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Falámos com humoristas portugueses sobre a estreia de Louis C.K. em Lisboa

Louis C.K.

Depois de ter sido apanhado pela onda #MeToo, quando se descobriu que não era só meio tarado sexual em cima do palco como também o era, especialmente, fora dele, Louis C.K. estreia-se esta semana em palcos portugueses. Com três actuações agendadas em Lisboa – para as quais os bilhetes esgotaram numa questão de minutos -, o masturbador mais hilariante do show bizz norte-americano está desde ontem, quinta-feira, 23 e até amanhã, sábado, 25, no Maxime Comedy Club.

As acusações de que C.K. pedia a mulheres, a maioria delas colegas de trabalho, para se masturbar à frente delas, foram expostas pelo New York Times em 2017. Essas acusações, que o comediante confirmou, vieram enroladas nos emaranhados de inúmeros outros escândalos alheios – a maioria bastante mais graves do ponto de vista predatório – e custaram a C.K. a distribuição de um filme, a posição de co-autor da série Better Things, o contrato com a HBO, que retirou toda a sua obra da plataforma e também com a Netflix. De um dia para o outro, Louie perdeu tudo o que tinha na sua tão ocupada agenda profissional e o Mundo ficou ao corrente da sua problemática falta de pudor, ou, em termos mais técnicos e americanos, sexual misconduct.

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Vê: “#MeToo: Mulheres, Homens e Trabalho


Desde aí que se tornou impossível falar dele sem mencionar a sua ruína e as acusações que a causaram. Todas as vezes que C.K. tentou voltar a pisar um palco foi chacinado nas redes sociais e em muitos media convencionais, tornando complicadas as tentativas de regresso à ribalta. O Mundo pediu a devida justiça e as mulheres levantaram-se, juntas, em protesto. Agora, cabe a Louis aprender a lição, deixar as mulheres em paz e tratá-las com o devido respeito, provavelmente tratar o fetiche pela masturbação com um profissional e, como não, penar para voltar ao pedestal onde estava sentado – pelos vistos de mão dentro das calças.

Mas, porque há sempre um mas e porque ninguém é perfeito, na minha humilde e talvez previsível opinião, é necessário separar a obra do artista. O humor, como descrito por Ricardo Araújo Pereira, é “uma vigarice operada sobre a linguagem, um ardil do pensamento”. Consiste, como explica Araújo Pereira nesse mesmo texto, na agilidade de olhar de várias perspectivas e conseguir ver o que mais ninguém viu, dentro da verdade convencional. E Louis C.K. nasceu com esta visão criticamente humorística do Mundo e com o talento de a explicar, quer goste de se masturbar em público, quer não. Ele está no topo da lista dos melhores comediantes do Planeta – para mim, logo atrás de Carlin e Gervais – e, por muito errada que seja a sua conduta, pela qual merece, absolutamente, pagar caro, o seu trabalho é brilhante.

Num stand up de 2013, intitulado “Oh My God”, C.K. tem um bit sobre como é uma loucura que as mulheres ainda aceitem ir em encontros com homens, visto que, estatisticamente, não há maior ameaça no Mundo para uma mulher que um homem. “Para a vida de um homem, o maior perigo, estatisticamente, são doenças cardiovasculares”, diz. Provavelmente, devido ao seu comportamento pouco próprio e na fronteira da ilegalidade, C.K. tinha maior conhecimento de causa ao dizer isto do que a sua audiência na altura poderia saber. Todavia, talvez por essa mesma razão, estivesse tão consciente da ameaça que um homem pode ser para uma mulher.

Seja como for, por muito errado que tenha sido o seu comportamento, a comédia é a comédia e não perdeu a graça. Aliás, por ser ele tão grandiosamente engraçado é que considero necessário separar a obra do artista e ver nos seus stand-ups e séries de comédia, como Louie ou Better Things, o requinte do pensamento crítico e a agilidade para nos fazer rir daquilo que sempre esteve à frente dos nossos olhos, mas que nós, simplesmente, nunca tínhamos conseguido ver.

