A primeira coisa que se faz notar em Rupert Sanders é a voz. O diretor do filme A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell, baseado no clássico de anime cyberpunk de 1995, discursa com uma cadência metódica. Quase nunca muda o tom. Dá para perceber quando ele fica frustrado — a fala acelera e o timbre sobe —, mas ele logo retoma o prumo como se nada tivesse acontecido.
O anime e o mangá de Ghost in the Shell, fontes de inspiração para o filme, exerceram enorme influência sobre a ficção científica e Hollywood nos últimos vintes anos (James Cameron e as irmãs Wachowski, criadoras de Matrix, são fãs assumidos). Contudo, apesar do apelo óbvio, “foi um martírio fazer acontecer”, disse Sanders, com uma leve bufada. “Não foi um mar de rosas.”
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Ele não se referia apenas ao financiamento necessário (mais de 100 milhões de dólares) ou à busca pelo elenco ideal. As alegações de whitewashing (termo emprestado dos Estados Unidos para se referir à prática de substituir personagens de etnias diversas por personagens brancos, americanos) perseguiram a produção desde o início; muitos fãs criticaram a escolha da atriz Scarlett Johansson no papel da ciborgue Major, líder de um esquadrão contra terrorismo cibernético. Mas Sanders, fã de Ghost in the Shell desde a faculdade, quando viu o anime pela primeira vez, décadas atrás, acredita que seu remake do longa icônico tem um alcance global digno da série.
Nada contra Scarlett Johansson. Inclusive, sou fã. Mas repudio pessoas brancas em papéis asiáticos.
Ele não tachou as controvérsias de bobagem, mas salientou: “Passei três semanas divulgando o filme em Paris, na Coreia e no Japão, e ninguém me questionou. A polêmica parece vir somente dos Estados Unidos.”
E acrescentou: “Somos todos liberais, e não imaginamos que seria uma controvérsia antes das pessoas verem o filme e saberem da história. É uma discussão sem sentido.”
Motherboard conversou com Sanders para saber mais do processo de criação por trás do remake, bem como o papel da tecnologia no novo universo de Ghost in the Shell.
Quando foi seu primeiro encontro com Ghost in the Shell ?
Vi o anime pela primeira vez quando estava na faculdade de artes. Assisti em VHS uns dois anos depois do lançamento. E aquele mundo mexeu comigo. Nunca tinha visto animações voltadas para o público adulto. Era um mundo futurístico muito bonito, como nada que eu tinha visto antes. Personagens doidões, sexualizados, filosóficos. Aquilo me assombrou, e foi a minha iniciação.
Você era fã de anime na época?
Para falar a verdade, não. Eu conhecia pouco, então passei a fuçar e ir atrás de outra coisas. A beleza do anime para o público adulto é que a imaginação dos criadores rompe barreiras. Eles não se deixam restringir pelos limites do que é possível. Desenham tudo que imaginam. O trabalho deles é vasto e, ao mesmo tempo, bem abstrato. Não precisam agradar um grande público. É relativamente mais barato fazer uma animação do que uma obra de carne e osso. Os criadores podem abordar diversos assuntos e dialogar com fãs de filosofia em obras muito menos voltadas para a audiência mainstream.
No nosso caso, por outro lado, o preço é alto, então é difícil fazer isso.
Quando você começou o trabalho, a equipe conhecia GITS ?
Variava. Trabalhei com muitos ilustradores. Várias pessoas que me ajudaram a criar e intelectualizar o filme conheciam o original, e por isso até estavam doidos para trabalhar no projeto. Alguns dos atores conheciam, outros não, mas todos tiveram a mesma sensação quando viram pela primeira vez. A primeira reação [costumava ser]: “Nossa, isso é incrível!”. E a segunda: “Como vamos fazer isso?”.
Você provavelmente estava com essa mesma questão em mente antes de topar dirigir o filme.
Sem dúvidas. Vários colegas de trabalho me aconselharam a não seguir em frente, diziam que eu estava maluco. Sinto que fiquei obcecado pela minha imaginação, pelas minhas ideias, e ficou cada vez mais difícil de abrir mão da perspectiva de fazer o filme. Pela segunda vez, Ghost in the Shell me assombrou.
Você comentou que não queria fazer um remake igualzinho ao anime, cena a cena. Foi uma decisão libertadora deixar a sua própria marca nesse universo?
Acho que eu não estava lá muito preocupado com liberdade artística. Em último caso, eu poderia ter usado apenas o título, mas era essa a minha ideia. Eu queria fazer parte do legado de Ghost in the Shell. Qual seria o propósito de fazer um filme Ghost in the Shell se não fosse Ghost in the Shell? Foi essa a minha proposta para Steven Spielberg [que havia comprado os direitos para a adaptação live-action]. Eu queria fazer algo com o espírito do anime, e enquanto fã do original, tinha coisas que eu achava indispensáveis, que eu queria mesmo traduzir para o cinema. Luta na água, cabeças de geishas em chamas, Major no tanque, Major saltando do telhado.
