tipo de bebida dos “coxinhas”? Qual o equivalente do Reino Unido de cerveja ice, vodca ice ou pinga ice? E os alcoólatras? O que eles gostam de beber?
Brit: Sei exatamente do que você está falando. Normos/quadrados tomam uma variedade de “alcopops” coloridos indutores de diabetes antes de ir para o próximo encontro no Tinder. (No norte, essas bebidas têm o apelido muito politicamente incorreto de “suco de baitola”.)

Aí você tem as bebidas pesadas como Buckfast e Mad Dog (alto teor alcoólico). Elas têm propriedades mágicas que vão aumentando quanto mais pro norte você vai. Li que o Buckfast — um vinho fortificado de 16,5% de álcool, feito por monges beneditinos, e que tem cafeína equivalente a de três Red Bulls — vendeu $52 milhões só no ano passado, a maior parte na Escócia.

Yank: Como é a cultura do esquenta? Nos EUA, ainda é comum encontrar os amigos antes de qualquer festa ou show para beber, falar merda, usar drogas ou fumar um cigarro atrás do outro — mesmo se você já tem vinte e poucos anos.
Brit: O esquenta é um dos rituais mais estranhos em que você se vê assim que faz 20 anos. E ele muda apenas sutilmente. Você pode largar mão dos dirty pints de Jack Daniel’s, cuspe e Stella, mas o impulso continua o mesmo, só que com drogas mais caras. Em Londres, não conheço ninguém velho o suficiente para ter largado completamente o estilo de vida dos esquentas. No subúrbio, ele é um sonho distante para jovens de olhos cansados e mulheres que trocaram os tênis por filhos.

Yank: As pessoas ligam para cepas de maconha, tipo indica vs. sativa, como nos EUA? Ou maconha é só maconha?
Brit: Ah, o maconheiro connoisseur, um dos esteriótipos mais difundidos e pentelhos da vida noturna mundial. Aqui eles existem em todos os campi, estão infiltrados em toda cidade-satélite, no cantinho de cada festa de merda na casa de alguém. Entre os 15 e 25 anos, você inevitavelmente encontra uma pequena legião de fãs do Pink Floyd, que não conseguem esperar para te contar todas as facetas do cranberry kush que acabaram de arranjar, cara.

Eles são inofensivos no final das contas. São basicamente aqueles peidos que você ouve no banheiro em forma humana.

Foto por Jamie Clifton.

Yank: O que é considerado “tarde da noite” no Reino Unido? Tipo, alguém que pega pesado na balada, quando ele ou ela volta para casa? Vocês costumam ver o sol nascer?
Brit: Esse provavelmente é nosso melhor momento da noite. A caminhada às oito da matina até o morro, reservatório, parque, campo ou apartamento de um amigo mais próximo, com um saco cheio de maconha e os olhos vidrados de arrependimento, esse é um dos pequenos momentos de transcendência universalmente reconhecidos nesses tempos deprê da nossa ilhazinha decadente. Na verdade, a vida noturna inglesa e todo seu romance sempre foi mais sobre o começo e o fim da noite. Nossa introspecção particular é muito melhor que nosso júbilo público.

Yank: Que drogas são consideradas tabu na maioria das festas?
Brit: O normal, acho: heroína e crack não são muito viáveis em baladas e não são particularmente bem-vindas na maioria das festas, a não ser em certas partes do sul de Londres e Bristol. Também acho que alucinógenos pesados, como DMT e sálvia, não ajudam os anfitriões da festa a alcançar a “vibe” desejada. As pessoas também torcem o nariz para M-cat (ou mefedrona, para vocês, seus esnobes sem cultura), porque te deixa a) cheirando a mijo de gato e b) com muito tesão. É muito pouco “Romeu e Julieta” esse combo.

Yank: Vamos falar de dogging. As pessoas realmente transam tanto assim em público no Reino Unido?
Brit: Sim, na maioria das noites. Por volta das quatro da manhã, nas estradas que levam para os picos mais sujos e escuros da cidade, você vê filas de carros cheios de gente indo transar com qualquer coisa que achar lá, geralmente na esperança de acordar na segunda e descobrir que um vídeo seu viralizou no Facebook. Alguns clubes têm até serviço de shuttle com micro-ônibus. É só chegar no bar cinco minutos antes de tocarem o sino e pedir pro garçom um “ingresso para o bom e velho show de putaria”, fazendo uma pequena reverência e esfregando rua região genital com uma fatia de limão.

Foto por Jake Lewis.

Yank: Quão comum é o uso de drogas nos bares, clubes e estabelecimentos do tipo? Os seguranças pegam no pé? Eles expulsam quem eles encontram cheirando no banheiro?
Brit: Em termos de frequência, uso de drogas em público é rotina. A reação dos seguranças varia muito dependendo do tipo de lugar. Geralmente há uma correlação em quão “da moda” um clube ou bar é e quão relaxada a gerência vai ser com drogas. Falando no geral, quanto mais fresco e caro o lugar, mais fácil é cheirar uma carreira no banheiro. Pubs são totalmente diferentes, onde o oposto é mais verdade (é só ver os banheiros de todos os pubs num raio de 10 quilômetros de um estádio quando o time da casa joga).

Yank: Tem mais alguma coisa que a gente devia saber?
Brit: Ketamina é muito mais popular aqui do que nos EUA. Sei lá por quê.

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Tradução: Marina Schnoor