É fim de tarde na piazza da pequena cidade siciliana de Sutera. Na frente da farmácia, as pessoas se reúnem para beber e discutir as notícias do dia. A cena é bastante impressionante, considerando que é inverno e que até cinco anos atrás, Sutera era apenas outra cidade-fantasma de uma das regiões mais abandonadas da Itália. Com uma população de apenas 1.500 pessoas, a maioria dos jovens tinha se mudando para estudar ou atrás de trabalho, com apenas as gerações mais velhas ficando pra trás, guardando o que era um forte sem esperança. Mas nos últimos anos, a cidade foi renovada por um senso de propósito depois de abrir suas portas para estrangeiros.
Giuseppe Grizzanti é o homem que começou essa revolução local. Em outubro de 2013, alguns meses depois de ser eleito prefeito de Sutera, o homem de 64 anos recebeu um pedido bastante incomum. Pediram a ele para encontrar lugar no cemitério da cidade para os corpos de 368 imigrantes que morreram a algumas milhas náuticas da costa de Lampedusa, depois que um barco com 500 eritreus pegou fogo.
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“Não tínhamos espaços para os corpos, o que me deixou inquieto”, lembra Grizzanti. “Aí algo clicou na minha cabeça: se não podíamos abrigar os mortos, por que não receber os vivos?”
Grizzanti inscreveu a cidade no SPRAR, um programa do governo que apoia cidades recebendo e integrando refugiados em suas comunidades, por um tempo limitado – geralmente entre seis meses a um ano. Na Itália, cerca de 1.800 prefeituras têm parceria com a agência, com graus variados de sucesso. As cidades podem focar nas áreas em que acreditam que podem fazer o maior bem. Algumas prefeituras, por exemplo, escolheram apoiar menores desacompanhados, ou imigrantes com problemas de saúde mental. Sutera decidiu hospedar famílias inteiras.
Logo depois que Grizzanti se comprometeu com o programa, os primeiros 15 imigrantes chegaram. Cada nova família foi combinada com uma família local para receber apoio. Disso, não demorou muito para ver uma mudança na demografia da cidade, e no jeito como a comunidade abraçou sua nova identidade. Por exemplo, as nonnas de Sutera logo começaram a cuidar de recém-nascidos vindos do Senegal e Paquistão enquanto os pais procuravam trabalho.
Hoje, são cerca de 30 imigrantes morando em Sutera, na maioria da África Subsaariana e Oriente Médio, mais 15 alojados numa cidade vizinha. Entre eles está Demba Kruballi, 37 anos. Depois de sair de Gâmbia, ele trabalhou para o governo, morou no Senegal e na Líbia, depois cruzou o mar num barco superlotado em 2014.
Na Itália, Demba morou em dois acampamentos onde imigrantes eram processados enquanto um tribunal italiano avaliava seus pedidos de asilo. Quando seu pedido foi aprovado, ele inscreveu a esposa e os três filhos para se juntarem a ele na Itália, e eventualmente se mudou para Sutera.
Como parte do programa de hospitalidade de Sutera, os imigrantes recebem apartamentos – um lugar que podem chamar de lar, em vez de passar os dias em acampamentos comunitários onde só podem comer e dormir. A família de Demba mora num apartamento de dois quartos no centro da cidade. O lugar tem cozinha, sala e um estúdio cheio de baterias, colas e máquinas de solda.
“Em Sutera, sou o cara que as pessoas procuram para consertar aparelhos eletrônicos – telefones, decodificadores, TVs, rádios”, me conta Demba, explicando depois que aprendeu o ofício ainda em Gâmbia. Ele normalmente só precisa ir até a piazza para encontrar clientes, e o preço depende do cliente. “Pergunto quanto a pessoa pode pagar”, ele diz. “Alguns me dão €15 [R$60], outros €20 [R$84] ou €30 [R$127]. Vai da pessoa.”
Demba se sente confortável em Sutera. Ele se dá bem com os locais, e através do programa ele tem acesso a aulas de italiano e TI, além de cursos de treinamento profissional. E como todos os outros imigrantes do programa, ele recebe assistência legal e terapia gratuitamente. Seus filhos frequentam a escola local e agora falam italiano com um forte sotaque siciliano.
O tempo de Demba e sua família no SPRAR vai acabar em breve, e eles precisam encontrar novas acomodações e sustentar a si mesmos. Como só algumas pessoas em Sutera têm celulares que ele pode consertar, Demba – que não tem carro para viajar até outras cidades para trabalhar – vai ter que arranjar um jeito de aumentar sua renda. A solução pode ser mudar para uma cidade maior e montar um negócio lá.