São cenas icônicas, e se não estivessem no filme, os fãs ficariam chateados, eu incluso. Estamos no mundo de Ghost in the Shell. Cabos por toda parte. No começo, as pessoas perguntavam: “Por que tantos cabos?”. Bom, é Ghost in the Shell, né. Se não tivesse cabos, não seria Ghost in the Shell. Vou respeitar a estética do original e encher tudo quanto é canto de cabos.
“Ninguém morreu de amores pela ideia de filmar Ghost in the Shell . É uma obra sombria.”
Outro dia, conversei com Finn Jones sobre participar de projetos como Punho de Ferro e Game of Thrones , que têm uma base de fãs fortíssima, e como ele curtiu o desafio. Você também pensou nisso?
Acho que foi uma questão, sim. No final das contas, senti que seria melhor deixar o filme nas mãos de um fã mesmo. Se for para ter medo das reações do público, acaba que você não faz arte. É preciso dar um salto, e acho que é preciso trabalhar em isolamento.
Foi um projeto difícil de tirar do papel. Ninguém morreu de amores pela ideia de filmar Ghost in the Shell. É uma obra sombria. É difícil avaliar o anime como um empreendimento comercial e dizer: “É isso! Vamos em frente!”. Foi um martírio fazer acontecer. Não foi um mar de rosas. Como eu era fã do material, sabia que seria capaz de canalizar o espírito de Ghost in the Shell e a essência desse mundo, e sabia também que precisaria alterar um pouco a história. Filosofia e introspecção são fios condutores do original, e a sinopse fica em segundo plano. Eu sabia que precisaria inverter isso. É um mundo bem complicado, e eu precisava atrair o público com uma sinopse familiar. Não poderia começar com questões de dualismo e reflexões sobre tecnologia, e todos esses subtextos de Ghost in the Shell. Não dá para levantar essa bandeira ou ninguém vai ao cinema.
[Mamoru] Oshii [diretor do anime original] foi muito legal comigo, desde o início. Ele disse para eu me libertar e não fazer nada só por fazer, que não precisava seguir o mundo dele à risca. Deixe-se inspirar por esse mundo, e crie a sua própria versão. Isso foi muito encorajador.
É difícil conseguir fazer filmes dessa magnitude, pois envolvem um investimento robusto. Mais os custos de produção e marketing, é mesmo um investimento e tanto. Acho que minha paixão pelo projeto foi o que o manteve vivo. Quase morreu na praia em determinados momentos. A Scarlett foi fundamental para conseguirmos seguir em frente. Sem ela, não teríamos feito o filme.
Você acha que foi mais interessante criar e dirigir o filme agora que as tecnologias concebidas no Ghost original estão mais próximas da realidade?
O mais doido do trabalho de [Masamune] Shirow [criador do mangá original] é que tratava de computadores interconectados em uma rede vasta, infinita, numa época em que as universidades americanas sequer se saudavam. Ele previu muitas coisas que ainda não existiam. Algumas ideias pareciam muito abstratas, mas agora fazemos parte de uma rede infinita. A obra se torna mais relativa.
Visto que a tecnologia já não é algo tão distante, você mudou a história de Ghost in the Shell a fim de debater questões atuais, pertinentes ao nosso mundo?
Acho que Ghost mostra que a tecnologia é onipresente. O que mais me interessa é a importância colossal dos dados e a confiança que damos ao armazenamento dos nossos dados. Confiamos demais no nosso iPhone. Qualquer pessoa que mexer no meu iPhone poderá saber tudo sobre mim. Onde costumo chamar o Uber, o que costumo comprar, onde costumo dormir, com quem costumo conversar ou trocar mensagens. Isso já é assustador o bastante. Agora imagina colocar um implante cerebral e tornar seus sonhos, memórias e medos acessíveis… A questão se agrava ainda mais, e esse aspecto da tecnologia preditiva me interessa bastante.
Nossos sonhos, medos e ansiedades deveriam mesmo ser acessíveis para o governo? Para as agências do governo? São dilemas assustadores, e muitos questionamentos presentes no filme envolvem tecnologia. O documentário sobe o Stuxnet [ Zero Days] foi estarrecedor. A ideia de um vírus arbitrário que pode destruir determinados sistemas é estarrecedora. A segurança dos nossos dados é uma questão tenebrosa. Hoje já desenvolvemos códigos e sistemas de inteligência artifical para situações de vida ou morte. Outro dia estava conversando com alguém sobre carros autônomos e os softwares que andam criando para esse campo, para que, caso um carro com um motorista esteja prestes a se chocar de frente com cinco passageiros, a colisão sacrifique o veículo com apenas um motorista em prol das outras cinco vidas. Idade é uma variável importante também — o motorista mais jovem tende a ser poupado. Tenho certeza de que outras variáveis vão acabar entrando em jogo: quem tem o carro mais caro, quem é mais valioso para a sociedade. Inteligências artificiais tomarão decisões assim em milésimos de segundo, logo antes de dois carros baterem numa rodovia. Não fizemos um filme sobre tecnologia apenas, mas é um tema que Ghost in the Shell traz à tona. Conceitos do tipo podem ser debatidos.
