O peso político da camisa de Messi

Uma camiseta de futebol pesa pouco mais de 300 gramas. É feita de material sintético ultramoderno, que facilita a eliminação do suor e resiste a agarrões e puxadas. O suprassumo da tecnologia têxtil a serviço do bom futebol. Mas a camisa 10 da Argentina, essa, quando se encaixa sobre os ombros de Lionel Messi, parece pesar mil toneladas. E boa parte desse peso está muito além do futebol: passa pela conturbada relação do craque com seu país e pela intensa e apaixonada maneira como o argentino vive o esporte. E isso, claro, tem tudo a ver com a política.

Hoje mais do que nunca, já que o atual presidente da Argentina é ninguém menos que um ex-cartola de futebol: Mauricio Macri ficou conhecido do público primeiro como presidente do Boca Juniors, o mais popular clube do país, e só depois chegou à política. Sob seu comando, o Boca ganhou 17 títulos, entre eles quatro Libertadores (2000, 2001, 2003 e 2007) e duas Copas Intercontinentais (2000 contra o Real Madrid, 2003 contra o Milan), e revelou ao mundo craques como Juan Román Riquelme, Carlitos Tevez e Fernando Gago. Quando assumiu o cargo, em 1995, Macri era conhecido por comandar a Sevel, empresa que representava a Peugeot e a Fiat na Argentina. Ao sair, em 2008, era um político consagrado, recém-eleito prefeito de Buenos Aires. Seguiu oficialmente no comanda da capital até dezembro de 2015, quando foi empossado como presidente.

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Macri comanda um país que vive grave crise econômica. Foi eleito com um programa liberal, que durante a campanha lhe garantiu apoio dos banqueiros, dos empresários e da grande imprensa, setores que passaram mais de uma década às turras com os governos de Néstor e Cristina Kirchner. Mas suas ideias não funcionaram, a economia continuou naufragando e o peso perdeu mais de 20% de seu valor oficial. Resultado: na semana retrasada o país recorreu ao FMI e fez um acordo que prevê empréstimos de até US$ 50 bilhões nos próximos anos; em troca, a promessa de zerar o déficit fiscal até 2021, cujo significado, sabemos, se traduz em medidas que vão afetar principalmente, como sempre, os mais pobres.

Um cenário parecido com o que provocou os cacerolazos no final de 2001. Eram protestos que levavam pessoas às ruas com panelas nas mãos (já ouviu falar disso em algum lugar?), e em alguns casos chegaram a virar confusões com saques em lojas. A crise provocou a renúncia do então presidente Fernando de la Rúa na metade de seu mandato de quatro anos. Adolfo Rodriguez Sáa comandou o país por menos de um mês e em seguida entregou o governo a Eduardo Duhalde, que completou o mandato original de De la Rúa, o homem que deixou a Casa Rosada, sede do governo argentino, de helicóptero, com medo dos manifestantes. A lembrança dos protestos é tão viva que o FMI admite reduzir o tamanho do aperto se houver aumento dos índices de pobreza.

A Copa e a estabilidade

Nesse cenário, um sucesso na Copa do Mundo poderia ser, talvez, uma injeção de felicidade para um país que teve suas duas conquistas anteriores mergulhadas até o pescoço em influências políticas. Em 1978, a Argentina organizou e ganhou a Copa em meio a um dos mais duros regimes militares que atingiram a América Latina no período. Com direito, por exemplo, a pressão direta sobre os juízes: após acusações de favorecimento nas vitórias iniciais contra Hungria e França, a seleção da casa enfrentaria a Itália na decisão do primeiro lugar de seu grupo. As duas seleções já estavam classificadas, mas ficar em primeiro significava permanecer em Buenos Aires, jogando no estádio do River Plate, o maior do país, à vista dos generais, entre eles o presidente Jorge Rafael Videla. A Fifa escalou seu árbitro mais duro para o jogo, o israelense Abraham Klein; a Itália venceu; e a Argentina, depois, vetaria Klein de apitar a decisão.

Decisão a qual os donos da casa chegaram depois do caso mais mal explicado da história das Copas: a goleada por 6 a 0 sobre o Peru, país que então também vivia uma ditadura militar e que já não tinha mais aspirações no Mundial. A Argentina precisava de 4 a 0 para superar o Brasil no saldo de gols e, com a vantagem de jogar horas depois da vitória brasileira sobre a Polônia, por 3 a 1, fez todos os gols de que necessitava – e ainda mais dois de lambuja. Na final, venceu a Holanda por 3 a 1, na prorrogação.

Em casa, um garoto de 17 anos assistiu à festa sonhando em estar lá dentro – e de fato poderia ter estado. Diego Armando Maradona já era conhecido da torcida, fazia miséria com a camisa do Boca Juniors e chegou até a ser convocado para alguns amistosos, mas acabou de fora da lista final do teimoso e sortudo Cesar Menotti, num processo parecido com o duelo Felipão x Romário de 2002: com o título, o técnico acabou perdoado. Maradona afundaria com a seleção na Copa de 1982, na Espanha, e teria sua redenção quatro anos depois, no México.