Neste momento em que C.K. sobe pela primeira vez a um palco em Portugal para apresentar o seu stand-up, falei com dois humoristas portugueses – Guilherme Duarte, autor do blog “Por Falar Noutra Coisa” e um dos curadores do Maxime Comedy Club, e Luís Franco-Bastos – para tentar perceber qual é para eles a importância deste momento e como podemos continuar a consumir o trabalho do norte-americano, para além dos problemas pessoais em que se viu envolvido.

Guilherme Duarte

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Foto por Diogo Pereira.

VICE: Conseguir trazer o Louis C.K. a Portugal é um momento importante para o panorama da comédia nacional? Porquê?
Guilherme Duarte: Acho que sim. Não sei se terá impacto na comédia nacional em termos de mercado, mas do ponto de vista do público que aprecia stand-up é o acontecimento mais relevante. Talvez tenha repercussões, visto que pode convencer outros humoristas de renome internacional a virem a Portugal com mais frequência e colocar-nos no mapa das suas tours internacionais. Se isso acontecer, há sempre o impacto para a comédia nacional de cativar mais público para o stand-up, de educar mais o público sobre o processo de testar material e, posteriormente, apresentar solos. Também pode habituar o público a pagar bem por um espectáculo de stand-up, os preços praticados nos [espectáculos] solos portugueses são bastante baixos, mesmo se fizermos uma comparação face ao nível dos ordenados cá e lá fora.

Estão à espera de algum tipo de manifestação negativa por parte de algumas pessoas?
Vai depender, se as pessoas perceberem que podem ter views e cliques na Internet ao dizerem mal da vinda do C.K. a Portugal, haverá quem o faça. Duvido que haja manifestações à porta ou dentro do Maxime, por cá os activistas gostam mais de estar no sofá do que pagar 45 euros para ir lá dizer mal. Dito isto, percebo perfeitamente quem não se consiga rir com o C.K. depois de tudo o que aconteceu, é perfeitamente legítimo terem perdido a empatia por ele. Mas, quem manda é o público e pela velocidade a que os bilhetes foram vendidos, acho que isso diz que o público português acha que ele já cumpriu a pena pelas asneiras que fez.

Ele é uma das tuas influências como comediante?
Sim, é incontornável para qualquer humorista actual. Há 2/3 anos, era quase unânime que era o melhor humorista de stand-up da actualidade. A seguir ao George Carlin talvez fosse o meu preferido, não gostei tanto dos últimos especiais dele, mesmo antes do escândalo, mas continuavam a ser muito bons. Depois do Carlin foi dos meus principais contactos com a cena do stand-up internacional e dos que mais consumi. Ver a evolução dele e que andou durante anos com o mesmo texto sem ter sucesso nenhum e que depois conseguiu quebrar isso e começar a investir mais na escrita e a fazer o que o Carlin fazia, que era deitar fora o texto e começar de novo e ver a evolução da profundidade e da comicidade do que ia produzindo, é uma influência para qualquer um que está nisto da comédia.

Achas que há muita diferença entre os comediantes que já o eram antes da era da Internet e os que começaram depois?
Sim, acho que sim. Muitos dos que começaram na Internet talvez o tenham feito sem a menor das ambições, apenas por uma brincadeira que foi escalando, fazendo-o sem ganhar nada em troca durante muito tempo. Acho que o salto da Internet para os palcos é mais difícil, porque uma coisa é ter likes outra é que essas pessoas que dão o like levantem o rabo do sofá e pagem bilhete. Quem apareceu na televisão ou medias tradicionais já vinha com o carimbo de qualidade e talvez tenha sido mais fácil converter o público.

No entanto, também havia menos oportunidades. Agora, se fores bom e consistente, consegues ter o público sem dependeres de ninguém. Talvez quem venha da Internet seja mais livre no humor que faz, porque nunca teve ninguém a dizer-lhe sobre o que podia ou não escrever ou falar. Mas, acho que, com o tempo, essa distinção não se irá notar, pois todos os humoristas irão surgir da Internet, ou os que tinham surgido antes migrarão para ela, como já estão a fazer. Fora algumas excepções, acho que a melhor comédia hoje em Portugal está online, pelo menos os projectos mais inovadores e que arriscam mais, sem se preocuparem com as audiências.