Fazer esse filme aprofundou a sua noção de tecnologia?
Na hora de criar máquinas mais inteligentes que nós mesmos, conferimos a elas características humanas para não nos assustarmos demais. O filme Ela explorou muito bem nossa percepção de robótica, e gosto muito da ideia de sistemas de tecnologia e inteligência artificial onipresentes, poderosos o bastante para definir o nosso destino, se precisam mesmo de nós ou não. Se for verdade mesmo que estamos destruindo o planeta que habitamos, talvez devam se livrar de nós. Se for verdade mesmo que estamos acabando com a infraestrutura da qual esses sistemas dependem, talvez tenham razão.
Quando vocês começaram a divulgar os trailers e cenas do filme, imaginaram que as pessoas por fim dariam mérito ao elenco?
Para falar a verdade, não. Para mim, a controvérsia… Olha, já refleti bastante sobre isso. Não estamos fazendo pouco caso. Optamos por Scarlett Johansson em um papel de um anime japonês, sim, mas um anime japonês que agora é um filme internacional. O próprio Oshii comentou que ela é um ciborgue de aparência humanoide, sem raça determinada, e que a Scarlett é mesmo a melhor atriz possível para interpretar Major. Foi um alento e tanto. Ela não está fazendo o papel de uma pessoa japonesa, ela está interpretando uma máquina humanoide, criada por uma corporação americana multinacional, no caso.
Acho que a Scarlett participou de mais projetos de ficção científica do que qualquer outro ator ou atriz do momento.
Ela encarna muito bem esse mundo. Ela tem um corpo atlético e um espírito indie. Não são muitas atrizes que ostentam um currículo digno de uma personagem complexa assim. O mundo é que escolheu a Scarlett. É ela que as pessoas querem ver nesse tipo de filme.
Você comentou que o filme quase morreu na praia em determinados momentos. A polêmica contribuiu para isso?
Não. Ninguém chamou [Martin] Scorsese na chincha quando ele estava filmando Os Infiltrados para perguntar: “Por que você não está trabalhando com atores asiáticos?”. Ele pegou um filme asiático e transformou em um filme americano, internacional. Temos um elenco diversificado. Temos atores da Síria, Zimbabwe, Fuji, Austrália, Dinamarca, Inglaterra e Estados Unidos.
Acho que, quando as pessoas assistirem, vão entender que é um filme internacional, com uma atriz global. Você precisa de uma Scarlett Johansson quando lança um filme na Rússia e em Tóquio.
Você vê o mundo de Ghost in the Shell como nosso futuro?
Eu diria que é um universo paralelo. Um mundo sem noção de tempo. Contudo, a tecnologia está ali para ilustrar temas atuais, e não para bradar ao mundo: “É assim que o mundo vai ficar em cinquenta anos”. Não é disso que o filme trata. O filme é uma versão abstrata de um futuro em que a humanidade é consumida pela tecnologia.
Jamais pretendemos criar um mundo realista. De certa forma, a ficção científica nos transporta para mundos em que não sabemos muito bem onde estamos. Essa é a beleza da ficção científica. À distância, é possível pinçar e desenvolver temas mais humanos.
Como você classificaria o filme, em um espectro entre utopia e distopia?
Para mim, é um mundo repleto de cor e beleza. Não é um deserto distópico. É um futuro funcional, colorido, radiante. Chega a ser eletrizante. Boa parte do filme se passa em cantos obscuros da cidade, esquinas esquecidas, uma zona industrial onde a indústria não opera mais. Ainda assim, certamente é mais colorido do que a maioria dos filmes de ficção científica.
Como fã do Ghost in the Shell original, você pensava em fazer o remake um dia?
[Risos] Não. Eu estava ocupado demais em raves, fumando maconha, para decidir se queria trabalhar mesmo na área um dia. Ainda estava absorvendo arte e cultura, referências que por fim canalizei na minha carreira. Muitas pessoas não têm repertório de vida. Só fui começar a fazer filmes aos 27 anos. Foram dez anos de indulgência antes, absorvendo arte, cultura e o mundo que procuro reproduzir no meu trabalho.
Tradução: Stephanie Fernandes