Bichas Cobardes, em defesa das manas oprimidas



Munido de capa de super-herói e de um discurso com críticas para dar e para vender, os Bichas Cobardes foram um daqueles grupos de meia dúzia de pessoas (duas mais activas) que, apesar do reduzido número de membros, já faz um estrilho sem fim. Na luta contra a homofobia e contra todas as outras fobias — intermináveis, por acaso —, não temem pôr a nu as incoerências de quem quer que seja, mesmo que para isso tenha que apontar o dedo e distribuir bullying por aí (fará algum sentido exigir que todos assumam as suas preferências sexuais?). Actualmente, o Bichas Cobardes aparece no mundo real de vez em quando, em marchas e contra-vigílias, estando presente, em força, no mundo virtual — tem um blogue e um programa de rádio. Caso sejas uma bicha cobarde, ou caso ainda não saibas que o és, tenta responder ao questionário final. Boa sorte.

VICE: Quando vos conheci, na última marcha LGBT, vocês iam mascarados de super-bichas corajosas. O que significa isso?
David Pinto:
Sim. Nós começamos a tradição em 2012 e este ano mantivemos isso. O nosso colectivo chama-se Bichas Cobardes, porque nós apontamos o dedo às pessoas que são LGBT mas que lutam contra os direitos e que estão sempre a dizer como é que as pessoas se devem comportar. Ou seja, o contrário disso são as pessoas que são visíveis, que lutam pelos seus direitos e que estão na rua a exigir justiça. As pessoas que vão à marcha são exactamente isso. São as pessoas que vão à marcha que, ao contrário das outras, são bichas corajosas. Portanto, fizemos as nossas capas de super-heróis para aplaudir as pessoas que saem à rua, que têm coragem, que têm orgulho e que fazem aquilo que deve ser feito, na nossa opinião.

Achas que as pessoas associam o traje à ideia?
Não sei, aquilo são só capas para usar. Do género, nós temos coragem, somos super-heróis… não é muito para além disso [risos].

Tudo bem. Vocês apresentam-se como um colectivo online. Ao certo, o que querem dizer com isso?
Não sei [risos]. É uma coisa que se usa para se designar algo que não se sabe bem o que é. Tudo começou comigo a escrever um blogue, mas entretanto não sou só eu. Temos um programa de rádio e agora somos dois a falar: eu e o Manuel. Temos uma página no Facebook, temos pessoas que nos mandam artigos, que falam connosco e comentam. Daí eu dizer que somos um grupo de pessoas que não estão organizadas, somos quase uma ideia que não está necessariamente materializada num número específico de pessoas.

Na vossa apresentação online falam da coragem e de cobardia queer. Como é que essas duas facetas se manifestam?
O melhor é partirmos as coisas em partes simples. Existem aqueles que lutam pelos direitos que são de todos, mas também existem aqueles que não o fazem e que destroem o trabalho dos outros. Quando vês alguma coisa a acontecer, se não paras e não levantas a voz, se não intervéns e não dizes que está errado, é isso que eu acho que é ser-se cobarde. Mais cobarde é quando alguém levanta a voz para ser contra os direitos dos outros. Alguém que é LGBT e é contra a adopção, ou por crenças interiorizadas de que as crianças precisam disto e aquilo. Enfim, existem muitas pessoas que se acham melhores do que as outras e que acham que devemos fingir que somos todos hétero e que não devemos andar na rua de mão dada para não chamar à atenção. Existem muitos gays que também acham isso…


Este é o David.

Sim, num dos flyers que pude ler na marcha vocês dizem-se em defesa “das manas oprimidas, homofóbicas, lesbofóbicas, transfóbicas, bifóbicas, estupidofóbicas”. A vossa linguagem parece propositada.
Acho que sim. A nossa ideia é chegarmos às pessoas que não se identificam com o activismo corrente. Que acham que é chato, que estão um bocado aborrecidas, que não concordam com muitas coisas, mas que não têm um sítio onde ir. A ideia é falar com as pessoas e levá-las até um activismo mais moderno, mais arriscado e mais divertido também. É daquelas coisas, “If I can’t dance, it’s not my revolution” [citação de Emma Goldman]. Nós não estamos à espera que as pessoas se dediquem a coisas sérias se forem aborrecidas. Podem ser sérias, divertidas e brincalhonas.

Têm alguns textos no vosso blogue, onde apontam o dedo a algumas pessoas que não assumem a sua homossexualidade publicamente. Achas que essa prática pode aproximar as pessoas e fazê-las assumir aquilo que não querem assumir?
Sim, às vezes quando abrimos os olhos ou apanhamos as pessoas pelos colarinhos é que percebemos que estamos a fazer coisas mesmo estúpidas. O caso do Cláudio Ramos era mesmo ridículo. Sobretudo porque essa pessoa andou durante tanto tempo a dizer que era contra o casamento homossexual e depois foi fazer uma cerimónia para vender alianças, enfim. É mesmo essa cena do capitalismo e do dinheiro, em oposição à cena da justiça e dos direitos. Mas acho que sim, devíamos ser mais frontais. Se olhares para a situação do país, vês pessoas a fazer merda (e há muita gente a fazer merda) que não são chamadas à responsabilidade.

