O fotógrafo Brian Cross tem um olhar único para o rap dos EUA

Atualmente, a popularidade quase onipresente do rap em partes obscurece sua ascensão conturbada: todas aquelas décadas em que grande parte da sociedade tratava o gênero como uma efeméride, uma espécie de arte menor, ou ainda, como música “perigosa” feita por gente perigosa. As carreiras de muitos rappers inovadores que perserveraram apesar das críticas e até mesmo tentativas de intervenção por parte das autoridades foram muito bem documentadas, mas os jornalistas, fotógrafos, documentaristas e acadêmicos que de forma cuidadosa e apaixonada cobriram estes momentos em tempo real (não em retrospecto), numa época em que rolava pouca grana e muitos riscos (pessoais, profissionais e sabe se lá mais o que) muitas vezes são jogados para escanteio, seus nomes citados em anexos e créditos finais.

O fotógrafo, diretor, autor e professor Brian Cross, também conhecido como B+, merece todos os louros possíveis por seu trabalho como jornalista, inclusive na fotografia. Por anos, quem manja mesmo do rolê respeita e enaltece o trampo fotográfico do cara, bem como suas capas icônicas para o gênero (tais como Soul on Ice de Ras Kass, Endtroducing de DJ Shadow, Quality Control do Jurassic 5). Com uma carreira que abrange cerca de um quarto de século, parece até esquisito que ninguém ainda havia reunido pelo menos uma parte de seu trabalho em uma única obra disponibilizada para o público. No final de 2017, o pessoal da UT Press atendeu ao chamado e lançou Ghost Notes: Music of the Unplayed .

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Contando com ensaios emocionados e incisivos de grandes estudiosos do rap como Jeff Chang ( Can’t Stop Won’t Stop), Greg Tate ( Flyboy 2: The Greg Tate Reader) e Dave Tompkins ( How to Wreck a Nice Beach: A Vocoder from World War II to Hip-Hop), Ghost Notes conta com mais de 200 fotos de Cross. No papel de um ensaio fotográfico que percorre sua carreira, viagens e a própria história do rap, temos fotos de locais tão díspares quanto Los Angeles, Cairo, no Egito e Kingston, na Jamaica. As conexões entre cada imagem — visual, aural, histórica ou o qualquer outra que seja — podem não ficar claras em uma primeira observação, mas nada disso reduz seu impacto e importância. Ghost Notes, como a maior parte do trabalho de Cross, é essencial para qualquer um que se considere apreciador de rap.

DJ Quik

Nascido e criado em Limerick, Irlanda, Cross pirou no rap ao ouvir Schooly D e Public Enemy no final dos anos 80, após se formar como artista plástico pelo National College of Art and Design de Dublin em 1989, Cross se mudou para um pequeno apartamento em North Hollywood e estudou fotografia no California Institute of the Arts.

Em 1993, enquanto estudava na CalArts, Cross publicou It’s Not About a Salary, obra pioneira de etnomusicologia, com uma introdução criteriosa sobre a linhagem musical e intelectual do rap, explorando os estilos, personalidades e mensagens sociopolíticas da então crescente cena rap de Los Angeles. A seguir, uma ampla coletânea de entrevistas pontuadas por fotos em preto-e-branco de tom intimista e cru. Séries de conversas e fotos com nomes que vão dos Watts Prophets a Toddy Tee e Dr. Dre, Eazy-E, Ice Cube, Cypress Hill e Freestyle Fellowship, It’s Not About a Salary é um registro essencial de uma época, lugar e cena parcamente documentados. Por mais que o livro tenha esgotado há tempos, é possível encontrar cópias na internet a preços exorbitantes.

Ao longo dos anos passados após a publicação de It’s Not About a Salary, Cross trabalhou como editor de fotografia em revistas como Rap Pages e Wax Poetics, fundou uma produtora (Mochila) ao lado do renomado fotógrafo Eric Coleman (responsável pela capa de Madvillainy), dirigiu clipes e um documentário (Brasilintime: Batucada com Discos), assumiu o posto de professor de fotografia na UC San Diego, constituiu família e seguiu seu trabalho como um dos mais aclamados fotógrafos da indústria.

Fugees

No começo do ano, pouco antes de Cross sair de LA para um trabalho em Jackson, Mississippi, o visitei em sua casa em Glassell Park para batermos um papo. Alto e de ombros largos, sua forma física formidável batia mais com a imagem de um lançador aposentado do que um acadêmico com interesse em arte. Tão gentil quanto espontâneo, Cross topou discutir praticamente qualquer assunto sem nenhum preparo prévio, o que significa que pouca coisa ficou de fora, incluindo sua queda por palavrões (a qual ele afirma ser culpa do sangue irlandês). O que segue abaixo são alguns dos pensamentos de Cross sobre várias das fotos em Ghost Notes, sua carreira, o estado do rap nos anos 90, sua opinião sobre o momento vivido pela fotografia na em tempos de Instagram e o finado Ganjah K. Dá pra sentir a dedicação e sinceridade aplicados em seu trabalho através de cada palavra.

