Na série HEARTBREAKERS, revemos os hits lacrimosos das pistas que tornam a sua noite especial, seja no pico do seu brilho ou no platô. A música eletrônica tem o poder de partir corações, e esta é uma homenagem a essas faixas.
Esta edição mostra uma escolha comovente do Martin Clark, cujo blog, o duradouro Blackdown, tem tido um papel fundamental na documentação da cena dubstep desde o seu início. Na sua participação na série, Clark relembra um momento tocante que testemunhou no funeral do vocalista e poeta Stephen Gordon, o Spaceape.
Videos by VICE
Realizado em outubro, o funeral do Spaceape me deixou com dois pensamentos inabaláveis. Primeiro, que não é suficiente aproveitar a vida, você precisa aproveitá-la com toda a intensidade – da mesma forma que o Spaceape soltava suas rimas. Nunca pareceu tão importante prestar atenção nisso. O segundo pensamento foi a ideia do Jerry Dammers, do The Specials, apresentada por ele no seu elogio fúnebre, de que é responsabilidade de todos nós garantir que o legado musical do Spaceape ganhe o enorme reconhecimento que merece.
É no espírito desse pensamento que quero descrever um breve instante do funeral; um dos acontecimentos mais sutis, mas mais deslumbrantes que já testemunhei. Espero que esteja claro que faço isso de maneira respeitosa.
Embora eu tenha amado o som do Spaceape desde que ouvi “Sine of the Dub”, não conheço muito o lovers rock como gênero além de que ele pertence ao reggae ou é associado a ele. Embora seja apenas um subgênero, ele é vasto e diverso ao ponto de ser possível passar uma vida inteira escutando-o. Então aquela faixa de lovers rock, “Black Pride”, era completamente nova para mim quando foi tocada no funeral entre as reflexões e os elogios.
Fico hesitante em me alongar demais, mas como admirador da música do Spaceape, achei a ocasião incrivelmente tocante. Chorei em silêncio por longos períodos, enquanto absorvia os tristes, mas também muitas vezes engraçados e carinhosos tributos ao Spaceape, tanto como pessoa quanto como músico. Não consigo me lembrar da última vez que chorei desse jeito, podem ter se passado décadas desde que chorei assim em público.
O momento sobre o qual quero refletir aqui não foi triste. Foi absolutamente inesquecível. Os primeiros dez segundos de “Black Pride” começaram com um piano meio deslocado com delay e o grito abafado da vocalista Caron Wheeler de “ah, yeah” – adequadamente agridoce para um momento da Hyperdub. Depois Wheeler cantou a primeira frase, apoiada pelo ritmo one drop.
“Black is the colour/of my skin…”
(Em tradução livre, “Negra é a cor / da minha pele”.)
Então a coisa mais eletrizante aconteceu, de uma forma que nunca vi antes e não espero ver de novo. Discretamente, de forma bastante espontânea, as vozes das mulheres de toda a congregação começaram a juntar-se à dela. Pouco mais altas do que a música e a conversa de fundo, os seus tons em uníssono circularam as cadeiras e piscaram entre os corredores. O sol de outono entrou pelas janelas. Nunca na vida testemunhei ou senti algo tão mágico.
Se você reduzisse as formas de arte aos seus componentes mais básicos, a maioria delas provavelmente manteria de alguma forma a intenção de emocionar. A vida moderna é cheia de formas de arte que se utilizam de processos e fazem esforços extraordinários para conseguir à força momentos “mágicos”. Parece quase desrespeitoso à ocasião listar esses contraexemplos, mas todos nós já experimentamos essas construções artísticas fabricadas em diversos tipos de arte e mídias.
Mas o que foi tão tocante neste momento furtivo não foi só a maneira como as vozes cantavam com ternura, mas também o fato de ele ter sido realmente espontâneo de um jeito que é muito raro. Só aconteceu: uma convergência simultânea de um impulso involuntário, um momento cintilante em tributo ao Spaceape. Então acabou.
Fui para casa esgotado, mas feliz pelos seus amigos íntimos e pela sua família que tanta gente tenha ido celebrar a vida dele. Naquela noite entrei no Discogs, achei uma cópia de “Black Pride” e a comprei imediatamente. Então soube que a Caron também foi vocalista do Soul II Soul depois. O vinil serve para me lembrar tanto daquele dia quanto do Spaceape e do pensamento que, sem intensidade, a vida pode ser desperdiçada.
A pele do Spaceape era negra também, mas a música dele falava a todos nós. Ele falava com firmeza, evocava um imaginário vibrante, e sim, o fazia com intensidade. Baseadas numa postura inabalável, olho no olho do furacão, muitas das letras dele eram enigmáticas, e eu acredito firmemente que ele ainda vai se provar mais profético do que podemos entender agora. Do que eu ainda não tenho certeza é se ele será celebrado o suficiente. Acho que a responsabilidade sobre isso agora é de todos nós.
O último EP do Kode9 com o Spaceape, Killing Season, foi lançado em outubro.
Keysound Recordings presents… Certified Connections também já está à venda.
Tradução: Fernanda Botta