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“Black Mirror” volta a atacar: onde estão as fronteiras entre o mundo real e o virtual?

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Ontem, quarta-feira, 5 de Junho, Black Mirror regressou à Netflix em força, com uma nova temporada de apenas três episódios. Depois da experiência interactiva Bandersnatch, que foi tão aclamada quanto criticada, a série retorna sem vacilar na sua genialidade e deixa-nos, mais uma vez, de coração nas mãos e olhos pregados ao ecrã, chocados ao ver o desenrolar do nosso próprio futuro. Charlie Brooker tem o dom de interpretar ao pormenor as nossas vidas e para onde elas caminham, conseguindo montar cenários inventados que parecem não só plausíveis, como assustadoramente realistas e próximos. É capaz de pegar na nossa realidade e desenvolvê-la, com base nos rápidos avanços tecnológicos e previsões científicas futuras e criar um novo entorno. Brooker pensa em cada detalhe – tudo aquilo que muda traz consigo mais mudança.

Quando se altera um paradigma, tudo o resto se acomoda ao seu redor, para que as peças possam encaixar. Por exemplo, no episódio Nosedive, se toda a gente é classificada a toda a hora, então a maneira de estar em público tem também que mudar – acabam-se as discussões, as queixas, os palavrões. Ou no episódio The Entire History of You, em que a premissa da história assenta na tecnologia capaz de guardar todas as nossas memórias para que possam ser revisitadas quando quisermos (o que poderia soar bastante tentador e romântico num anúncio de televisão ao produto), isso levará a que também a polícia, o estado ou qualquer segurança queira ter-lhes acesso, para as rever como medida de segurança (a desculpa da segurança já é usada nos dias de hoje).

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Vê o primeiro episódio de “Mister Tachyon”


Também as podes mostrar aos teus amigos ou namorados – de que serve guardar as memórias se não as podes partilhar, vivemos na era do share – o que leva, como não, a que se tornem objecto de obsessão para namorados ciumentos, como mostra o episódio. E, quando dás por ti, as tuas memórias deixaram de ser tuas, de serem privadas e românticas, para passarem a ser uma mera documentação cronológica da tua vida, desprovidas de qualquer emoção. Porque o segredo da realidade é que não é o factual que conta, mas sim como cada um de nós a vê. De um só jantar, de uma mesma conversa, duas pessoas podem retirar duas experiências e conclusões completamente diferentes. Podem sentir coisas até opostas. O que verdadeiramente importa não é o que te aconteceu, mas sim o que isso te fez sentir e a interpretação dessa situação que levaste contigo pela vida fora. É aí que reside toda a magia.

O primeiro episódio desta nova temporada, Striking Vipers, é exactamente sobre isso: a realidade. Quando metade do que vivemos é virtual, as fronteiras entre os dois mundos são difíceis de situar. Haverá sequer fronteiras? O que se passa online será menos real do que o que nos acontece no mundo real? Um amigo que conhecemos numa rede social, com quem falamos todos os dias, é menos nosso amigo do que um que conhecemos na escola? Uma pessoa que passe todos os dias a jogar videojogos, nos quais conversa e conecta com pessoas de todo o Planeta, tem uma vida menos “populada” que alguém que passe as tardes em cafés com amigos a beber cervejas?

Se deixares comentários negativos em metade dos posts que vês, isso faz de ti pior pessoa também quando o computador está desligado? Quando fazes alguma coisa errada online, passas a ser má pessoa na vida real? E, claro, a questão já muito debatida: numa relação monogâmica, o sexo virtual é traição até se for com bonecas virtuais, ou é qualificado apenas como pornografia em RV?

São muitas perguntas para poucas respostas concretas. Porque a dualidade é paralisante – se assumirmos que não há fronteira e que o que se passa online é na mesma feito por nós e, portanto, passível de ser julgado como se do nosso eu de pele e osso se tratasse, então estamos a abrir as portas de uma caixa de pandora que nenhum de nós sabe no que vai dar. Estamos a deixar o mundo virtual entrar no nosso e acasalar com ele, sem sabermos de que forma isso pode vir a alterar a sociedade e a nossa maneira de a viver. Mas, se decidirmos que algum tipo de fronteira há, que eu pinar um boneco de um jogo de realidade virtual não significa que fosse capaz de pinar o jogador de carne e osso por detrás dele, nesse caso estamos a assumir que, quando escondidos atrás de ecrãs, quando confrontados com cenários que interpretamos como menos reais, não somos mais nós próprios, nem menos nós próprios – somos outra versão de nós mesmos. Um hater online não tem porque ser um hater na vida real, que saltita pelos corredores do trabalho a insultar a roupa dos colegas.

