Música

Da Contemplação à Quebradeira: Como Foi o Eletronika 2014

A entrada do teatro Oi Futuro é bem louca. De uma psicodelia minimalista, monocromática. Um corredor vermelho, tubular e sem quinas. Lembra aquele quarto do Cildo Meireles, no Inhotim. Pela segunda vez, foi lá onde rolou o Eletronika, que acontece desde 1999, em Belo Horizonte, antecipando tendências musicais do Brasil e do mundo.

Também é a segunda vez que o Chico Dub ficou por conta da acertada curadoria, cheia de “gente tentando retrabalhar a música brasileira e propondo novas linguagens em diferentes gêneros”, como ele mesmo explica. “O Eletronika carrega um pouco dessa imagem só de música eletrônica, mas é bem mais que isso. Vai muito além da pista. São músicos que estão fazendo um som novo. Colocar isso dentro de um teatro amplia ainda mais esse espectro, é alucinante”, diz o curador, DJ e pesquisador musical, organizador da coletânea Hy Brasil.

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Boa parte do line-up, inclusive, foi composta por artistas que já participaram da coletânea do Chico, que escalou músicos (alguns pela primeira vez) da Alemanha, da Itália, dos Estados Unidos, de Minas, São Paulo, Rio e Bahia. A novidade dessa edição foi a expansão do espaço – além do palco do teatro, tivemos também o vão da galeria do Oi Futuro. Lá, pick-ups e sintetizadores comeram soltos no festival, que começou na quinta-feira (11). As apresentações da galeria foram dividas em segmentos pelo curador. O primeiro dia foi o da “Psicodelia Rural” e contou com dois DJs mineiros.

Os graves pesados do Projeto Mujique abriram o Eletronika 2014. Pesquisador musical da cidade de Pouso Alegre, o som do projeto é feito por Fabiano Scodeler, que mescla o tradicionalismo dos ritmos africanos, brasileiros e latinos – como samba, candomblé, mambo e xaxado – com a modernidade do rock e de elementos eletrônicos diversos. Das caixas, músicas de Hermeto Pascoal, por exemplo, se misturavam com batidas, samples e sintetizadores, criando tanto ambientes dançantes como uma atmosfera sombria.

A abertura do festival foi morna. Umas 50 pessoas conferiram o Mujique numa pegada mais vernissage, contemplativa e observadora. Acontece que achei o clima introspectivo bem legal. Dava para circular numa boa, trocar ideias e tomar cervejas geladas (apesar dos “salgados” R$ 6 por uma Bud longneck). Só uma loira parecia incomodada com a quietude da turma, dançando frenética com as amigas e gritando “vaaaamo lá, galeraaa!”.

O próprio Mujique me contou que curtiu tocar no festival, que ele não conhecia muito. “É a primeira vez que eu venho. Nosso trabalho está mais ligado a São Paulo, então não conheço bem a cena de BH. Mas hoje mesmo já fiz vários contatos, vai ser bem produtivo”, disse ele, que ficou na cidade até domingo, conferindo toda a programação do festival. Com o Fudisterik, a pista deu uma aquecida. O DJ  e produtor Ricardo Cabral também faz um som psicodélico, que passeia entre a densidade do experimentalismo viajandão e o ‘rebolation’ de batidas funkeadas.

Fui a todos os dias do Eletronika e saquei que não dá para retratar como é a cena da música eletrônica de BH levando em conta o público do festival. Da mesma forma como gêneros, influências e formas distintas de produção musical se misturam no line-up, pessoas de diferentes tribos e rolês formaram a plateia e estiveram na pista. A sexta-feira (12) mostrou isso muito bem, já que logo na entrada uma fila enorme se formava, com uma fauna cultural bem diferente da noite anterior.

A sexta foi o dia em que a Juçara Marçal mostrou que essa limitação conceitual de “música eletrônica” pode ser muitas vezes equivocada. Afinal, os loopings e riffs dissonantes do Kiko Dinucci e as pirações do suíço Thomas Roher na rabeca e no sintetizador são claras amostras dessa nova criação musical, que cruza ritmos e promove o diálogo entre o novo e o velho de diferentes maneiras. O inspirado som do trio instrumental, que fica completo com a a guitarra e cavaquinho de Rodrigo Campos, casa intensamente bem com a voz ímpar da Juçara e com as influências tradicionais e ancestrais das composições. Sinistras e potentes músicas autorais de Encarnado (2014) e versões entortadas de Tom Zé, Itamar Assumpção, Paulinho da Viola e Zé Kéti deixaram o púbico que lotava o teatro atônito.

Depois do show da Juçara, a pista começou a ferver com o som do Mauro Telefunksoul, o cara do Bahia Bass. Embaixador da criação eletrônica baiana, o DJ mostrou sua fusão do bass music e do funk com axé, arrocha, capoeira e até o pagode. Destaque para os samples de “Nega do Cabelo Duro”, do Luiz Caldas, e de “I Miss Her”, do Timbalada. Fechando o dia dedicado ao “Beat Urbano”, Omulu instaurou um verdadeiro alvoroço na galeria. 