Era o primeiro Mundial após o fim da ditadura e da Guerra das Malvinas, a tola aventura em 1982 na qual os militares jogaram no lixo cerca de mil vidas (sendo 649 argentinos, oficialmente) ao desafiar o Reino Unido por causa de um pedaço de terra flutuante a 500 km da Patagônia. Os britânicos levaram apenas dois meses para recuperar a posse do território, a que chamam de Falklands. O vexame ajudou a acelerar o fim do regime, mas também feriu o brio e a autoestima dos argentinos.

Então, no dia 22 de junho de 1986, o mesmo Estádio Azteca que vira a glória de Pelé e do Brasil dezesseis anos antes presenciava uma das maiores atuações individuais das Copas do Mundo. Num intervalo de cinco minutos, Maradona fez um gol com a mão (“com a cabeça e a mão de Deus”, sempre diz) e outro driblando seis ingleses desde o meio-campo – e também, na mente dos argentinos, a primeira-ministra Margareth Thatcher, a Rainha Elizabeth, a Marinha e todo o resto da Grã-Bretanha. Dali a uma semana, a Argentina seria campeã em cima da Alemanha, e Diego, consagrado como o maior de todos em seu tempo, ou em todos os tempos na visão dos compatriotas.

Um presente sombrio

Mas desde a derrocada de Maradona, selada com o polêmico doping na Copa de 1994, a seleção da Argentina parou no tempo. O último título oficial é a Copa América de 1993, no Equador. De lá para cá, o jejum só aumenta, com direito a três vices em anos seguidos, na Copa de 2014 e nos torneios continentais de 2015 e 2016, ambos perdidos nos pênaltis para o Chile.

Por isso que, se você perguntar a um argentino se Messi é maior que Maradona, há boas chances de ouvir uma sonora gargalhada. O craque do Barcelona, considerado por muitos o maior do atual tempo (no mínimo dividindo o posto com Cristiano Ronaldo), é visto em seu país como um pecho frio, alguém que joga muita bola, mas que não tem o carisma e a vibração de Diego, que inclusive foi seu treinador na Copa de 2010 – uma seleção ruim, que passou raspando nas Eliminatórias e foi embora da África do Sul levando uma surra de 4 a 0 da Alemanha. Para esses, o pênalti perdido por Messi contra a Islândia não foi uma novidade, mas algo esperado de alguém que, segundo muitos, nem sequer argentino se sente. Lionel despontou nas canteras do Newell’s Old Boys, de Rosario, mas era franzino demais e precisava de tratamento hormonal para crescer. O clube não quis pagar; o Barcelona veio, pagou e levou o garoto embora aos 13 anos. Messi chegou até a ser convidado a se naturalizar e jogar pela seleção da Espanha, mas recusou.

Só que Lionel nunca será Diego. Talvez esportivamente possa ser maior, mais completo, mais atleta. Mas seu temperamento calado levou até gente a enxergar nele traços da Síndrome de Asperger, transtorno associado ao autismo. O boato sempre foi negado pelo jogador e por sua família, mas o estigma colou. O que há de fato é que Messi não é um falastrão como Maradona: não gosta de dar entrevistas, não faz amizade com políticos e pouco se sabe sobre o que pensa. Num raro momento de exposição, em 2014, antes da Copa no Brasil, o craque se deixou fotografar com as Avós da Praça de Maio, grupo de mulheres que tiveram filhos mortos pela ditadura e tentam reencontrar seus netos, muitos deles adotados de forma ilegal por outras famílias durante o período.

O aborto e o papa

A Copa da Rússia é a segunda em que Messi comanda a Argentina com um torcedor especial: o Papa Francisco, um confesso apaixonado por futebol, torcedor fanático do San Lorenzo e da albiceleste. Só que Sua Santidade não anda muito feliz com outras coisas acontecendo na Argentina, como a permissão ao aborto em qualquer circunstância, aprovada na semana passada pelos deputados. A vitória apertada das mulheres ainda precisa ser consolidada no Senado, mas já é um respiro e tanto para um continente atolado no conservadorismo.

Bergoglio, que ultimamente caiu nas graças da esquerda e é rejeitado pela ala mais reacionária do catolicismo, mandou lá do Vaticano seu recado no dia seguinte à votação em Buenos Aires: o aborto é como um “nazismo de luvas brancas”, uma maneira de “matar um inocente” para “deixar a vida tranquila”.

Para completar o salseiro que cerca a Argentina no tríduo futebol-religião-política, a preparação da seleção para a Copa virou motivo de um cabo de guerra. A equipe marcou seu jogo de despedida antes de chegar à Rússia contra Israel, em Haifa. Só que os dirigentes israelenses resolveram levar a partida para Jerusalém, na esteira da ocupação da cidade sagrada que vem recebendo embaixadas, entre elas a dos Estados Unidos. Os palestinos estrilaram e o jogo foi cancelado.

Como aqui, nossos vizinhos se encontram divididos politicamente, com a economia capengando, cheios de questões mais relevantes a torcer e esperando um título na Copa do Mundo para ao menos deixar o clima na nação mais leve. Como nós, eles iniciaram o caminho em campos russos empatando com uma seleção europeia depois de sair na frente, e ainda vão encarar uma seleção que já foi zebra (eles a Nigéria, nós a Costa Rica) e uma balcânica (eles a Croácia, nós a Sérvia). Parece que argentinos e brasileiros são mais parecidos do que gostariam de ser.

Fernando Cesarotti, 40, é jornalista e professor universitário. Assina a coluna Geopolítica das Copas , sobre futebol e política, durante o Mundial da Rússia.

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