Noisey: Você acha que o Instagram mudou a prática fotográfica?
Brian Cross: Certamente houve uma mudança na prática. Odiaria encarar apenas como algo ruim, eu sou professor e tenho que lidar com millennials toda semana, porra. Por mais diferente que sejam, alguns dos caras mais comprometidos, sensíveis e sérios que já vi, são gente assim.

Lembro de ser aquele cara que mergulhou fundo no hip-hop no final dos anos 80 e começo dos 90 só pra um monte de músico velho chato encher o saco por não entenderem ou reconhecerem as mudanças ao seu redor. Não quero ser esse cara, não mesmo, isso não é certo, não é disso que se trata.

Dungeon Family

Creio que você já tinha criado o título Ghost Notes há algum tempo. Quando foi a primeira vez que o usou?
A primeira vez foi numa exposição na New Image Art em 1998 ou 1999… Eu pegava todas as fotos que não seriam usadas em um trabalho e socava tudo em envelopes, criando pequenas coleções do que poderíamos chamar de lados-B. Tinha um monte dessas, cada um com uns títulos esquisitos… Pegava todas essas fotos e tentava organizá-las de alguma forma, crente de que havia alguma relação análoga entre criar batidas, improvisar rimas e tirar fotos.

Foi mais ou menos nessa época que o pessoal da Numark me mostrou um vídeo educativo de bateria de Bernard Purdie e ele falava das notas-fantasmas (ghost notes) e alguma coisa na forma como as duas palavras juntas soavam me tocou, daí comecei a entender melhor que essas notas eram, esses sons não-intencionais que acabam dando personalidade a um ritmo… É raro, mas por vezes um título pode te ajudar a compreender algo melhor antes de ter aquilo pronto.

Ghost Notes cover

Como rolou a foto da capa? Onde foi feita e quem está ali? Como ela se tornou a capa do livro?
Eu estava dirigindo pela Jamaica rumo à Nine Mile,onde Bob Marley nasceu. O agente de tours de Damian Marley estava me levando para fotografar um artista que fazia parte do grupo deles, estávamos em algum lugar no meio do nada, não tinha estrada, nada e onde quer que eu olhasse tinham uns caras montando uma porra dum sound system, pedi pra pararem, estacionamos e o agente lá foi perguntar se podíamos fazer uma foto, eu estava bem atrás dele. “Sem caô, cara. Faz o que for preciso”, responderam, bati umas quatro fotos e entrei no carro de novo.

Não pensei direito no que rolou até ver as fotos e pensar “Isso aqui diz exatamente o que quero para essa parte do livro”. O prelúdio do livro é meio que uma história condensada do hip-hop em 12 fotos, mas na hora de escolher uma capa, não sabíamos bem o que fazer e essa acabou sendo uma das sugestões. Na real eu preferia outra imagem, então fiz o que sempre faço – colei nos meus amigos e mostrei as opções. Todo mundo pirou nessa e eu saquei que era isso aí.

Quais foram as piores críticas ao rap que você lembra de ter lido nos anos 90?
Uma das paradas que mais me deixou puto foi quando R.J Smith escreveu no LA Weekly que Death Certificate era o “mais perigoso disco já criado”. Não acho que tenha porra nenhuma de perigoso ali. Perigosas eram as merdas todas que rolavam na época, como o que rolou quatro meses depois quando a cidade toda pegou fogo. Ter escrito aquilo foi um fracasso completo em termos do que deveria ser a crítica musical, do que um trabalho cultural deveria ser. Foi um fracasso em termos de representação, um fracasso de empatia. Não faço ideia se RJ se arrepende daquilo.

Desde aqueles tempos sempre admirei Cube, tem algo na forma como ele compõe. Como artista, ele é uma figura interessante, meio Bowie, um daqueles caras que se inspira muito em que está ao seu redor, e acaba se tornando eles de alguam forma. Mack 10, The Bomb Squad – teve uma época que ele soava como Das Efx. Há outros rappers que não são assim, que são uma coisa só e pronto, mas Cube sempre teve esse charme, era desconcertante. Foi a primeira vez que entendi qual que era a dos liberais do West Side, o que o LA Weekly representava na época: a incapacidade daqueles caras de entenderem o que acontecia… Tínhamos isso na Irlanda, mas não havia reconhecido aqui ainda. Foi perturbador, mais do que Tipper Gore ou qualquer outra coisa do tipo.