Sim, vocês também não se inibem de criticar alguns dos movimento LGBT mais moderados e mais conhecidos, caso da Ilga ou da Ex-Aequo. Sentes que eles não estão a fazer o seu papel?
Acho que todos os movimentos têm direito a trabalhar da forma que querem, se isso não for directamente contra os princípios básicos daquilo que todos nós defendemos. A cena é que ninguém está cem por cento certo, e o que nós fazemos é mostrar aquilo que pode ser melhorado. Não é pormo-nos visivelmente contra ninguém (a menos que seja alguém incrivelmente estúpido e que mereça), mas mostrar que podemos ser activistas e errar. Dentro do activismo LGBT, as organizações estão de costas voltadas e nós queremos acabar com a bullshit. Queremos relembrar que existem assuntos profundamente graves dentro do nosso movimento — falo de homofobia e de transfobia internalizadas — que não estão a ser apontados.

Como se manifesta essa homofobia internalizada?
De várias formas. Por exemplo, pelo facto da cena LGBT ser liderada por homens (e aqui tem melhorado), o facto de nós falarmos pouco dos assuntos de transgéneros, o facto da marcha e do arraial acontecerem em dias diferentes. São tudo questões específicas e que não são necessariamente problemas das organizações, mas que são das pessoas LGBT, de uma comunidade que eu penso não estar ainda suficientemente educada. Nós queremos mudar a sociedade sem nos mudarmos a nós próprios. Existe muita falta de informação. A maior parte dos homens gays neste país é desinteressada, homofóbica e absolutamente contra o activismo e nós temos de chegar a eles primeiro.



No dia da marcha, falei com um estudante de Espanha que se estava a manifestar pela primeira vez e que me disse que, quer em Portugal como em Espanha, o mundo LGBT é capitalista, fechado, moderado e que valoriza o gay bem posicionado. Sentes que isso é potenciado por alguns destes movimentos que criticas?
Acho que essa crítica faz algum sentido. Respeito-a, mas é um bocado abstracta. Aquilo que nos move é ainda uma coisa mais básica, que é o facto de as pessoas não estarem informadas e de se manterem na ignorância. É sobretudo uma questão de cobardia — não quererem ser visíveis, não falarem com a família, deixarem a sua vida resolvida assim. A cena de sermos moderados faz sentido, mas isso é uma conversa muito mais complicada [risos].

Esse rapaz também me falava da ilusão do gay incluído no mundo do espectáculo, o gay da moda, das artes, crítico. Partilhas dessa opinião?
É exactamente isso. Nós esquecemo-nos de que desconstruir essa ideia base de que a orientação sexual e a expressão identitária de género não têm nada a ver. Por vezes, em vez de tentarmos dizer que as pessoas são todas diferentes e que temos ce as respeitar a todas, fazemos o contrário — agarramos num modelo de alguém que parece bem e dizemos: “Vês este gay? Este gay tem sucesso, é tão artístico, tão simpático.” É como quase como um animalzinho de estimação. Quando tens um gay menos convencional, normalmente diz-se: “Ah não, vamos esquecer que somos pessoas e esperar pela sociedade.”

Porque é que achas que, para o resto da sociedade e para uma parte de gays alheados destas questões, tem passado a ideia de que a comunidade gay está unida?
Acho que, em primeiro lugar, enquanto movimento LGBT, não nos estamos a conseguir organizar bem. Existe um trabalho muito visível da ILGA, às vezes em detrimento de qualquer outro.

O trabalho que tem sido feito no parlamento também tem tido os seus resultados.
Tem, tem. Claro que sim. Mas têm sido pouco visíveis. E depois também porque a sociedade está desinteressada. Continuam a achar ninguém tem tempo para falar de direitos humanos porque ninguém tem dinheiro. Neste momento se não falares de Economia as pessoas não te levam a sério.

Foi daí que veio da crítica, por parte das Panteras Rosa e não só, contra o capitalismo e contra a Troika?
Eu acho que sim. Hoje em dia usa-se muito a cena do capitalismo e do dinheiro para se ignorar que temos outros problemas. Mas é esta crise que está a acentuar os problemas sociais que nós temos e que as pessoas LGBT têm e que depois são despedidas mais facilmente e que têm menos apoio das famílias e assim. As coisas não estão desligadas.

Voltando às Bichas Cobardes, vocês agora têm um programa da rádio…
Tenho uma amiga que tem um programa na Rádio Zero que é o Clítoris da Razão. Ela convidou-me um dia, fui ao estúdio e aquilo despertou-me interesse. Falei com o Manuel e, como eu e ele nos rimos muito e somos divertidos, achámos por bem arrancar com a ideia, pôr umas cenas na net. Se as pessoas gostassem, gostavam. Se não gostassem, não gostavam. Mas as pessoas reagiram bem, por isso continuamos. Mas ainda está no início.

Fala-me sobre aquele genérico. Parece-me altamente.
O genérico, do qual muita gente gosta, é um sample de uma música dos The Knife, a “Waiting to Kill”. Uma vez tinha gravado uma espécie de um rap gay a gozar e tanto eu como o Manuel pensámos nesse rap, mas depois percebemos que precisávamos de uma coisa mais curta, mais divertida, sei lá. Fiquei orgulhoso.

Um dos primeiros textos que vocês apresentam no vosso blogue chama-se As cinco coisas que as Bichas Cobardes dizem para dormir menos mal à noite. Consegues escrever uma espécie texto de auto-ajuda ou um teste para determinar quem é uma Bicha Cobarde?
Nós já fizemos uma lista de perguntas para identificar Bichas Cobardes. Distribuímos isso na marcha. Serve?

Serve, claro. Obrigado, David.