A espera por este regresso aos palcos do Louis C.K. foi, para mim que sou fã, muito dura. E ainda não acabou. Achas que depois das acusações ele alguma vez conseguirá chegar ao nível em que estava?
Acho que ficará melhor. O que aconteceu só pode fazer com que ele trabalhe o dobro e se empenhe muito mais ainda a escrever os textos e piadas. Ele sabe que para o público o perdoar ele tem de ser melhor do que alguma vez foi e isso deve ser uma motivação extra. Depois, parecendo que não, é um tema que pode explorar. Vai ser difícil fazer piadas com o que aconteceu, mas espero que fale disso em palco e que o consiga fazer colocando-nos num sítio desconfortável. Foi isso que ele sempre fez como ninguém, é esperar que tenha realmente aprendido com os erros e que tudo isto tenha feito dele uma pessoa melhor e um humorista ainda melhor.

Luís Franco-Bastos

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Foto por Tomás Monteiro.

VICE: Vais ver o Louis C.K. ao vivo em lisboa? É uma das tuas referências, ou nem por isso
LFB: É, sem dúvida, uma das minhas referências. Já tive a oportunidade de o ver ao vivo em 2016, em Dublin, na tour que depois culminou no especial “2017” na Netflix (entretanto removido). Vou estar na Madeira com o meu espectáculo nessas datas e por isso não poderei vê-lo em Lisboa, com muita pena minha. Especialmente, porque tenho muita curiosidade de perceber o que ele tem a dizer em palco sobre as situações lamentáveis que vieram a público e sobre o impacto que isso teve na vida dele nos últimos tempos.

Achas que a vinda dele a Portugal é importante para o panorama da comédia nacional? Em que sentido?
Extremamente importante. Não só para uma maior divulgação e dinamização desta arte cá, para os humoristas portugueses e para o público português, mas também para que Portugal figure cada vez mais nas rotas das digressões europeias. Talvez no futuro já não seja preciso ir a Londres ou Dublin para ver o Louis C.K., o Ricky Gervais ou outros.

Depois das acusações e da confirmação de que não era só meio tarado em palco, mas também na vida real, achas que ele irá conseguir voltar ao nível em que estava? Ou há certas coisas que a opinião pública não perdoa e esta é uma delas?
Acho que a vida dele nunca mais será a mesma e que os episódios que vieram a público deixam uma marca impossível de apagar. Pelo menos, aos olhos de muita gente. Mas, também acredito que um grande número de pessoas mantém o interesse na sua vida profissional, porque ele não deixou de ser um dos melhores humoristas de todos os tempos – ainda que, evidentemente, tenha problemas e, possivelmente, alguma doença mental. Ele não deve ser posto no mesmo saco que um assassino ou um violador, como já li, mas o caso dele dá naturalmente que pensar e é lamentável. Outros artistas também tiveram comportamentos lamentáveis, desde Picasso a Michael Jackson e todos eles permanecem numa situação indefinida até hoje. Continuam ídolos? Já não valem nada? Valem só como artistas e isso não se apaga? É uma questão complexa e só o tempo poderá mostrar o que lhe vai acontecer.

Para mim, que sou fã de stand-up comedy, ter a oportunidade de ver um dos grandes ao vivo seria uma felicidade difícil de pôr em palavras. Como é a sensação para um humorista?
A sensação seria exactamente essa, aliás, foi. Em Dublin, quando ainda por cima pude vê-lo sem a nuvem negra que paira sobre ele neste momento, estava feliz como uma criança e foi muito enriquecedor a nível profissional. Essa memória, ainda livre de algumas verdades sobre ele que preferia que não fossem verdade, ninguém me tira. Agora, como já disse, estou curioso para ver de que forma ele tenta dar a volta. Abordar os nossos maiores erros e culpas em palco é dos exercícios mais interessantes que um humorista pode fazer. Aguardemos.


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