Após Denúncia de Sogra, Cert da ConeCrew é Preso por Cultivo

Uma notícia cortou a onda de pós-carnaval de milhares de cultivadores de apartamento, ativistas antiproibicionistas e, principalmente, fãs da ConeCrewDiretoria. Por volta de meio-dia de domingo, dia 22, começaram a circular as notícias da prisão do rapper André Da Cruz Teixeira Leite, o Cert, uma das vozes da Cone Crew, pelo porte de quatro pés de maconha em sua casa em Miguel Pereira, na região serrana do Rio de Janeiro. Por falta de pessoal, a perícia técnica teve de ser realizada na capital, a 120km dali. O processo durou mais de seis horas, e, só no final do dia, Cert foi enquadrado pelo delegado de plantão Vinicius Coutinho no art. 33, § 1°, inciso II, que trata do “cultivo para outros fins que não o consumo pessoal”, considerado como tráfico de drogas. Segundo o laudo da perícia, haveria 1,6 kg de substância entorpecente. Observando as fotos das apreensões cedidas pela polícia e conhecendo o seu modus operandi, os quatro pés em início de floração provavelmente foram pesados com folhas, caule, raízes, terra e vaso para alcançar esse número. Colhidos prematuramente, dificilmente renderiam mais do que 50 g de erva seca.

O episódio marca mais um capítulo na recente onda de prisões de cultivadores no Rio de Janeiro. Como na maioria dos casos desde que comecei a acompanhar o assunto, há mais de dez anos, a prisão foi realizada sem investigação ou mandado, baseando-se apenas na denúncia de um desafeto – no caso, a sogra de Cert. Entrei em contato com a delegacia diversas vezes durante o dia, mas só à noite consegui falar com um policial, que diz ter participado da ação, mas não quis se identificar. “Ele foi preso não só por causa da droga encontrada na casa dele, não: ele foi preso porque a sogra dele chegou aqui com a denúncia de que ele tinha agredido a filha dela. Policiais militares foram até a casa dele e, chegando lá, ele desacatou os PMs. Ele estava muito alterado. Então, a sogra dele apresentou aqui na delegacia uma foto de sua plantação de maconha; aí eu fui lá, entrei na casa e dei voz de prisão pra ele.”

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Perguntei se ele havia sido autuado pela agressão, e o policial me respondeu que ele foi autuado por desacato: a esposa não quis representar contra ele. E, antes que eu pudesse questionar o porquê de ele ter sido enquadrado no artigo 33 com apenas quatro plantas, o policial disse que tinha de atender uma ocorrência, desligou na minha cara e a linha ficou ocupada. Os canais oficiais da ConeCrew na internet soltaram um comunicado que continha as seguintes afirmações: “Cantor não é traficante e nem precisa disso pra viver, é um trabalhador como vários outros pais de família que levam a vida de forma honesta e são apenas usuários”. Ficou bem claro para mim que, uma vez que não houve a denúncia de agressão e desacato, pois eles são os tipos de delito que “não dá em nada”, a polícia optou por “castigar” o rapper, enquadrando-o no art. 33, cuja pena de prisão varia de 5 a 15 anos, mesmo sem nada que comprovasse o tráfico. Tendo ouvido apenas o lado da polícia, não posso fazer qualquer julgamento dos fatos que desencadearam a prisão, mas terem colocado uma arma de air soft na mesa de apreensão, escondendo sua ponta laranja, me transpareceu uma certa má-fé.

Bongs customizados são mais uma prova que Cert é usuário. Agora colocar uma réplica de pistola para prática de airsoft na mesa, ainda mais ocultando a ponta laranja do cano, é muita safadeza da Polícia. ATUALIZAÇÃO: Após a matéria ser publicada, recebemos uma outra foto onde aparece a pontinha laranja da arma de airsoft.

Conversei com o Dr. Emílio Figueredo, da Comissão Jurídica do Growroom, para tentar entender as nuances da nossa lei de drogas. “No artigo 28, está escrito que ‘Quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto’; e, no artigo 33, quem ‘semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas’. Ou seja, a diferença está nos termos “consumo pessoal” e “pequena quantidade”, que são entendidos pelo delegado na hora do enquadramento, pelo promotor na hora da denúncia e pelo juiz na hora do julgamento. Sobre o consumo pessoal, na lei está escrito que ‘para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente’, o que dá uma grande margem de interpretação e aplicação da lei como forma de controle social de camadas desprivilegiadas da sociedade. E pequena quantidade é uma expressão infeliz para determinar se o sujeito será solto ou preso, pois não há nada na literatura jurídica ou científica que determine o que é pequena quantidade. A pequena quantidade de plantas para uma autoridade na maioria das vezes não é o suficiente para suprir a necessidade de uso cotidiano do cultivador. “

Meus conhecimentos de jardinagem e do ritmo do camarim da ConeCrew me dão autoridade para afirmar que o Cert iria levar menos de uma semana pra bongar essas plantinhas.