“O cordão precisa ser cortado eventualmente”, diz Nunzio Vitellaro, que comanda o programa de imigrantes de Sutera. “O objetivo do projeto é criar caminhos que vão permitir aos imigrantes conseguir oportunidades reais quando saírem.”
Alguns imigrantes escolheram ficar em Sutera, como um garoto sírio que atualmente trabalha com Vitellaro e o programa como mediador cultural. Alguns sugerem que encorajar os imigrantes a ficar na cidade pode ajudar a consertar antigos problemas, como preencher as escolas locais que estão sob o risco de fechar – mas os números ainda não são suficientes. “Estamos falando de mais de mil locais para 40 imigrantes”, explica Vitellaro.
Ainda assim, a cidade está se beneficiando do programa de outras maneiras. “Uma cidade que recebe bem é uma cidade que cresce culturalmente”, diz Vitellaro. “Hoje, Sutera é um microcosmo onde muitas línguas são faladas. Os locais aprenderam a se envolver com outras culturas.”
Todo Natal, por exemplo, a cidade monta um presépio vivo em Rabato, o antigo bairro árabe. Tradicionalmente, os locais interpretavam todos os personagens principais cercando o Jesus recém-nascido. Desde que o programa de hospitalidade começou, os organizadores conseguiram criar um elenco cada vez mais diverso – este ano, um bebê sírio ocupou a manjedoura e um nigeriano interpretou Gaspar, um dos três reis magos.
Enquanto isso, o final de 2018 trouxe um desafio para o programa. O senado italiano aprovou o Decreto Sicurezza (Decreto de Segurança) – uma lei assinada pelo ministro do interior de extrema-direita Matteo Salvini, que restringe severamente os pedidos de asilo. Entre as medidas introduzidas pela lei está a abolição de proteção humanitária, que permitia que indivíduos estrangeiros cujos direitos humanos estivessem em risco em seu país natal ficassem na Itália por até dois anos. Abolindo a proteção humanitária, muitos não poderão mais ser parte do programa SPRAR e serão obrigados a viver por conta própria abaixo do radar.
“Em todo lugar há bolsões de resistência, e estaremos entre eles”, diz Vitellaro. “Vamos continuar trabalhando com qualquer um que obter status de refugiado. Mas o que vai acontecer com os outros?”
Muitos especialistas acreditam que a nova lei vai simplesmente empurrar imigrantes para o submundo. Em vez de se tornarem membros produtivos da sociedade, imigrantes sem documentos, sem ter onde morar e sem meios legais de conseguir trabalho podem ser atraídos por organizações criminosas. O pesquisador Matteo Villa estima que, com a lei, serão mais 60 mil imigrantes sem documentos morando na Itália em 2020, quase dobrando o número atual para 130 mil.
Por enquanto, o prefeito de Sutera e o governo local estão apoiando uma petição pedindo a Salvini para mudar a lei. Até lá, mesmo com Grizzanti dizendo que não quer desobedecer a lei, ele acredita que é desumano para sua cidade fechar as portas para qualquer imigrante necessitado.
Mas isso pode ser mais fácil falar que fazer. Em outubro do ano passado, o Ministério do Interior prendeu o prefeito da cidade do sul da Itália de Riace, Domenico Lucano, que comandava um programa similar de migrantes. Depois ele foi proibido de entrar na cidade sob acusações de que estava conscientemente violando as leis de imigração, cometendo fraude e arranjando casamentos falsos.
Antes da prisão de Lucano, Riace era celebrada como um exemplo perfeito de integração e repovoamento, com cerca de um quarto de seus 1.800 moradores sendo estrangeiros. Desde então Lucano foi inocentado das acusações de fraude e casamentos arranjados, mas ainda encara outras, e a proibição continua. Agora, sem o financiamento do governo, Riace está com dificuldade para manter seu programa de migração vivo. E a pergunta permanece: O que vai acontecer com outras cidades e seus programas, e com os outros prefeitos tentando ajudar imigrantes em necessidade?
Ainda assim, as pessoas de Sutera estão determinadas a continuar. O nome da cidade na verdade vem da palavra grega antiga “soter”, que significa “salvador”. Segundo o folclore local, os necessitados vêm para a área, que fica aos pés de uma enorme rocha monolítica, por toda a história para se abrigar de guerras e invasões. Com a xenofobia se espalhando cada vez mais pela Itália e o resto da Europa, cidades como Sutera podem ser mais necessárias que nunca.
Matéria originalmente publicada pela VICE Reino Unido.
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