Xhibit

Como você foi parar no set de filmagem de “Paparazzi” do Xzibit?
Estava fazendo as fotos do At the Speed of Life e me disseram que iam filmar um clipe em San Francisco, geral tava dirigindo até lá e eu me senti meio aventureiro… Fui com minha namorada da época e nos hospedamos num hotel. Não recebi nada, mas fiz aquela foto, uma daquelas que caso você pedisse uma foto do Xzibit daquela época, acabaria te dando uma da sessão de fotos da capa e dos rolês com ele pelo centro, mas de alguma forma, em meio ao conjunto de fotos, aquela funcionava muito mais. É assim que é com muitas dessas fotografias: é como um ensaio, há ligações legítimas entre estas fotos e como elas se organizam. Poucos se aprofundam tanto, mas tudo bem, há quem se aprofunde e quem não.

Com a orquestra rolando e tudo mais, devia ter um orçamento razoável para At the Speed of Life . Ouso dizer que é um disco subestimado do catálogo de Xzibit.
Xzibit é um cara gente fina demais. Deixa eu te falar: nunca curti o Steve Rifkind, sempre achei que fosse um cara branco privilegiado, esses porras não queriam me pagar [pelas fotos de Xzibit]. Foi a segunda ou terceira vez que me passaram a perna, desesperados para entregar o disco, o próprio Xzibit incluso, que se via na mesma situação. Deviam grana pra ele quando o disco foi entregue. O bicho veio na minha casa e disse “Eu vou conseguir a porra do dinheiro. Precisamos dessas porras de fotos hoje”. E eu respondi “Você veio até aqui, você é um ser humano decente e está lidando com isso de maneira legítima. Você não está evitando minhas ligações. Vamos resolver isso”. Depois dessa situação, passei a encará-lo como outra pessoa, diferente das outras com quem trabalhava na época, uma galera que só via o lado da gravadora.

Como você equilibra seu trabalho comercial com seu lado mais artístico?
Do meio dos anos 90 até o final, acabei tendo uma crise. Ganhava muito grana, mas estava profundamente infeliz. Fazia fotos para um monte de discos com os quais não estava comprometido, era uma fotografia mais voltada pra serviço, fazendo o que os outros queriam que eu fizesse e não o que eu achava que deveria. Era devastador, de certa forma, porque tive que voltar à estaca zero, me reinventando e o tipo de fotografia que fazia, o que teve consequências econômicas bem duras. Mas no longo prazo, essa mudança que me permitiu estar aqui hoje.

Há momentos em que as duas coisas se juntam: é legal trabalhar com gente como Quantic ou Damian Marley ou Kamasi Washington e eu sinto que trabalhamos num nível de intimidade necessário e eu ganho pra isso. Mas tem muita coisa que já fiz em que nunca tinha ouvido a banda ou nem tinha interesse nenhum nela, a ideia é que se eu ganhasse uma grana com isso, poderia bancar meus outros trampos, focar no que importa. Mas você sempre acaba aprendendo algo, mesmo nos trampos mais comerciais, sempre prestando atenção no que pode ser feito pra melhorar.

Dr. Dre e Ice Cube

Você acha que aquela foto de Ice Cube e Dr. Dre sentados de costas um pro outro revela algo da relação entre eles?
Isso rolou na época em que eles mandaram o Eazy à merda, o que é mostrado no filme Straight Outta Compton, uma bobagem, os caras são lendas e isso está certo já, foi escroto pintar Eazy-E daquele jeito, ele não era assim, não era um crackudo qualquer, era um cara frio.

Você não se importa que isso seja publicado?
Eu não. Trabalhei com os caras na época. F. Gary Gray dirigiu muitos clipes para eles, foi aí que ele começou. Gary Gray e Cube me conheciam. Cube foi uma das primeiras pessoas a quem dei uma cópia de It’s Not About a Salary, que entrou em contato comigo por sua assessoria, comentando que “Esse é um puta livro, é verdadeiro, é importante”. Levei aquilo a sério. Nunca trabalhei com eles, só com Eazy, que me contratou. É engraçado, eu tinha o Cube como um ídolo e ele era incrível, daí conheci o Eazy-E e pensei “talvez o Cube não fale a verdade sempre”. Eazy não era um cara suspeito e sim um cara interessante, único, que pensava fora da caixa onde haviam lhe colocado.Quem mais contratou nomes como Black Eyed Peas e Bone Thugs-N-Harmony no mesmo mês, junto do Blood of Abraham? Ele não chamava só a galera de Compton.

Você tirou a foto de Goodie Mob naquele calabouço? Por que você estava lá?
Eu estava lá pra fazer a capa de Rappages. Assisti aquele documentário [ The Art of Noize] e me liguei que porra, eles não tem uma foto boa no calabouço. Aí fui lá e porra, lá estava eu com uma foto de Goodie Mob naquele calabouço. Não é uma grande foto, o diafragma da minha câmera tinha ido pro pau no dia, então tem pouca luz na foto, mas o que importa é o lugar.