E assim sendo, amigos e amigas, quando criámos as redes sociais, os videojogos hiper realistas, as novas tecnologias do dia-a-dia; quando juntámos as máquinas ao social e ao user friendly, não estávamos só a fazer equipamentos e a brincar com mundos alternativos construídos a partir de código – estávamos a brincar com o fogo. A mudar-nos a nós mesmos sem consciência de que o estávamos a fazer. E agora, quem é que sabe o que é real e o que não? Aliás, será que isso interessa, sequer?

Não vamos parar por aqui, Charlie Brooker tem razão. Vamos inventar mais e mais, cada vez mais realisticamente virtual. O caminho vai ser cada vez mais difícil de categorizar e entender, até sermos escravos das nossas próprias invenções, até que as nossas personalidades sejam o que delas provém e não ao contrário. Até que, aí sim, deixe de interessar em qual dos dois mundos certa coisa aconteceu. Já não seremos uma só pessoa, mas teremos em nós a infinitude de personalidades que a infinitude do universo online nos permita ter, sedentos de necessidades que nunca antes tinham sido necessárias, com pressa de chegar onde nunca soubemos que queríamos ir.

Em Striking Vipers, as premissas são várias. Fala-se do aborrecimento de uma vida monogâmica, tão pouco natural ao ser humano e tão complicada de manter – especialmente num mundo com tanto entretenimento à distancia de um só clique, sem levantar o rabo do sofá, enquanto aquecemos o biberão ou depois de pormos o puto a dormir. Da infidelidade e o que é que, afinal, se qualifica como tal – a partir de que momento é que o que se passa num jogo, entra para o mundo real? Da dificuldade em manter o sexo espontâneo e interessante ao fim de uma vida casados.

Põe-se também uma lupa sobre a orientação sexual – sou heterossexual e gosto de mulheres, mas se um homem está num corpo de mulher, fala como mulher, tem toque de mulher e fode como uma mulher, isso faz de mim gay? O sexo, afinal, reage ao físico, endurece perante um corpo que nos agrada, independentemente de quem lá esteja dentro.


Vê o primeiro episódio da segunda temporada de “Slutever”


Entram também em jogo (trocadilho propositado) as experiências incríveis que só a tecnologia nos pode dar, porque só a tecnologia é capaz de desafiar as leis da Natureza e esbater as barreiras da impossibilidade, como descobrir o que é fazer sexo num outro corpo – um homem a quem a Realidade Virtual lhe dá a oportunidade de sentir o que é ter um orgasmo feminino, senti-lo como se ele próprio fosse mulher. Um homem que se vicia nessa sensação, que descobre que o sexo é melhor para as mulheres que para os homens, “como se um fosse apenas um instrumento e o outro a orquestra inteira” e não consegue mais voltar atrás, porque agora tudo o resto, o seu próprio corpo, lhe sabe a pouco.

O episódio é sobre relações – amorosas e amizades duradouras -, mas também sobre as relações fiéis entre dois jogadores de um jogo online que se encontram todos os dias, religiosamente, à mesma hora, numa realidade paralela onde são a melhor versão de si mesmos, onde são tudo aquilo que sempre quiseram ser. É também sobre sexualidade e o fluída que a orientação sexual verdadeiramente é, pelo peso que a aparência física tem nela. É também, claro, sobre a crescente tecnologia, que corre a mil e não espera por ninguém. Que nos abre portas e janelas a experiências que julgávamos impossíveis de viver, da mais aparentemente simples à mais profundamente complexa.

Mas, ao mesmo tempo, não é sobre nenhuma destas coisas. É pura e simplesmente sobre nós, seres humanos. Sobre a rapidez com que nos habituamos a novas realidades, com que nos moldamos e acomodamos, para encaixar neste mundo que vamos criando e inventando para nós próprios, sem ponta de ideia de para onde nos leva.


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