A cena de música de ruído/música experimental do Rio de Janeiro talvez tenha parido seus mais bem-sucedidos (se é que se pode utilizar desse termo quando falamos de noise) rebentos nos últimos anos: Cadu Tenório (e suas diversas parcerias); a estética mística de Bella; God Pussy, Chinese Cookie Poets e seus companheiros de QTV. A mais recente e ativa dessas figuras talvez seja Cássio Figueiredo, fluminense de Volta Redonda que encontra sua sonoridade nas gravações de campo e drones.
Cássio vêm lançando discos de forma independente desde 2014 — o último deles, ao menos até o momento, foi Presença, lançado no início de 2016 e elaborado com o auxílio do veterano Cadu. O disco marcou uma mudança na perspectiva do artista sobre sua própria música e foi a porta de abertura para que o próximo lançamento de Cássio, Expurgo (2016), trabalhasse com uma maior “musicalidade” (nos sentidos convencionais do termo, por assim dizer) e fosse lançado digitalmente pela Seminal Records.
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Já em 2017, ele abriu o ano com Trilha prum possível curta, sob a alcunha Batismo, cuja proposta era estar “a serviço de possíveis e futuros projetos audiovisuais”. O lançamento, mesmo que composto apenas de três breves demos, explicitou um pouco mais da sonoridade ora atmosférica, ora ruidosa e sempre lentamente construída por Cássio. Esta atinge mais altos patamares, porém, em Lembrando aspectos mortos.
Seu quarto lançamento num período de dois anos segue vagamente um conceito autobiográfico — vagamente porque, segundo Cássio, ao mesmo tempo que exige ser ressaltado, cobra ser rejeitado. “A partir do momento que ‘lembrar aspectos mortos’ é não apenas uma atividade individual (no sentido que não é apenas minha), mas uma narrativa material, ela é passível de ser ativada por qualquer pessoa”, diz.
Ainda trabalhando com as K7, o fluminense desenterrou fitas relacionadas a diversos momentos de e prévios à sua existência, construindo sobre e ao redor deles uma narrativa da história de sua vida. Na faixa “Nascimento”, por exemplo, é possível ouvir o choro de um bebê recém-nascido — o seu próprio. Já as últimas faixas do disco são construídas com gravações de campo recentes, o que permite a Cássio a conclusão de que o passado é sempre constituído por aspectos mortos.
“Ainda assim existe o luto pelos mortos, então esses aspectos persistem e, de uma maneira completamente não-confortável, se configuram como empecilhos. A atividade (o jogo, o exercício) propostos pelo álbum pretendem mais ou menos existir como um exorcismo do que não serve mais. Uma forma de atingir um estágio onde o que é inútil para a caminhada da existência resida onde não possa mais me acompanhar. É uma forma que se pretende bastante otimista de encarar a vida”, explica.
O uso de trechos de guitarra e as canções gravadas previamente nas K7 que vez ou outra aparecem por entre o ruído construído por Cássio continuam a construir a musicalidade que encontrou um caminho em seu som desde Expurgo — principalmente em faixas como “Sem Título” e “10. Lembrando aspectos mortos”. “O que eu tentei fazer foi ampliar o escopo das possibilidades que essa musicalidade me dá. Eu acho que gosto dessa coisa do conflito entre o que é meio que convencional com o que não é. O noise, ou a música de ruído como um todo, é um campo que eu me sinto bem no que se relaciona com produção. Mas quando eu me paro pensando nas minhas referências, elas não se encaixam muito bem com esse campo”, conta.
Lançado pela Banana Records (CE) nessa terça (14), Lembrando aspectos mortos me parece uma celebração da memória — tanto da sua imaterialidade quanto de suas expressões concretas assim como da certeza da finitude. Resgatando lembranças de um passado, Cássio ergue duas certezas sobre a memória: a de construção como experiência coletiva e a de sua certa morte.