Blazing Arrow

A foto dos discos pegando fogo no deserto em Blazing Arrow do Blackalicious é incrível. Poderia me falar sobre o que inspirou esta imagem?
Eu e Brent Rollins colaboramos continuamente, trabalhamos juntos em Rappages e ficamos brincando com a ideia de refazer a colagem que ele havia feito no disco anterior de Blackalicious, Nia. A colagem tinha um visual muito Bay Area, meio enevoado, aquele moleque lá sentado com todos os discos e equipamentos aí sugeri “E se fôssemos na direção oposta? E se partíssemos pro deserto e em vez de uma colagem, usarmos elementos de verdade e tacar fogo em tudo?”. Naquela época, tínhamos uma grana e fomos lá, era pra ser a capa. Só não foi mesmo porque a Universal viu os dois falantes em chamas, acharam parecidos com as torres gêmeas, era esse o nível de medo e paranoa daquela época, então Brent acabou fazendo aquela colagem pra capa.

Como e quando você fotografou Kendrick?
Eu e Eric Coleman fizemos umas fotos dele pra capa da Complex em 2014 ou 2015. Foi um bom ano antes de To Pimp a Butterfly, mas a Complex achou que TPAB estava prestes a sair. O editor tinha a ideia de recriar uma foto bem boba de Ernest Hemingway, foi algo bem forçado, uma daquelas situações em que você não acesso à música e quer fazer algo que pareça autêntico e inovador, mas não tem a menor ideia do que com que está mexendo.

Se você quer algo de autêntico com Kendrick, se ligue no trabalho de Kahlil Joseph [no curta de good kid m.A.A.d. city]. Aquele cara tem um olhar sagaz e teve tempo pra trabalhar, pesquisou, foi fundo e fez rolar, resultando em algo tão bom que Kendrick trouxe um vídeo caseiro que sua mãe fez em março de 1992 com um Kendrick de quatro anos dormindo na cama, com seus tios e mais uma galera ao redor, com espingardas na mão. O lance é esse.

Kendrick Lamar

Essa foi uma oportunidade de trabalharmos junto de alguém que nos interessava. Tive sorte de bater aquela foto, era um local no qual ficava bem feliz de estar fotografando chamado The Flying Fox, que não existe mais, um antigo bar perto do Crenshaw Mall. Fotografamos Kendrick durante o dia inteiro e o cara [que alugou o espaço] não fazia ideia de quem se tratava.

Quando estávamos terminando a sessão, os velhos da vizinhança chegaram pra comer tacos e tomar umas, quando Kendrick e seu pessoal foram embora, acabamos ficando eu e minha equipe ali pra encher a cara. Até fumamos maconha e ficamos ali com o pessoal da vizinhança, dançando ao som dos clássicos.

Sua introdução em It’s Not About a Salary inclui uma foto do livro de rimas de Ganjah K. Há também uma foto dele em Ghost Notes . Quão próximos vocês eram? Tem sido duro lidar com seu falecimento?
O conhecia bem, havíamos nos afastado por um tempo, mas nos últimos dois ou três anos nos reaproximamos. A moça que ajudou no parto de nosso filho era bem próxima dele e acabamos retomando contato, nos falávamos de vez em quando. Eu sabia que ele tinha problemas de saúde.

Naquela época ali entre 94 e 95 ele certamente era um dos MCs mais respeitados e fodas, mas seu disco Harvest for the World nunca foi lançado, mas segue como um dos meus favoritos daqueles tempos, junto de To Whom it May Concern e Hip-Hopera, bem como a versão original de Soul on Ice(não aquela que saiu pela Priority). Ele era muito diferente dos outros caras da cena no sentido de que parecia mais maduro, o ego não era um problema. Ele sempre se portou como um jogador de equipe.

Não que isso diminua sua importância. Quando o conheci ele se chamava KMC the Chronic, não como Ganjah K. O uso da expressão “chronic” é criação dele, era ele o cara que vendia maconha pro Snoop e o resto da galera, que colavam na Good Life, foi assim que conheceram Ganjah K.

Quando se fala de maconha na Califórnia, hoje algo que faz parte da vida de todo mundo, saindo da ilegalidade para a legalidade, ele é o cara que sabemos que saía da South Central em Los Angeles e ia até Humboldt comprar erva da boa aos montes e trazia de volta pro bairro. Não tem como subestimar a relevância disso.

Fiquei triste demais quando ele morreu, chorei naquele dia. Me diverti demais com aquele cara, ele tinha uma puta voz áspera, sempre teve problemas com os pulmões. Mas ele também tinha uma risada toda dele, conseguia ouví-la claramente… Era um cara adorável.

Max Bell é jornalista em Los Angeles. Siga-o no Twitter .