Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma VICE News.
Em Maio de 1993, na periferia do Aeroporto de Guadalajara, no México, o Cardeal Juan Jesús Posadas Ocampo estava sentado no seu Mercury Grand Marquis branco estacionado, quando três veículos com homens armados pararam ao seu lado e dispararam. O carro do Cardeal levou com 26 impactos de bala e, segundo consta, um veículo que estava ao seu lado apanhou com outros 20.
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O Cardeal Posadas, o motorista e outros cinco homens foram encontrados sem vida. O assassinato de um dos dois cardeais católicos mexicanos da altura é um claro exemplo da complexidade das relações entre o Vaticano e os cartéis mexicanos. Posadas era um crítico dos grupos e da violência que utilizam para controlar a economia do narcotráfico no país. Ainda que o governo tenha declarado que a sua morte tenha sido fruto de uma confusão com outra pessoa, muitos continuam a acreditar que o assassinato foi deliberado, com a intenção óbvia de o calar. E é importante não esquecer que o Cardeal tinha vestida a batina eclesiástica.
Desde a morte de Posadas, e sobretudo durante a última década, a Igreja manteve relações hierárquicas com os cartéis ao condená-los em público e ao relacionar-se com eles em privado. O Papa Francisco falou dessa dinâmica tensa durante a sua recente visita ao México. No sermão que proferiu em Morelia, uma cidade assolada pela violência, exortou os bispos, os sacerdotes, as freiras e os seminaristas a não se renderem perante a ameaça dos cartéis da zona.
“Que tentação pode vir de ambientes muitas vezes dominados pela violência, pela corrupção, pelo tráfico de drogas, pelo desprezo pela dignidade da pessoa, pela indiferença perante o sofrimento e a precariedade?”, perguntou, antes de ele próprio responder. “A resignação? A resignação paralisa-nos, atemoriza-nos e prende-nos nas nossas sacristias”.
Essa suposta resignação atormenta há muito tempo a Igreja Católica mexicana e ainda que o Papa Francisco o tenha nomeado directamente, nenhum debate sobre a relação entre os narcos e a igreja estaria completo sem mencionar o dinheiro que os cartéis oferecem para financiar obras públicas e outras actividades eclesiásticas. A influência dos cartéis na Igreja foi condenada pelo Papa Benedicto XVI em 2005, pouco depois de começar o seu papado, mas desde então parece que o ênfase do Vaticano no problema se desvaneceu.
Em 2010 aconteceu um pequeno escândalo quando foi revelado que uma Igreja com uma cruz de metal de quase 20 metros, num bairro da cidade de Pachuca, tinha uma placa de agradecimento a Heriberto Lazcano, presumível líder do cartel Los Zetas. Como resultado, a igreja começou a ser mais cuidadosa com os benefícios dos narcos, segundo uma informação publicada em 2011 pelo New York Times.
Pode ser difícil resistir ao dinheiro e à ajuda dos cartéis, principalmente quando há sequestradores e assassinos infiltrados. Tomemos como exemplo o caso, também com o cartel Los Zetas envolvido, do sacerdote norte-americano Robert Coogan, que dirigia uma capela numa prisão do México. Segundo um artigo de 2012 do The Guardian, quando os prisioneiros Zetas se ofereceram para pintar a capela, Coogan disse-lhes que não porque as infiltrações que existiam arruinariam a pintura. Os presos não só pintaram, como impermeabilizaram o edifício. “Causar um alvoroço sobre isto poderia ter provocado represálias por parte de outros presos”.
Hoje em dia é muito complicado ser uma figura religiosa numa região onde os cartéis têm tanto poder e influência. O México ultrapassou a Colômbia como o país mais perigoso para se ser padre, segundo diz o Centro de Meios Católicos. Depois de se pronunciar contra os cartéis, um sacerdote chamado Gregorio López recebeu tantas ameaças de morte que começou a usar uma batina anti-balas durante as missas.
O Papa Francisco também se dirigiu aos mexicanos durante a sua viagem e advertiu-os do seguinte: “Não permitam que o materialismo mais banal vos corrompa e não se deixem levar pela sedutora ilusão de fechar acordos por debaixo da mesa”. Instou as pessoas a que não se deixem iludir pela busca de dinheiro fácil, poder e fama. “são tentações que só vos vão destruir”.
O Papa reconhece claramente que os oprimidos são particularmente vulneráveis à tentação de cometer crimes violentos com a esperança de melhorar as suas vidas. “Em toda a América Latina e Caribe há uma grande divisão entre ricos e pobres”, salienta Henry Louis Taylor Jr., director do Centro de Estudos Urbanos da Universidade de Buffalo, numa entrevista à VICE. “No México e em outros lugares, a economia não produz empregos suficientes para que as pessoas sobrevivam . A maioria vê-se forçada a trabalhar na economia informal ou clandestina. Nesses países, a corrupção e os subornos são parte da cultura e da vida diária”.
Taylor Jr. acredita que não é possível travar a violência em sítios como Michoacán sem que se mude radicalmente a economia e se ofereçam alternativas. “Não acredito que as autoridades estejam dispostas a fazer isto em lugares onde os cartéis estão tão enraizados”. Há um par de anos surgiram grupos de auto-defesa que pareciam fazer frente aos cartéis , até que começaram a chegar os infiltrados, como se testemunha no documentário “Cartel Land”, nomeado a um Óscar e que a VICE ajudou a distribuir.
“O Papa deu voz à opinião de muitos mexcanos”, diz Matthew Heineman, realizador de “Cartel Land” em entrevista à VICE. “Mas a tragédia é que a sua opinião e a sua esperança na ordem e na segurança foram ignoradas durante muito tempo pelo mesmo governo que permitiu que os cartéis operem desde há muito com impunidade, o que resulta num circulo vicioso que afecta muita gente”.
Alguns acreditam que a Igreja Católica deve actuar mais, como por exemplo excomungar os que se associam a membros de cartéis. Afinal de contas, em 2014, o Papa Francisco foi ao Sul da Itália e excomungou membros da Máfia. “A hierarquia da igreja no México tem sido branda no que respeita aos narcotraficantes, mas isso poderia mudar”, assegura o investigador religioso Elio Masferrer à revista Time, numa entrevista concedida em Fevereiro. “A excomungação poderia ter um impacto significativo”.
Pode dizer-se que os cartéis mexicanos são muito mais poderosos – ou, pelo menos, mais descarados – que a mafia italiana em 2016. Mas não é de somenos que a figura superior da Igreja, um homem que inspira respeito nas cidades afectadas pela violência do narcotráfico, fale abertamente e com contundência sobre os cartéis criminosos.
Houve uma altura em que o Papa Francisco chamou aos narcos “traficantes da morte”. Ainda falta perceber se o novo Papa e um governo que conseguiu voltar a capturar El Chapo, líder do cartel de Sinaloa, podem efectivamente estabelecer uma distância real entre as questões espirituais e o dinheiro do tráfico que está a causar danos substanciais em toda a América Latina.
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