A consultoria jurídica do Growroom constitui-se de um grupo de advogados e outros operadores do direito que, voluntariamente, colaboram com a defesa de cultivadores de maconha presos no Brasil. Quando o caso ocorre em uma cidade onde há um consultor, ele ajuda diretamente; quando não há, o acusado é orientado a contratar um advogado local e colocá-lo em contato com o grupo para lhe ser fornecido o material jurídico sobre o tema do cultivo de maconha. Ao menos um caso por dia aterrissa no e-mail sos@growroom.net. A grande maioria é de pessoas intimadas pela Polícia Federal para depor sobre importação de sementes de maconha.

Nos últimos dois anos, a Polícia Federal apreendeu 2.612 encomendas com sementes de maconha. A CJGR atendeu dezenas de casos que em sua maioria foram considerados fato atípico ou preparatório, pois sementes não contêm o princípio ativo proscrito e também não são insumo ou matéria-prima. Alguns poucos casos foram erroneamente enquadrados como porte de entorpecentes; nesses casos, houve transação penal. Emílio não conhece casos recentes envolvendo prisão ou condenação definitiva por importação de sementes.

Não é a primeira vez que um integrante da ConeCrew tem problemas envolvendo pés de maconha e a polícia. Em 2012, após denúncia, a PM encontrou um pé de maconha e uma quantidade de erva na casa de “Pedro Amigo”, fotógrafo que acompanhava a banda nas turnês. O caso gerou grande repercussão, refletindo inclusive em várias faixas e cartazes nas Marchas da Maconha daquele ano, com o hashtag #LiberdadePedroAmigo. Pedro foi indiciado no art. 33 e só foi libertado após 71 dias no terrível presídio que leva o irônico nome de Água Santa. Na ocasião, o advogado do caso, o Dr. André Barros, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB e advogado da Marcha da Maconha do RJ, sustentou oralmente que Pedro, por ser réu primário, de bons antecedentes, com residência fixa, preso em seu próprio apartamento, sem armas, com a entrada franqueada e sem prisão preventiva, deveria ser beneficiado da então recente decisão do STF que declara a inconstitucionalidade do art. 44 da lei de drogas em que se proibia a liberdade provisória para os réus do art. 33.

Tal sustentação gerou revolta por parte da promotoria, que chegou a argumentar que o STF vem prestando um “desserviço à nação” com suas últimas decisões, bem como do “Senado do Mensalão”. Felizmente, o juiz discordou do MP e colocou Pedro Amigo e seu colega de apartamento em liberdade, pois não havia elementos para a manutenção da prisão preventiva por garantia da ordem pública. Após quatro meses numa quase prisão domiciliar na casa dos pais na região Serrana, tendo de descer a cada quinze dias para assinar um termo na vara criminal, Pedro foi finalmente absolvido. Como sempre, o que ocorre é uma mudança na acusação, de tráfico para usuário; então, o processo não chega no segundo grau e não gera jurisprudência.

Cert no palco no Rio de Janeiro, queimando tudo com ninguém menos que Mr. Catra o Fiel.

Desde minha última matéria para a VICE sobre o assunto, rolaram outras prisões de cultivadores pelo país. Resolvi perguntar ao Dr. Emílio o que ele achava disso. “Não acredito em perseguição, e sim que o cultivo doméstico de maconha se tornou uma prática comum entre os usuários da planta. Hoje, no Brasil, há muita gente dizendo não ao mercado das drogas quando se fala de maconha, fazendo a sua em casa. E a polícia conscientemente perseguir quem planta maconha em casa seria o Estado usando uma força desproporcional contra quem não causa qualquer dano à sociedade e ainda enfraquece o ciclo violento das drogas.”

Até o fechamento desta matéria, Cert permanecia detido na 96ª DP, em Miguel Pereira, aguardando para ser transferido pela manhã para um presídio em Volta Redonda; enquanto isso, a hashtag #LiberdadeCert ficou em terceiro lugar nos trending topics mundiais do Twitter.

ATUALIZAÇÃO: Desde o domingo tentamos contacto com Babi, a esposa de Cert, para esclarecimentos a respeito da suposta agressão. Ela disse que só se manifestará em juízo, mas soltou uma nota no seu Facebook, que era privado mas agora está público, reproduzimos aqui um trecho:

“Após problemas de família, a polícia suja e covarde invadiu nossa casa e a consequência foi esse inferno que estamos vivendo hoje (…) Todos que conhecem nossa família e nos conhecem sabem o homem que ele é que não merece passar pela acusação que está passando e sabem a mulher e companheira que sou e jamais faria algo para que ele passe pelo que está passando! (…) Somos a favor da legalização e cultivo sim! Usuário não tem que ser preso!!!”