Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma VICE News Espanha.
“Um 10 perfeito!”. Ninguém estava à espera. O marcador não estava preparado para tal nota e o que apareceu foi um 1.0. Durante a transmissão, o comentador gritava: “Um 10! Perfeito!”.
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Esta prova de excelência, foi obra da jovem ginasta Nadia Comaneci e aconteceu em Montreal, durante os Jogos Olímpicos de 1976 e marcou um antes e um depois na história da disciplina, ao mesmo tempo que se transformava numa demonstração de força nacional da Roménia socialista de Ceausescu.
A 18 de Julho deste ano cumpriram-se 40 anos da efeméride.
O corpo desta então menina, convertida em heroína nacional, passou a ser, primeiro, um instrumento de propaganda do regime e, logo depois, um símbolo do anti-comunismo nos Estados Unidos da América, o país que a viria a acolher. Naquela época, ao lado das então muito jovens actrizes Jodie foster e Brooke Shields, Comaneci encarnou um ideal de beleza que a levaria até a protagonizar anúncios de roupa interior.
No livro, La Petite Communiste qui ne souriait jamais, a escritora francesa, Lola Lafon, recolheu inúmeros apontamento biográficos e construiu uma obra que relata a história de sobrevivência da jovem ginasta, a sua fuga de um regime autoritário e a carreira empresarial de êxito empreendida posteriormente por Nadia Comaneci. Uma carreira que, todavia, foi sempre de alguma forma eclipsada por eses seis minutos de execução perfeita, por esses impecáveis sete exercícios que agora cumpriram quatro décadas.
No livro, Lafon enceta um diálogo fictício com a ginasta romena, baseado em livros, artigos, filmes, vídeos e informações encontradas na Internet, mas também em fantasias e suposições. Daí surge, tal como explica a francesa à VICE News, “uma tentativa de examinar o real, mas não uma biografia de ‘revelações’”.
A escritora assegura que escreveu à ginasta e que, apesar de esta se ter mostrada cordial e interessada no projecto, não voltou a haver comunicação entre elas. O mesmo aconteceu quando a VICE News se pôs em contacto com o sócio de Comaneci, PaulZiert, que, um mês antes da publicação deste artigo, se mostrou disposto a passar à antiga ginasta uma série de perguntas. Nunca foram respondidas.
DESPORTO E POLÍTICA
O corpo da mulher já foi instrumentalizado por todos os regimes, totalitários, autoritários e até democráticos.
“A secção feminina da Falange [partido político espanhol de índole fascista, legalmente reconhecido durante a ditadura de Franco] fez exactamente o mesmo com as mulheres espanholas. Desenhou uma série de exercícios físicos que não comprometiam o gracioso corpo feminino”, recorda à VICE News o historiador Xavier Carmaniu.
O Plano Estatal 14.25 da socialista República Democrática Alemã (RDA) é, para o especialista, um bom exemplo da manipulação dos corpos das atletas no âmbito olímpico. Neste país, durante a década de 70 e até à queda do Muro, foi levado a cabo um sistemático uso de testosterona e anabolizantes, que resultaria até em mudanças de sexo em algumas competidoras.
Carmaniu acredita mesmo que o recente escândalo de doping supostamente planificado na equipa olímpica russa, corresponde a lógicas propagandistas análogas às da antiga RDA. A mesma lógica empregue pelo governo romeno, ao apropriar-se do feito da jovem Comaneci para fins políticos.
Numa entrevista à revista Elle, em que a questionam sobre o livro da escritora francesa, Nadia Comaneci parece confirmar que a personagem que Lola Lafon apresentana obra não está assim tão distante da realidade: “Não percebo porque é que inspirei a autora. Limitei-me a fazer o meu trabalho”. Comaneci é dura e de carácter determinado. Tão determinado que nos obriga a repensar a imagem dela de uma pessoa submissa e sem critério.
“Fugiu da Roménia, converteu-se numa heroína e numa empresária. É uma história de superação e isso foi algo a que não se deu o devido valor. Quando é recordada, é-o por ser a rapariga com corpo de menina que conseguiu o 10 perfeito. Ainda hoje continua a ser retratada como uma pessoa débil e manipulável”, salienta Isabel Muntané, co-directora do Mestrado de Género e Comunicação da Universidade Autónoma de Barcelona (UAB).
A Comaneci não se perdoou o facto de ter crescido. Quatro anos depois de Montreal já os jornalistas escreviam sobre o desaparecimento da sua magia, num processo a que Lola Lafon se refere como a doença que advém do facto de ter crescido. E isto foi algo que, depois, nem as medalhas de ouro que continuaria a ganhar nas competições seguintes conseguiu dissimular. Nunca se lhe perdoou ter crescido, coincidem Muntané e Lafon.
“Hoje em dia, o ideal feminino nas revistas é o de uma menina de 14 anos, carregada de photoshop para aparentar 28, e que faz com que as mulheres de 40 pareçam doentes”, opina a escritora.
“É cada vez mais claro como se hipersexualizam as raparigas, como são maquilhadas, como são feitos os concursos de Miss…”, acrescenta, por sua vez, a académica. Para Muntané, o barómetro é sempre o desejo do homem, cuja imagem é identificada com o poder e isto também no âmbito desportivo.
Comaneci é muito mais que seis minutos de exercícios. Passa de estar ao serviço da Roménia de Ceausescu, para se converter num objecto utilizado para incentivar o consumo, de ser o modelo par as ginastas, a protagonizar realities. Um caminho que mostra até que ponto o corpo das mulheres está sujeito ao permanente escrutínio e aos desígnios de um poder masculino que atrofia, impenitente, todos os outros atributos femininos.
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