O set do DJ e pesquisador musical carioca foi animal. Omulu mandou surpreendentes versões de funk, como o “Rap das Armas”, “Morena Tropicana” e “Bola de Meia, Bola de Gude”, além de cantos do candomblé, entre outras viagens brasileiras. Uma bomba rítmica que explodiu na pista, fazendo surgir até uma engraçadíssima roda de passinho, encabeçada pelo Guto Lover, guitarrista do grupo de rock Dead Lover’s Twited Heart, que pira no Omulu e na nova geração do funk. Uma galera, inclusive a Juçara Marçal, se juntou a ele na dança, quebrando tudo.

No outro dia, ainda de ressaca, perguntei o que o Guto tinha achado. “Não era eu!”, brinca ele, “mas foi demais, saí do show da Juçara meio encapetado mesmo”, revela. “O funk é uma síntese moderna da canção brasileira, do formato moderno da composição. E o som da Juçara também. Tem essa viagem meio música eletroacústica, noise. Em algum lugar eles se encontram. Podia escrever até um mestrado sobre isso”, defende. 

No sábado (13), acabei vendo só o primeiro show. Maurício Takara abriu a programação do dia com a peça “Música Resiliente Para Piano e Vibrafones”. Particularmente, achei o som muito bonito, cheio de referências à canção mântrica, mas devagar demais. Senti uma quebra no clima, que ficou mais intimista que a conta, muito Hurtmold atual. Talvez por não ter confrido direito a programação, fui esperando o trabalho eletrônico do cara. Mas também vi muita gente gostando no teatro, bem mais vazio que na sexta. Estava muito bem acompanhado pela minha namorada, a Fernanda Machado – que assina as fotos da matéria. Ela tomou nota do resto da programação, que seguiu com o italiano Lorenzo Senni

Sobre o show ela contou: “Não deu para ver o cara. O teatro estava escuro, com muita fumaça de gelo seco. Ele fez um lance eletrônico bem minimalista, definido, com um laser direcionado para a plateia, que se movimentava de acordo com a batida. O teatro estava mais cheio, e a galera parece ter curtido”. Meu amigo Richard Garrell, DJ da festa Alta Fidelidade, não achou o som “lá essas coisas”. “Achei o lance visual bonitaço, era uma trip mesmo, tipo um túnel luminoso preenchendo todo o teatro e variando com as oscilações sonoras que ele manipulava atrás da cortina. O problema é que o som do cara tinha poucas variações e timbres batidos de trance”, disse. 

Depois do italiano hi-tech, [Pedro] Zopelar fechou a noite intitulada “Techno Anaólogico” com seu primeiro live solo, só com baterias eletrônicas, samplers e sintetizadores, que o Garrell gostou um bocado. “Ele não usou computador, fez o som só com hardwares, na hora, bem livre. As batidas vinham principalmente da TR-707, bateria clássica da Roland, que ele ia brincando em cima, acrescentando camadas e filtrando os sons com um sampler sueco foda, o Octatrack. O pessoal curtiu e rolou uma pista divertida, quebrando um pouco o clima de exposição de arte”, contou.

Quem fechou a noite foi o Seixlack, com seu primeiro live totalmente sem computadores, dividindo a mesa com o Zopelar. “Ele chegou com um Roland MC-505, uma máquina com sintetizadores e baterias eletrônicas, e a Aira TR-8, reedição digital e bonitaça da TR-808, a rainha das baterias eletrônicas. Fez um um techno com batidas retas, cheio de ruídos. Talvez por ter esse background do metal, o som eletrônico dele tenha essa pegada mais densa. Foi bem da hora e vai no sentido de algumas das coisas mais legais que têm rolado na música eletrônica. Mas a galera parece não ter sacado muito a onda”, explica Garrell sobre o sobre o som do produtor musical paulistano, que também é baterista da banda de metal instrumental Elma.

No domingo (14), a saideira ficou por conta de dois shows.  O primeiro foi o do quarteto paulista de rock instrumental Hab, cheio de loopings e improvisações guitarrísticas, talvez a menos “eletrônica” das atrações (maldito rótulo!). O Guilherme Valério, guitarrista e cabeça do grupo, achou mais estranho tocar num teatro do que num festival de “eletrônica”, já que “a ligação, mesmo, é a música”. “No teatro é um pouco diferente porque não fazemos um som introspectivo, para dentro. Mas o legal é que o público reage focando no show, não só celebrando. E isso reflete na banda, que presta mais atenção na música também”, argumenta.

Quem fechou o festival foi o norte-americano-brasileiro Arto Lindsay. Sozinho, com sua voz rouca e sua guitarra de 12 cordas (quase soltas), Lindsay tirou um som sujo, como o de um baixo distorcido, em músicas próprias e versões inusitadas como a de “Maneiras”, canção famosa na voz de Zeca Pagodinho. O gringo arrebenta, e a coisa ficou ainda melhor quando ele dividiu o palco com o célebre trio To Rococo Rot, que mistura post-rock e música eletrônica. Nitidamente fãs de Arto, os alemães fizeram muito barulho e empolgaram. Deram risada, tomaram pinga e bateram papo no palco – jeito mais mineiro para o encerramento do Eletronika, impossível.

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